Para onde vai o cinema dominado pelas técnicas de efeitos especiais? Ou melhor: será que os efeitos especiais estão a destruir metodicamente o cinema, encerrando-o nas regras dos jogos de vídeo? Quando vemos ou revemos um filme como Matrix (o primeiro da respetiva trilogia), não podemos deixar de pensar na sua fundamental importância para a formulação de tais perguntas..Foi, de facto, um momento decisivo na evolução da tecnologia cinematográfica (o que, entenda-se, não quer dizer que seja "culpado" das rotinas de produção que passaram a marcar muitos exemplos do espetáculo cinematográfico, em especial no domínio dos super-heróis)..Parecendo que não, já se passaram nada mais nada menos do que 20 anos - para a história, curiosamente, quando se evoca o ano 1999 e a sua importância simbólica na evolução das técnicas de filmagem, o título que surge com mais destaque é quase sempre A Ameaça Fantasma, ou seja, o episódio I de Star Wars. Lançado também na primavera de 1999 (16 de maio), seria o quarto filme da saga que George Lucas começara pelos episódios IV, V e VI. Com A Ameaça Fantasma, Lucas regressou à realização (tarefa que não assumia desde o primeiro, de 1977), para tirar partido, precisamente, do que considerava fundamental. A saber: a evolução dos efeitos especiais e as novas possibilidades de tratamento visual do peculiar universo galáctico..Duas décadas depois, será difícil não reconhecer em Matrix uma aposta de risco, quer dizer, de genuína experimentação formal que, goste-se mais ou goste-se menos, está longe de encontrar equivalência em A Ameaça Fantasma. E bastará citar um dos efeitos usados numa sequência do filme - conhecido pela expressão bullet time - para afirmar a diferença..A designação bullet time provém do modo de encenação visual de uma situação em que as balas de um tiroteio adquirem uma insólita "materialidade", através de um extremado efeito de câmara lenta. Claro que a simples alteração da velocidade de corpos e objetos constitui um dos mais primitivos efeitos especiais do cinema (as primeiras experiências datam do começo do século XX). Aquilo que encontramos em Matrix é a combinação da imagem lenta com elaborados movimentos de deslocação da própria câmara em torno de uma personagem - na prática, para lá da utilização de um cenário virtual, tal efeito resulta de um complexo registo desses movimentos que é feito, não com uma, mas sim dezenas de câmaras..Fabricando o inacreditável.Mas há mais vidas para lá dos efeitos especiais. Para os irmãos Laurence e Andy Wachowski, argumentistas e realizadores de Matrix, a garantia de meios financeiros e independência criativa por parte do estúdio produtor (Warner Bros.) era um pressuposto fundamental. E, de facto, assim aconteceu. O projeto nascera na sequência do seu primeiro trabalho de realização, Bound (entre nós: Sem Limites), um thriller de pequeno orçamento com significativo impacto comercial. No limite, os Wachowski queriam exponenciar o seu gosto pelas possibilidades de manipulação da imagem cinematográfica, desafiando as regras dominantes da ficção científica..Assim aconteceu, sempre no maior secretismo. O empenho com que os Wachowski defenderam a ideia segundo a qual era fundamental estrear o filme com o mínimo de informação divulgada (sobre a história e as suas características formais) chegou ao ponto de recusarem que o seu contrato com o estúdio contivesse uma alínea que os obrigasse a dar entrevistas durante a campanha de lançamento. Tal sentido de reserva tem sido apanágio de toda a existência dos Wachowski e, em particular, da sua condição de pessoas transgéneras - Laurence e Andy são agora Lana e Lilly Wachowski..O propósito de Matrix estava exemplarmente condensado na sugestiva frase dos cartazes do filme: "Acreditem no inacreditável". Associados a tal lema surgiam os três emblemáticos rostos, todos de óculos muito escuros, que definiam as principais linhas de ação: Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss e Laurence Fishburne..Muito popular desde 1994 através do sucesso de Speed - Perigo a Alta Velocidade, Reeves assume a personagem de Thomas A. Anderson, um programador de computadores. Na verdade, transfigura-se no lendário Neo, figura nuclear no sistema dramático do filme: é ele o líder de um movimento de resistência apostado em desafiar os poderes de um sistema de realidade virtual denominado... Matrix..Carrie-Anne Moss é Trinity e define um par romântico com Neo, se é que a noção de romantismo se pode aplicar no interior deste assombrado mundo virtual - conseguiu escapar ao domínio do sistema Matrix graças à ação de Morpheus. Laurence Fishburne é esse Morpheus que talvez possamos definir como um "cruzado" da causa humana face ao poder ditatorial do Matrix (encarnado pelo gélido agente Smith, interpretado por Hugo Weaving). Num diálogo com Neo, ele define assim a guerra com o sistema que os enclausurou: "O Matrix está em toda a parte. Completamente à nossa volta. Agora mesmo, nesta sala. Podes vê-lo quando olhas pela janela ou ligas a televisão. Podes senti-lo quando vais trabalhar... quando vais à igreja... quando pagas os impostos. É o mundo que foi colocado à frente dos teus olhos para te impedir de ver a verdade.".Homens e máquinas.Escusado será sublinhar a pertença de Matrix a uma nobre tendência das epopeias de ficção científica, de uma maneira ou de outra centradas na possibilidade de a condição humana ser superada e, de alguma maneira, dominada pelas próprias máquinas geradas pela ciência dos homens..A obra-prima de Stanley Kubrick, 2001: Odisseia no Espaço (1968), é, obviamente, uma referência tutelar dessa tendência. E há toda uma coleção de filmes centrados nos poderes virtuais dos computadores que têm pontuado a evolução técnica e temática do próprio cinema. Um deles, Johnny Mnemonic: o Fugitivo do Futuro (1995), realizado pelo pintor e escultor Robert Longo a partir de um conto de William Gibson, tem também Keanu Reeves como protagonista..Ainda no ano de 1999, David Cronenberg assinou o fabuloso e muito esquecido eXistenZ, com as ambivalências da realidade virtual a enquadrarem uma fábula cruel sobre os corpos e desejos humanos. Podemos ainda citar exemplos como os de Tron (1982) e Tron: o Legado (2010), ambos com Jeff Bridges, especulando sobre o poder da realidade inventada pelos jogos de vídeo. Isto sem esquecer, claro, o mais recente Ready Player One: Jogador 1 (2018), realizado por Spielberg a partir do bestseller de Ernest Cline..Em boa verdade, as referências inspiradoras dos Wachowski estavam longe de se esgotar no domínio específico da ficção científica (literária ou cinematográfica), envolvendo também desenhos animados japoneses (anime) e as coreografias dos filmes de artes marciais produzidos em Hong Kong. Perante algumas dúvidas do estúdio produtor, motivadas pela complexidade de conceção dos cenários e dos efeitos visuais, foi mesmo encomendado a dois autores de banda desenhada (Geof Darrow e Steve Skroce) um storyboard do filme - na prática, uma antecipação visual de cada um dos planos a filmar, num total de cerca de 600 páginas..Entretanto, a passagem dos anos apenas reforçou o perturbante poder simbólico de um filme como Matrix. E não se trata de rotular o trabalho dos Wachowski como um panfleto político "contra" entidades como o Facebook, o Instagram ou o Twitter que, como bem sabemos, para o melhor ou para o pior, transfiguraram muitas formas de relação humana e até, no limite, o conceito de identidade humana.. Matrix pertence ao domínio das grandes fábulas existenciais, afinal recuperando um modelo de narrativa moral (cautionary tale, como se diz em língua inglesa) que existe a meio caminho entre as referências que remetem para dados do mundo em que vivemos e as especulações mais ou menos transcendentais sobre a sua evolução - um outro cartaz original do filme proclamava mesmo que estava "a começar a luta pelo futuro"..Fascinante paradoxo: por um lado, Matrix instala uma inquietação existencial indissociável do aparato tecnológico que os humanos têm desenvolvido desde que o computador se tornou um objeto "natural" do nosso quotidiano; por outro lado, o próprio filme, enquanto produto industrial, nasce desse mesmo aparato e dos seus sofisticados instrumentos de trabalho. Dito de outro modo: o ponto de fuga das nossas utopias é o apocalipse.