Mariana quase que fez a primeira corrida no ventre da mãe Albertina Machado, que se despediu das estradas (e pistas) em janeiro de 2000. "Foi o corta-mato de Oeiras e já estava grávida. [Pausa, e contas pelos dedos] Não, engravidei logo a seguir", conta a antiga campeã de meio-fundo do Sp. Braga. A progenitora encerrou uma longa carreira: começou no bracarense CD Patrimonense em 1979 e, após uma breve passagem pelo FC Porto (1981), só terminou aos 38 anos, após 18 épocas a correr com a camisola vermelha e branca. A 12 de novembro do ano 2000, nasceu a filha mais velha (a outra não seguiu a passada da mãe), que, 19 anos depois, já é uma das grandes figuras do atletismo português e internacional. Entre o curso de Medicina na Universidade do Minho (2.º ano) e as dez sessões de treino semanais (um dia, somadas todas as horas), a carga sobre os ombros e as pernas tem tendência para aumentar e Mariana sente a pressão. E lida o melhor que pode - e muito bem, olhando a títulos e progressão educativa. "Gosto mesmo é de praia. De ver o pôr do Sol. De correr na praia.".Não se veja nesta afirmação da jovem mulher Mariana Machado Carvalho uma atitude desfocada. É apenas uma rapariga que tem a vida toda medida em tempos, períodos e resultados, na academia e na competição, que muitas vezes gostava de ter mais tempo para se divertir. Aos 19 anos, parece uma afirmação saudável..A mãe Albertina sabe que este equilíbrio é fundamental, apesar de no seu tempo o desporto ser "um escape, para ter mais liberdade, ir para um hotel, conseguir uma viagem". "A Mariana tem uma personalidade madura e sabe o que quer. É muito ambiciosa, perfeccionista, quer fazer tudo bem. Admiro-a pelo espírito de sacrifício. Não tem propriamente carências afetivas ou financeiras, não tem necessidade do atletismo para ganhar a vida. Mas sai do conforto de casa e vai à luta", diz com o afastamento possível entre uma mãe e uma filha.."É muito complicada a vida da Mariana, entre estudos e competição. Para estar aqui [na entrevista, às 09.30], teve de ir treinar mais cedo. Amanhã tem aulas das 09.00 às 19.30. Hoje era o dia mais livre, mas ter estas entrevistas [já tinha outra agendada para a tarde] sobrecarrega-lhe o dia. Tem um exame e vai passar o dia na biblioteca", explica a mãe, que puxa um assunto que é discutido em casa com o pragmatismo possível. "O tempo ocupado e o número de sessões de treino vão aumentar. E estudar pode fazê-lo aos 30 ou 35 anos, correr não. Vou falando com ela, porque acho que não vai ser compatível fazer as duas coisas em simultâneo em breve.".Voltamos à Mariana: "Treino dez vezes por semana, em horas deve equivaler a um dia. Mais de 20 horas, seguramente. Nesta manhã foi um treino de ativação, de apenas uma hora. Foi às 08.00. Porque logo tenho séries, que servem essencialmente para controlar tempos. Séries de 400 metros, séries de mil. O que a minha mãe diz, sobre a decisão de ter de optar, ou universidade ou carreira desportiva, é verdade. É supercansativo, as pessoas dizem: "Tens conseguido." Mas é muito esgotante física e psicologicamente. E a exigência vai ser maior tanto na faculdade como na competição", analisa..Mariana optou por Medicina porque era uma das possibilidades de conseguir formação superior numa área ligada ao desporto. "Só decidi no último dia de candidaturas. A Sameiro Araújo [treinadora multipremiada que já orientara a mãe] estava ansiosa: "Mariana, é o último dia e ainda não te inscreveste"", ri-se, agora, a atleta e estudante..Na ligação entre a Mariana candidata a médica e a Mariana candidata a medalhas e triunfos no atletismo, há a Mariana cidadã, amiga, filha, irmã. A cidadã, a individualidade. Uma terceira via, a pessoal. "Tento ter outra vida. Tenho um grupo de amigos que me compreende e sabe que não posso fazer aquilo que fazem para se divertirem. Abdico de quase tudo, mas tento ter 10%, ou menos, do tempo dedicado à diversão. Neste ano, as férias foram menos de 15 dias e nunca fiquei em casa, saí muito. Com amigos de Lisboa, do Porto, no atletismo acabamos a fazer amigos em todo o lado", diz Mariana, a pessoa..E quem é a Mariana Machado Carvalho, bracarense orgulhosa? "Gosto muito de praia e de correr na praia. De ver o pôr do Sol na praia. Dos convívios com a família à lareira, no Natal. Como não estou tanto tempo como gostava com eles, tento aproveitar todos os momentos que tenho com a família. E com os amigos também", diz, de olhos a brilhar..A aposta nos 1500 metros.O mais recente sucesso desportivo de Mariana deve ter sido, igualmente, o último fora das pistas. A atleta, com o 3.º lugar e a medalha de bronze decisiva para Portugal ficar no último lugar do pódio nos Europeus de corta-mato, que decorreram no Parque da Bela Vista, em Lisboa, há uma semana.."Acabou-se o crosse. Agora vou apostar mais na pista e especialmente nos 1500 metros. O crosse foi bom para ganhar músculo", revelou a atleta de morfologia franzina. "Até aqui, esta época apostei mais nos 3000 porque tinha grandes hipóteses", prossegue. E a aposta pagou bem: "Fui medalha de prata nos 3000 m [julho, Europeus de sub-20], e com uma queda a meio. Caí a meio, levantei-me e ainda consegui o 2.º lugar, foi espetacular", relembra. "O próximo ano não vai ser assim", aponta..Curiosamente, Mariana vai centrar-se na distância em que já bateu o máximo da mãe - 4.10,61m contra 4.13,35m. "Nos 800 e nos 3000 metros, ainda tem melhores tempos do que eu", sorri. Mariana tem como melhores tempos, respetivamente, 2.06,97m e 8.58,61m, contra os 2.04,1m (1985) e 8.52,02m (1987) da mãe Albertina. "Eu sou mais rápida e a minha mãe era força, mas, atenção, também era muito rápida", resume a Machado filha..Albertina e Mariana são craques do meio-fundo e do fundo (no caso da progenitora). A filha tem um currículo bem mais preenchido do que a mãe tinha aos 19 anos, o que indicia um futuro bem mais dourado em honrarias desportivas - estamos a falar de duas das mais premiadas desportistas do atletismo português..Mariana: prata nos 3000 m do Europeu de Juniores de 2019, e 4.ª nos 1500 m no mesmo dia, medalha de bronze no Europeu de Juniores de corta-mato de 2019, 4.ª no Mundial de Juniores de 2018 e 7.ª no de Juvenis de 2016, pilar da seleção de Portugal que neste ano ganhou a I Liga do Europeu e subiu à Superliga, sendo 2.ª nos 3000 e 3.ª nos 1500 m, recordista nacional de juniores (ar livre) de 1500 m e de juvenis (pista coberta) de 800, 1500 e 3000 m, além de ter sido duas vezes campeã de Portugal de crosse curto, ainda como júnior, e 14 vezes campeã nacional de sub-23, juniores e juvenis (ar livre e pista coberta) de 800 m (3), 1500 m (6), 3000 m (1) e corta-mato (4). Albertina: três Jogos Olímpicos (800 m, 10 000 m e maratona), duas vezes campeã nacional de Corta-Mato e dez presenças no pódio entre 1980 e 1993, quatro vezes campeã da Europa de Corta-Mato pelo Sp. Braga.."Estou muito feliz por ter decidido ficar no Sp. Braga, apesar de ter sido convidada por vários clubes. Mudar de equipa não mudava nada na minha vida, mantinha-me em Braga, era só correr com outra camisola", conclui a determinada atleta que nem Benfica nem Sporting conseguiram contratar. Uma jovem de 19 anos que gosta de correr é na praia, onde o tempo que controla a sua vida para.