Marriage Story, o tesouro mais bonito da Netflix

Já está no serviço da Netflix o filme mais nomeado dos Globos de Ouro, <em>Marriage Story</em>, de Noah Baumbach, destinado a entrar em muitas listas dos melhores do ano. Uma sofisticada história de amor secretamente disfarçada de "filme de divórcio".
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Depois de O Irlandês, outro jackpot para a Netflix. Chama-se Marriage Story, o novo de Noah Baumbach - o cineasta americano que mais gosta de filmar separações (com bons resultados em A Lula e a Boleia e resultados algo frustrantes em Margaret) -, crónica de um divórcio de artistas. Ele é um encenador arty de sucesso, ela a atriz que trocou Hollywood pelo teatro off Broadway em Nova Iorque.

Durante duas horas, o convite inclui os altos e baixos de uma relação que não sobrevive à paternidade, ao adultério, à falta de sexo e à guerra de egos. Mas este encenador e esta atriz, bem no fundo, continuam a amar-se e o que poderia ser uma separação amigável começa a ser um pesadelo duro para ambos: advogados que pactuam com um sistema legal implacável e um problema maior, a distância entre Nova Iorque e Los Angeles. Pelo meio, discutem, choram e recordam um amor que os fez crescer e mudar as suas vidas. A sorte é que têm ainda força para dançar, cantar e tentar sobreviver ao Dia das Bruxas.

Baumbach já veio dizer que o filme não se baseia no fracasso da sua relação com a atriz Jennifer Jason Leigh, mas mais injusto é não reconhecer uma linha de veracidade frontal. Talvez seja impossível não associar alguns tiques do próprio Baumbach à personagem de Adam Driver, aliás, um dos seus melhores amigos. Por isso, é também uma experiência de identificação bem credível, sobretudo para quem já passou pelo fim de uma relação. E aí bate forte, por vezes com um estremecimento tão duro que julgamos estar numa dimensão de cinema de transcendência humana. É precisamente por aí que Marriage Story é imensamente mais do que uma mera homenagem ao espírito de Cenas de Um Casamento, de Ingmar Bergman, ou uma espécie de atualização do espírito desse fulgurante Kramer contra Kramer, de Robert Benton.

Filmado com um trabalho de câmara tão exuberante como subtil, é um filme que através de close-ups perfeitos capta a dor das personagens, mesmo quando é sempre fiel a nunca abdicar de um humor humaníssimo, sobretudo quando caricatura os advogados implacáveis de Laura Dern (vai ser seguramente nomeada ao Óscar) e Ray Liotta (um dos grandes momentos da sua carreira). Marriage Story é, talvez por isso, uma autêntica aula magna de criar compaixão com personagens que primeiro nos irritam e depois nos conquistam, nem que para tal haja a ajuda da música de Sondheim ou da expressão corporal desajeitada que é apanágio nos atores dirigidos por Baumbach.

E aí palavra para Adam Driver, provavelmente o grande vencedor desta temporada de prémios com uma interpretação de antologia, mas também para Scarlett Johansson, aqui a lembrar-nos que vale muito mais do que a sua super-heroína banal dos Vingadores, da Marvel. Não deixa de ser irónico que foi preciso juntar a Black Widow e o supervilão Kylo Ren, de Guerra das Estrelas, para a mais bela das sinfonias de miséria íntima dos últimos tempos. Que ninguém duvide: está aqui um objeto de uma infinita tristeza e de uma perturbante carga comovente. Depois de A Lula e a Baleia e Frances Ha, Noah Baumbach sobe ao Olimpo dos grandes criadores do cinema americano, mostrando ter um engenho quase poético na escavação do doloroso. Não é por acaso que é o campeão das nomeações dos Globos de Ouro. Só é uma lástima não se ter estreado nos cinemas nacionais...

**** BOM

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