Longe de ser a Marion Cotillard dos anúncios da perfumaria, a mulher que temos à nossa frente não está distante nem apresenta o pedestal de diva que se supõe. Também não é isenta de allure de estrela de cinema. Impõe respeito naquele terraço de um hotel de luxo, em Cannes, sobretudo por um sorriso que não é forçado, nem demasiado aberto. Como costuma acontecer nestes encontros com a imprensa, o seu discurso é o de uma artista criteriosamente obcecada com o valor artístico das obras que faz. Nesse sentido, é uma criadora e, em Irmão e Irmã, de Arnaud Desplechin, o caso ainda é mais evidente, ela que interpreta uma atriz de teatro que ao longo dos anos se afastou violentamente do seu querido irmão. Agora, os dois são como que obrigados a cruzar-se depois de um acidente de viação dos pais. Uma interpretação que destila ódio e amor, um hino à condição da maior fragilidade humana. É das suas interpretações para o panteão, bem perto dos feitos em La Vie en Rose (2007), A Emigrante (2013) ou Tão Só o Fim do Mundo (2016).."Não tive medo deste papel porque não uso a minha vida para construir as personagens. Sou das que acho e sinto que não é preciso pôr nada de nós próprios se a personagem estiver bem escrita", começa por dizer. São palavras da atriz-coragem, da atriz de filmes como Pequenas Mentiras entre Amigos ou Dois Dias, Uma Noite sobre ser um poço de dor. E prossegue: "Este é um filme que fala de saúde mental e é importante debatermos estes temas! O público sente-se perto de alguém que se abre desta maneira e que revela estar a passar por problemas. Sentimos que não estamos tão sozinhos nas nossas dores e empatizamos com esse problema... É importante também perceber que isto é algo que pode ser resolvido. Esta mulher não é louca, provavelmente foi educada por pessoas que a amavam, mas a linha é ténue, de como quem nos ama pode também destruir... A chave deste filme é o pai, alguém que admira a filha, que a elogia, mas que, ao mesmo tempo, põe para trás o seu outro filho. E isso, por muito que ele não perceba, acaba por a magoar. A disfunção vem daí... A maneira como aqueles irmãos, em crianças, se relacionaram na infância acabou por marcá-los, formou as suas personalidades. No meu caso, fui muito afortunada por ter pais com os quais pude falar sobre tudo. Tive pais que me ouviram a mim e ao meu irmão.".Curiosamente, para criar a tensão que o filme pede, Marion decidiu não estar muito tempo durante a rodagem com Melvil Poupaud, o ator que interpreta o seu irmão. De notar que são raras as cenas em que os dois contracenam..Apesar da depressão e de uma medicação forte, a personagem de Marion é uma atriz que vai para o palco e dá tudo de si. Será que na sua cabeça está a interpretar uma atriz talentosa? "Decidi que não seria uma atriz muito má! [risos] Ela é alguém que representa na vida real, como que uma fachada para cobrir os seus desastres interiores.".Este encontro com a atriz oscarizada foi em maio e a situação dos artistas iranianos perseguidos pelo regime estava já ao rubro e, por isso, Marion lembra a importância de, pela arte, poder haver ativismo: "Em certos países não nos podemos expressar e poder fazê-lo pelo cinema é um ato de heroísmo. Isso traz-me esperança.".Logo a seguir, aborda um problema que era positivo poder convocar alguma esperança, a falta de público para um cinema de autor e de franjas: "É uma situação muito grave. A minha única resposta é que o tempo é que vai dizer se isto é para continuar ou não. Já se disse muitas vezes que o cinema está para morrer, seja quando foi o advento do vídeo, seja agora com as plataformas, mas não é isso que vai matar o cinema. A verdade é que precisamos de histórias e da visão de artistas que nos ajudem a questionar e a perceber o mundo, bem como a rir, a vibrar, a amar... O cinema é um espelho tão belo. Temos é de educar as novas gerações: o cinema não é para ser visto num ecrã de iPhone ou de um computador. A filha de uma amiga minha tem 20 anos e no outro dia mostrou-me no YouTube como podemos acelerar a velocidade dos filmes. Ela só vê os filmes a mais de 1,5... É como se fosse o tempo de um jogo de consola! De doidos! Assusta-me o que essa velocidade faz aos cérebros deles. Isso é muito perigoso! Temos de fazer algo! Não pensem que sou pelo slow-cinema, sou apenas pelo ritmo certo.".Ao fim destes anos continua a escolher os papéis segundo uma regra que criou: "Ou o papel me entra pelas veias ou então não aceito. Não sinto aquela necessidade de fazer este ou aquele papel. No fundo, o ser humano é ao mesmo tempo comum e diferente. Há sempre uma singularidade muito particular. Sou uma atriz que acredita que todos temos imensas camadas e há tanto para explorar. Sinto também que nos podemos relacionar com as personagens mais peculiares na medida que, de certa forma, os medos e as alegrias são os mesmos.".A atriz lembra também que para todo o processo destas personagens ostensivamente fortes não precisa de se proteger: "É muito importante estar ligada ao mundo, às pessoas. Só por ser celebridade nunca quis ter qualquer tipo de proteção... Não quero estar distante, quero ter uma ligação simples com os outros. Não há pessoas mais ou menos importantes. Todos temos o nosso lugar, por muito que às vezes seja complicado encontrá-lo. Os atores que se consideram mais importantes, acabam por ficar desligados. Desligados dos outros e de si próprios.".Para 2023, este registo mais sofrido e trágico terá uma pausa, será Cleopatra no dispendioso Astérix e Obélix: L"Empire du Milieu, realizado pelo seu marido, Guillaume Canet, e a duquesa Solange D"Ayen, pequeno papel em Lee, biografia da fotógrafa Lee Miller, a cargo de Kate Winslet.