"Aprende-se a gostar de leitura como se aprende a gostar de certos alimentos"

"Ler: arte ou ciência? Essa não é a questão" é o título de mais uma conferência do ciclo "Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento", organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. Palestra de Maria de Jesus Cabral, professora na Universidade do Minho, pode ser vista hoje, às 18h00, via Zoom.
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Todos os estudos apontam para fracos hábitos de leitura em Portugal, sobretudo comparando com outros países europeus. Vê alguma explicação óbvia para esta situação, ou é resultado de múltiplas razões?
O decréscimo dos hábitos de leitura em Portugal - a situação caracteriza também, mutatis mutandis, outros países europeus, como o revelam o aumento de campanhas e de ações de incentivo à leitura - é um fenómeno de índole social. Destacaria três evidências que nas últimas três ou quatro décadas alteraram não só o que lemos, mas como lemoshoje: 1. A fraca relação com os livros nas instituições - a Escola, as bibliotecas - e fora delas; 2. O recuo de uma cultura literária associada à aura das Letras e das Humanidades; 3. A evolução e as transformações operadas no domínio dos suportes da mensagem. E acrescento uma razão fundamental, porventura transversal às precedentes: a aceleração e a dispersão do nosso quotidiano. Ora, o tempo da leitura é por natureza recolhido, interiorizado - e por essa razão sempre silencioso, independentemente do suporte. Há algo de inadiável no ato de ler que é o envolvimento do leitor com o texto no presente da leitura. Esse presente da leitura é um tempo enraizado em nós, como dizia Santo Agostinho do amor. Por essa razão ler pode até constituir um antídoto ao frenesim e ao ruído. E esse antídoto, está dentro de nós...

Algumas pessoas insistem em defender a leitura meramente técnica, de livros que lhes reforcem competência profissionais. Mas desistir da boa literatura, das grandes obras de ficção, é empobrecedor, até do ponto de vista de uma maior preparação pessoal, certo?
A leitura é uma questão de gosto e de sensibilidade, mas também de escolha e de circunstância. Mas o ato de ler é também um exercício mental, que ativa mecanismos cerebrais complexos, como o têm revelado trabalhos recentes na área das neurociências, como Les Neurones de la lecture (2007) de Stanislas Dehaene. Fruto de um trabalho pluridisciplinar que envolveu engenheiros, psicólogos e linguistas, este livro mostra-nos (de forma teórica como de forma empírica) o modo como a leitura transforma uma série de regiões cerebrais, como a aquisição da linguagem falada interfere na capacidade futura de leitura, e como a leitura beneficia por sua vez a codificação da linguagem falada. O que estes trabalhos têm de interessante é que fazem vacilar a (pseudo) separação entre leitura técnica e leitura de ficção. Do ponto de vista da aquisição de uma maior proficiência de leitura, direi até que, pelo seu maior grau de complexidade e de riqueza semântica, ler textos literários potencia abordagens mais produtivas de textos técnicos. Assim o percebeu a Medicina narrativa ao introduzir o saber literário na formação médica, com o objetivo claro de contrabalançar o modelo da "nova medicina", arrimada à técnica e à maquinaria. Rita Charon, mentora desta abordagem, faz questão de enfatizar o valor diferencial da imaginação no processo de decisão clínica.

Que aconselha a pais que queiram incutir nos filhos ainda pequenos o gosto pela leitura?
Parece-me que a palavra chave aqui é gosto. Aprende-se a gostar de leitura como se aprende a gostar de certos alimentos. Doseando, experimentando, despertando as papilas gustativas e aquilo que a se chama desejo. Há toda uma raiz comum, aliás, entre saber e sabor bem explorada por Roland Barthes no Prazer do texto. Por outro lado, aprender constitui talvez aquilo para que estamos mais naturalmente predispostos, se considerarmos que somos o animal mais dependente à face da terra... E como se aprende, desde a mais tenra idade? Por estímulos sensoriais e por reflexos endógenos. O primeiro de todos é a imitação (como evidencia Aristóteles na Poética).Não são necessários, por isso, grandes artimanhas nem manual de instruções...

Recorda-se dos seus primeiros passos como leitora? O que começou por ler e como foi descobrindo, por exemplo, os clássicos?
Os meus primeiros passos como leitora situam-se antes da aprendizagem formal da leitura. Lembro-me do corpo, da voz que contava, da atmosfera envolvente, e que nunca resultava da mesma maneira. A minha avó, por exemplo, lia como o nariz em cima do livro, e eu achava isso muito curioso. Só mais tarde percebi que ela via mal, e que decifrava pior (a iliteracia, é bom não esquecer, era canónica, no nosso país, há duas gerações atrás), mas a magia era total! Anos depois, quando comecei a ler por mim própria, lembro-me que fiquei muito intrigada com aquela passagem do Principezinho em que o desenho duma caixa vazia satisfaz a insistência do pequeno herói que queria ver a sua ovelha. É verdade que mais à frente o autor diz que "o essencial é invisível aos olhos". Mas também é verdade que, por sentenças dessas, Saint-Exupéry foi rotulado de "moralista", quando, na realidade, também sugere (ou adverte para) o perigo do imediatismo (o "falso chapéu" no princípio do livro é genial). Walter Benjamin tem um texto belíssimo, "A caixa de leitura" (Infância berlinense) em que fala da leitura (e da escrita) como hábitos de efeitos duradouros. Creioque, de certa forma, a caixa vazia preludia o meu interesse pela questão da ficção, que outros "clássicos" como Mallarmé ou Pessoa me têm permitido explorar.

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