Maria do Mar ocupa no nosso cinema um lugar único e permanente, como uma das obras de segredos mais fechados e de milagres mais abertos." Assim terminava João Bénard da Costa, antigo diretor da Cinemateca, o seu texto, escrito em 2000, sobre o filme mudo de Leitão de Barros. Já o atual diretor, José Manuel Costa, diz-nos que é "um bom exemplo de um cinema a redescobrir. Um exemplo que é tanto da força e da variedade deste cinema como da sua resistência às fragilidades e a tudo o que lhe foi adverso. Uma daquelas "pontas perdidas", de que a história também ficou recheada, em que, mercê do contexto, algo de surpreendente não pôde, na altura, ter o seguimento para que apontava." Falamos, claro, das privações do cinema português, e de uma obra de 1930 que vai dar início a um programa dedicado ao mar. O filme-concerto Maria do Mar acontece neste sábado, no Teatro São Luiz, com a música a cargo da Orquestra Sinfonietta de Lisboa, sob a direção do maestro Vasco Pearce de Azevedo, que interpretará a partitura original composta por Bernardo Sassetti..É também por ele que esta sessão é especial. Para o compositor e pianista que morreu em 2012, aos 41 anos, este foi um trabalho marcante, que resultou de uma encomenda da Cinemateca em 1999. "Sem qualquer sombra de dúvida terá sido um dos projetos musicais mais ambiciosos e importantes do Bernardo Sassetti. Bastava ouvi-lo falar da música do Maria do Mar para se perceber o carinho que ele tinha pela partitura. E o entusiasmo que demonstrava de cada vez que surgia a possibilidade de se voltar a apresentar o filme com a sua música era contagiante!", recorda Vasco Pearce de Azevedo, que ajudou Sassetti a definir a instrumentação e, juntamente com ele e Luís Tinoco, orquestrou a versão instrumental alargada..Maria do Mar apresenta-se ao espectador como um "documentário dramatizado da vida dos pescadores da Nazaré". Mas o que se segue a essa nota de abertura tem mais de lírico e de influência do cinema soviético do que se poderia esperar de uma humilde câmara apontada a uma comunidade piscatória portuguesa. Há detalhes humorísticos, sim, mas o que define a narrativa de uma ponta à outra é a angústia da relação com o mar: desde a assombrosa sequência de um naufrágio, cuja ausência de meios para filmar a tempestade marítima encontrou solução criativa em grandes planos dos rostos das mulheres com o coração nas mãos, entre preces e horror ("paisagem humana e natural numa danação sacral", escreveu Bénard da Costa), ao amor que une os filhos de duas famílias hostilizadas pela fatalidade desse mar. "A minha principal preocupação foi sempre o respeito pela realização de Leitão de Barros, na criação de temas musicais que pudessem acompanhar o fluxo das imagens, algumas delas de uma beleza, expressão e sensibilidade como nunca antes vi em cinema", palavras de Sassetti, que achava particularmente encantadora a cena em que os apaixonados, Maria e Manuel, se encontram na fonte..Na cópia digital restaurada que foi mostrada à imprensa, a banda sonora gravada que acompanha as imagens é exatamente esta partitura do compositor, com o próprio ao piano. Uma belíssima sonoridade que não exacerba as emoções mas procura a harmonia com a luz ou a escuridão de cada momento. Ao vivo, pela Orquestra Sinfonietta de Lisboa, promete ser ainda mais envolvente..Este cineconcerto não é um ato isolado. Assinala o arranque do projeto FILMar, uma iniciativa levada a cabo pela Cinemateca, que envolve uma série de ações até 2024. O coordenador, Tiago Bartolomeu Costa, explica: "O projeto FILMar tem como objetivo principal a digitalização de 10 mil minutos de cinema português sobre o mar, ou que envolva a relação com o mar, nos mais diferentes géneros (ficção, documentário, atualidades, animação, filmes de promoção turística, de indústria, de propaganda...), compreendendo a seguinte divisão: 7 mil minutos para longas-metragens e 3 mil minutos para curtas. Esta digitalização permitirá um conhecimento mais aprofundado do que foi a produção cinematográfica em Portugal, a partir de uma linha que é estruturante e sobre a qual se encontram exemplos desde a chegada do cinema ao país.".Por sua vez, o projeto desenvolve-se no âmbito de um programa (EEA Grants) que vai além do trabalho de digitalização: "EEA Grants é um mecanismo financeiro europeu, com a participação de Noruega, Islândia e Liechtenstein, para, durante três anos, e em colaboração com o Instituto Norueguês de Cinema, se dar a conhecer o património fílmico relacionado com o mar, através de seminários, retrospetivas, edições DVD e catálogos. A partir de 30 setembro, haverá ainda um programa de atividades com diferentes parceiros nacionais - festivais, cineclubes, museus, distribuidores, projetos pedagógicos - para apresentação de filmes, organização de debates, projetos de investigação e exposições", esclarece Tiago Bartolomeu Costa..No fundo, uma grande operação que escolheu Maria do Mar como emblema. Filme que tem uma edição DVD da Cinemateca prevista até ao final do ano (com a referida partitura que inclui Sassetti ao piano), e que, no suporte digital, chegará muito mais longe no propósito de divulgação da memória coletiva, nomeadamente entre os mais jovens - não é por acaso que, amanhã, uma parte da sala do São Luiz está reservada a alunos de escolas secundárias.."Gostamos de dizer que esta é a joia da coroa deste programa, mesmo que o seu processo tenha começado muito antes. Afinal, o restauro do filme começou em 2000, primeiro numa cópia de 35 mm, e agora numa cópia digital. Mas a verdade é que não existem muitos filmes que resumam, de modo tão coeso, o papel que o cinema teve na construção de narrativas que aliassem o território e a paisagem com inventividade, de forma ampla e inspiradora, nomeadamente no atestar da evolução das organizações sociais e comunitárias, das condições laborais e de vivência, da relação telúrica e transcendental entre a Natureza e o Homem. Trata-se de um extraordinário exemplo que inscreve o cinema português nas vanguardas europeias, e que, pela sua singularidade, vê-se em diálogo, mais de 80 anos depois, com a obra de um compositor como Bernardo Sassetti, que nele se inspirou para conceber uma das mais fulgurantes partituras do cinema português." Tiago Bartolomeu Costa vê aqui oportunidade de provar que filmes como este não esgotam as possibilidades do restauro e a redescoberta do património cinematográfico por parte dos novos públicos..É aí que a missão da Cinemateca, através do ANIM, se revela crucial. Senão veja-se como o projeto FILMar, numa coincidência de calendário, acaba por integrar um programa ainda maior, intitulado A Season of Classic Films. Sobre ele falou-nos José Manuel Costa: "É um programa lançado pela Associação das Cinematecas Europeias, com o apoio do MEDIA (Europa Criativa) para promover o conhecimento da história do cinema europeu, e da sua diversidade, junto das novas gerações. Na progressiva reabertura das salas de cinema depois do fecho total devido à pandemia, a ideia foi a de escolher filmes importantes para os quais seriam organizadas sessões especiais em sala, e, para além disso, divulgações em acesso livre, por streaming, em jornadas concertadas em toda a Europa." Uma delas vai acontecer já no próximo dia 23, com Maria do Mar..Mas para o diretor da Cinemateca Portuguesa o importante é que "há aqui um contexto ainda mais geral: aquele que tem que ver com a digitalização dos nossos filmes em alta definição, agora finalmente à beira do que se espera vir a ser um plano global e intensivo." Caso para dizer que as Cinematecas dão as boas-vindas aos suportes do futuro para difundir o passado..dnot@dn.pt