Maria Rueff teve um enfarte do miocárdio, em novembro, que a obrigou a desacelerar. Três meses depois, a covid-19 obrigou-a a ficar ainda mais tempo em casa, sobretudo porque é uma pessoa de risco. Está a apreciar esse tempo e aprendeu novas ferramentas para continuar a fazer o programa Cá por Casa, agora, Quarentona, mas tem saudades do estúdio. O fim do estado de emergência não significa para a atriz o abrandar dos cuidados de prevenção da doença, antes pelo contrário..Como tem sido a vida nestes dias? Tivemos a sorte de continuar a fazer o programa de televisão, sinto-me absolutamente privilegiada por a RTP nos desafiar a continuarmos o Cá por Casa. Nós, atores, devemos ser uma das partes mais castigadas com a pandemia, com a incerteza em saber se público voltará às salas. Sobretudo os espetáculos que são comerciais, muitos de comédia, que é o que faço, e que dependem da bilheteira, não sei se será viável com todas estas regras de distanciamento..Como é que se pode dar a volta à situação? Francamente, não sei responder e poucas pessoas o saberão. Tudo isto é completamente novo para toda a gente, mesmo para quem tem a responsabilidade destas matérias na mão. É urgente acabar com a burocracia que está a entravar o apoio financeiro. Por outro lado, ninguém quer viver só de apoios, as pessoas têm o desejo absoluto de voltar ao palco e às salas, de estar com o público. Salas com uma maior distância entre as pessoas, não sei se o dinheiro das bilheteiras será suficiente para as despesas. As pessoas não têm noção, mas tudo é caro no teatro: os equipamentos, a iluminação, os figurinos, o ordenado dos atores e dos técnicos, tudo isso é necessário num espetáculo. É navegação à vista e esperar que a percentagem de contágios se mantenha baixa, até que venham a tal vacina e o tal remédio..A vacina é a única esperança para a retoma? É a minha esperança, obviamente as salas de espetáculo vão tentar retomar devagarinho, mas há outro grande vírus e que se chama medo. Combater o medo do público, e dos próprios atores, que terão de contracenar a uma distância curta uns dos outros, não é fácil, mas talvez seja muito cedo para prever o que irá acontecer. Neste momento, o que estamos a tentar fazer é futurologia, e isso não sei fazer, confesso..Além da continuação do programa televisivo, iniciou um podcast com a Ermelinda. A Antena 1 tinha feito o pedido de um podcast e, com a pandemia, surgiu a proposta de recuperar a Ermelinda, uma a personagem de que muita gente tinha saudades. Para a rádio também gravo de casa, já gravava, não é só o podcast da Antena 1, também para a RDP África, onde mantenho o Zé Manel Taxista às segundas-feiras..O trabalho da Maria Rueff não mudou assim tanto. Essencialmente, a mudança foi o facto de não ir ao estúdio. No teatro, só tinha programada uma peça a partir de agosto, não sei se nessa altura estará tudo mais normalizado. Não sei exatamente como será, o teatro e a dança vão ser mais difíceis de retomar. A sua própria prática implica contracenar, proximidade, o toque, falar alto e projetar a voz, o que envolve mais gotículas, mas, como digo, navegação à vista..Foi difícil ficar em casa? Não e, no meu caso, precisava deste tempo, de estar em casa, de estar comigo, de pôr em ordem todas aquelas gavetas que, com o atropelo dos dias, vão deixando de estar organizadas. Acho que aconteceu com muitas pessoas. Muita gente terá aprendido o gosto de voltar a estar consigo, a dar-se tempo. E, na minha vida, aprendi a ver sempre o lado positivo das coisas, é a missão dos cómicos. À parte de não conseguir nunca abstrair-me do que se passa, mas esta deve ser uma inquietação geral..Do que é que sentiu mais falta? De estar na natureza, das caminhadas, de estar presencialmente com a minha família e os meus amigos, de coisas simples, tenho uma vida muito simples. Dos afetos, temos de reaprender os afetos, ainda por cima, como povo latino, somos muito de gestos, de abraçar, de beijos, de ter os amigos por perto. Vai ser difícil manter a distância física, o não toque, mas são reaprendizagens e regras que temos de cumprir, um dia de cada vez..Distância física, não isolamento social. Sim, prefiro dizer distância física, até acho que estamos mais próximos de algumas pessoas. Dou por mim a telefonar a amigos a quem não falava há muito tempo e àqueles primos mais afastados e que acabamos por recuperar..Teve de estudar muito para usar as novas ferramentas? Muito, em informática sou do paleolítico. Aprendi a gravar com o telemóvel, a iluminar com os candeeiros que há em casa, a enviar os vídeos. As novas gerações estão muito habituadas a estas ferramentas, a usar os telemóveis para as instastories, há toda uma nova logística e tecnologia que desconhecia, foi uma aprendizagem..Uma aprendizagem a vários níveis. Uma das coisas interessantes é a aprendizagem que esta quarentena veio proporcionar. Voltar ao que as nossas avós e mães nos ensinam - fazer pão e bolos -, ganhar prazer na forma de ocupar o tempo e de estar em casa, a fazer tricô, a fazer as grandes arrumações. Nesta época, lembro-me de a minha mãe fazer as limpezas da Páscoa, limpar tudo de alto a baixo. De repente, passámos a fazer todas essas coisas, é como se tivéssemos recuado no tempo..Algumas destas ferramentas utilizadas nesta fase são áreas a explorar? Francamente, para mim, são incógnitas. Na rádio, quase toda a gente grava em casa com as tais ferramentas. Quanto ao humor, ao que temos feito na Quarentona, não sei como é que a RTP vai voltar pegar no programa Cá por Casa, tenho a ideia de que mais tarde ou mais cedo voltaremos ao estúdio. Tenho muita saudade do estúdio, o teatro é para ser feito presencialmente, fazer a esta distância é um recurso. Sinto muita falta da contracena com o Herman, e com os outros meus colegas, é completamente diferente..Cumpriu à risca estes 45 dias do estado de emergência? Sim, ainda por cima, como sou de risco, não pude mesmo sair. Fui às compras as vezes e na quantidade necessária, devo ter saído duas ou três vezes, para me abastecer..Está numa fase de recuperação de um enfarte que sofreu em novembro. Como é que tem sido a reabilitação? Continuo a fazer os exercícios de reabilitação que fazia no hospital, só que em casa. Mesmo em plena pandemia, o Hospital de Santa Marta manteve todos os cuidados, foram irrepreensíveis, todas as semanas telefonavam, uma preocupação constante de toda a equipa. Eu e todas as pessoas que estavam no meu grupo de reabilitação, não foi por ser conhecida. Além dos doentes da covid, o Serviço Nacional de Saúde [SNS] teve espaço para acompanhar os outros doentes, isto é notável num país como Portugal. Espero que uma das lições desta pandemia seja acarinhar o que temos de mais precioso, e o SNS é com certeza uma das coisas mais preciosas..Já tinha essa perceção? Sim, completamente, tenho dito sempre que são excecionais. À parte dos hospitais e dos edifícios estarem um nadinha decadentes, em relação a serviços humanos, qualidade humana, somos dos melhores do mundo. É dito por toda a gente e, neste momento, reconhecido mundialmente. E eu pude testemunhar há cinco meses a qualidade humana dos nossos profissionais, e continuo a testemunhar, são de uma atenção e de um cuidado excecionais..Estende os elogios à forma como a população portuguesa reagiu ao aparecimento de uma doença completamente desconhecida? Nós temos uma grande sabedoria, o Presidente Marcelo tem apelado a esse lado da nossa história, à capacidade de reagir em situações-limite, já passei com os meus pais a descolonização. Temos uma grande sabedoria e uma genuína solidariedade, generosidade, compaixão e atenção aos outros. Não me admira que nos tenhamos comportado desta maneira..E agora? A segunda fase será combater o medo, saber se encaixámos a nova disciplina a adotar na rua, nos espaços fechados. O dia em que estamos a dar esta entrevista está lindíssimo, com sol, apetece ir para a praia, para o campo, mas não podemos. Encaixar esta nova disciplina é difícil..Vamos continuar a portarmo-nos bem? Somos latinos e vamos do 8 ao 80, o meu medo é que, nesta abertura, pelo grande desejo de retomar a nossa normalidade, nos esqueçamos da disciplina que nos foi pedida, o que se chama "liberdade com responsabilidade". Depende da consciência de cada um. Somos um grande povo e saberemos dar a volta de alguma maneira..Algo a que tenha estado mais atenta? Observar a natureza, ainda agora está a acontecer uma sinfonia de passarinhos em frente à minha casa; também ao silêncio, mas são tudo coisas a que estou atenta normalmente e das quais tenho necessidade. Estávamos a atingir um nível absurdo de poluição, não apenas ambiental: poluição sonora, de comportamento, de excentricidade, das pessoas mais agarradas ao parecer do que ao ser. Todo este tempo deu-nos espaço para podermos voltar ao essencial..Mudou alguma coisa desde segunda-feira? Não, continuei com o mesmo modelo, continuar a trabalhar em casa quem pode. Foi-nos pedido contenção e ficar em casa sempre que não for necessário sair à rua.