Máscaras, viseiras, batas e botas: portugueses estão a fazer de tudo em casa
"Eu não conseguia ficar parada." Sara Gomes era só mais uma aluna da escola de costura Maria Modista, em Leiria, mas passou a ser uma entre centenas que desde a semana passada constituem um verdadeiro exército de voluntariado. A partir de casa (como a maioria), decidiu pôr mãos à obra e fazer máscaras em "não tecido", um material denominado TNT, descartável, e que ainda conseguiu encontrar num armazém da cidade. Até ao final desta quinta-feira já tinha conseguido "mais de 700 euros, entre os amigos que moram nos quatro cantos do mundo". Serve para custear o material, já que a mão-de-obra é inteiramente cedida. Por ela e pelas centenas de alunos, familiares e amigos espalhados pelo país. E esse é um exemplo que está a ser replicado por toda a parte.
A ideia nasceu quando uma médica do Hospital Curry Cabral (também ela aluna de um curso de costura) deu conta da falta de material com que os clínicos estavam a debater-se. "Primeiro falou-me das cogulas (uma espécie de carapuço que eles usam para proteger o pescoço), que não existiam à venda em lado nenhum. Perguntou-me se conseguiríamos fazer", conta ao DN Filipa Bibe, fundadora da escola de costura Maria Modista em Portugal. A resposta não foi só afirmativa como imediata. Nessa altura as várias escolas do país acabaram por fechar, e rapidamente se espalhou a mensagem por todo o país: quem tivesse o material, uma máquina de costura e vontade de ajudar a proteger os profissionais de saúde, era só pôr mãos à obra.
Filipa Bibe descobriu mais tarde um molde de máscara no Instagram, que acabaria por ser adotado pelos voluntários que se foram juntando ao projeto. "Sabíamos que não poderia ser de tecido, por causa das fibras. Por isso o importante é mesmo ser em "não tecido", com uma gramagem superior a 70%. Fizemos a experiência de o deixar dentro de um copo e não passa água nenhuma", conta a costureira, sublinhando o que é mais importante: "Vamos precisar de muitas unidades."
Depois de juntar as equipas, fazer os moldes e disponibilizá-los, foi começar a costurar. Filipa não consegue contabilizar as que já foram feitas e entregues aos médicos e enfermeiros, mas fala de "algumas centenas".
Entretanto, o molde da cogula demorou mais tempo até ser aprovado pelas várias equipas de diversos hospitais: Egas Moniz, Amadora-Sintra, Champalimaud e Curry Cabral. "Porque nada disto é tratado com os hospitais ou com as administrações, mas antes diretamente com os médicos. É uma doação que lhes fazemos", adianta Filipa Bibe.
E agora que começaram a costurar as proteções para o pescoço, as primeiras centenas vão sendo entregues. Ainda esta quinta-feira (26 de março) a médica Filipa Bargado, do Hospital Curry Cabral, foi recolher vários exemplares a casa de Filipa Bibe. O apelo da escola Maria Modista é que "quem tiver material, que vá à página, descarregue os moldes, e fá fazendo para entregar aos médicos e enfermeiros que precisem de equipamento de proteção", independentemente do local do país onde se encontrem.
A mais de 200 quilómetros de distância, no concelho de Oliveira do Bairro, e sem qualquer ligação à escola Maria Modista, Anabela Pato tem passado os dias a costurar máscaras, mas em tecido. É controverso o uso de tecido na confeção de máscaras. Segundo as afirmações de Graça Freitas, diretora-geral da Saúde, feitas há poucos dias, muitas das máscaras de tecido "nem sequer são impermeáveis, pois com a humidade o vírus passa".
Anabela Pato sabe disso. E por isso utiliza um forro em cada uma das máscaras, noutro material, permitindo a respiração. As máscaras que confeciona são laváveis. Depois de um acidente de viação que a deixou com um grau elevado de incapacidade profissional, não voltou a trabalhar. Anabela era jornalista, e tinha-se mudado para a área da comunicação empresarial quando aconteceu o infortúnio. De modo que a costura aconteceu como forma de terapia (sabia coser à máquina desde os 8 anos), mas também de conseguir algum sustento. E por isso não consegue fazer as máscaras completamente grátis. O que doa é a mão-de-obra, cobrando um valor simbólico de dois euros por casa exemplar. "É só uma ajuda para pagar o material, o tecido e os elásticos."
A ideia surgiu quando via na TV uma reportagem sobre uma iniciativa similar em Itália. Aconteceu na semana passada. Em poucos dias, costurou mais de 40 máscaras. Ainda assim, adverte: "Não substituem as da farmácia. E há quem as use por cima das outras para animar um pouco mais a situação. Como me dizem, se vamos andar protegidos que seja de forma divertida."
Jorge Guimarães e Rafael Colasso têm passado os últimos dias no ateliê, a trabalhar tanto ou mais do que antes de decretado o estado de emergência. São eles os sócios da empresa Dhotelec - corte de laser, CNC e impressão 3D, onde uma máquina está a conseguir fazer 700 viseiras por dia. O desafio chegou através de uma médica pediatra no Hospital de Santa Maria, e Jorge (licenciado em Gestão Industrial) e Rafael (arquiteto) passaram o fim de semana a pesquisar tudo o que puderam sobre o assunto: que material usar, como fazer. Decidiram usar PetG, um material lavável e reutilizável. Desenvolvido o conceito, foi "só" começar a produzir. "Fomos vendo que havia já pelo país quem fizesse através de outra técnica, usando a impressão 3D. Mas esse seria um processo que iria demorar muito mais tempo e haveria muito desperdício de material. Além disso, o lixo que se gera com isso é imenso", contou ao DN Jorge Guimarães. Ele e o sócio Rafael estão agora empenhados em melhorar o processo de produção. Em apenas dois dias conseguiram entregar algumas centenas de viseiras aos médicos dos hospitais da Cruz Vermelha (Lisboa e Setúbal), São Francisco Xavier, Curry Cabral e Beatriz Ângelo (Loures).
Até agora o material foi todo oferecido. Jorge sublinha que "até cem unidades nós conseguimos oferecer, pelo menos enquanto tivermos material. A partir daí, para maiores quantidades, a empresa vai cobrar 50 cêntimos (mais IVA) por cada viseira.
Habituados a trabalhar para o mercado publicitário e também para algumas faculdades de Arquitetura, Jorge e Rafael viram-se de repente num outro universo. Em dois dias o mundo mudou naquela pequena empresa, onde agora chegam pedidos até dos corpos de bombeiros. "Nós não vamos cobrar dinheiro a médicos, nem a enfermeiros, nem a bombeiros, porque entendemos que eles não têm de pagar para se proteger. O que pode acontecer é lançarmos algum pedido de donativo, para conseguirmos custear o material", sublinha Jorge Guimarães.
Bruno Horta uniu a comunidade maker (um grupo que junta pessoas de todos os quadrantes, apaixonadas pela impressão em 3D) para imprimir gratuitamente viseiras de proteção contra o covid-19. A partir de casa, é possível contribuir para essa causa.
Licenciado em Engenharia Informática pela Escola Superior de Tecnologia e Gestão, do Instituto Politécnico de Leiria, Bruno Horta é o fundador do Movimento Maker Portugal. Juntou essa comunidade em torno de uma iniciativa para produzir, em impressoras 3D, viseiras de proteção para os profissionais de saúde.
Bruno já estivera envolvido no esforço conjunto dos Politécnicos de Viseu e de Leiria, para criar protótipos de ventiladores. Pesquisou projetos livres de custos e de direitos de autor. E avançou.
Ao fim de algum tempo, Bruno tinha nas mãos uma proteção pronta a ser usada por profissionais de saúde, forças de segurança, Proteção Civil, lares de idosos, entre outros.
Ainda em Leiria, o município recebeu nesta quinta-feira uma oferta de cem viseiras de proteção clínica que foram entregues ao Centro Hospitalar de Leiria, para garantir as melhores condições de segurança possíveis aos profissionais daquela unidade.
A oferta dos equipamentos foi feita pela empresa Shine Media Group, que tem percorrido o país a efetuar entregas deste género de materiais.
"Senti que poderia fazer algo pela comunidade e apoiar os nossos heróis que trabalham nos hospitais", disse o CEO, Jorge Santos, acrescentando que adquiriu 1500 viseiras para distribuir de norte a sul.
Gonçalo Lopes, presidente da Câmara Municipal de Leiria, realçou o espírito solidário e a responsabilidade social que muitos empresários estão a manifestar nesta fase crítica.
O autarca salientou que na região se multiplicam as empresas que estão a ajudar, dando como exemplo o "casamento" entre o setor dos moldes/plásticos e o da confeção para produção de viseiras, fatos clínicos e máscaras, entre outros materiais de que o setor da saúde tanto necessita, registando-se também muitas ofertas neste campo a título individual.