"Aprende-se a gostar de leitura como se aprende a gostar de certos alimentos"
Todos os estudos apontam para fracos hábitos de leitura em Portugal, sobretudo comparando com outros países europeus. Vê alguma explicação óbvia para esta situação, ou é resultado de múltiplas razões?
O decréscimo dos hábitos de leitura em Portugal - a situação caracteriza também, mutatis mutandis, outros países europeus, como o revelam o aumento de campanhas e de ações de incentivo à leitura - é um fenómeno de índole social. Destacaria três evidências que nas últimas três ou quatro décadas alteraram não só o que lemos, mas como lemoshoje: 1. A fraca relação com os livros nas instituições - a Escola, as bibliotecas - e fora delas; 2. O recuo de uma cultura literária associada à aura das Letras e das Humanidades; 3. A evolução e as transformações operadas no domínio dos suportes da mensagem. E acrescento uma razão fundamental, porventura transversal às precedentes: a aceleração e a dispersão do nosso quotidiano. Ora, o tempo da leitura é por natureza recolhido, interiorizado - e por essa razão sempre silencioso, independentemente do suporte. Há algo de inadiável no ato de ler que é o envolvimento do leitor com o texto no presente da leitura. Esse presente da leitura é um tempo enraizado em nós, como dizia Santo Agostinho do amor. Por essa razão ler pode até constituir um antídoto ao frenesim e ao ruído. E esse antídoto, está dentro de nós...
Algumas pessoas insistem em defender a leitura meramente técnica, de livros que lhes reforcem competência profissionais. Mas desistir da boa literatura, das grandes obras de ficção, é empobrecedor, até do ponto de vista de uma maior preparação pessoal, certo?
A leitura é uma questão de gosto e de sensibilidade, mas também de escolha e de circunstância. Mas o ato de ler é também um exercício mental, que ativa mecanismos cerebrais complexos, como o têm revelado trabalhos recentes na área das neurociências, como Les Neurones de la lecture (2007) de Stanislas Dehaene. Fruto de um trabalho pluridisciplinar que envolveu engenheiros, psicólogos e linguistas, este livro mostra-nos (de forma teórica como de forma empírica) o modo como a leitura transforma uma série de regiões cerebrais, como a aquisição da linguagem falada interfere na capacidade futura de leitura, e como a leitura beneficia por sua vez a codificação da linguagem falada. O que estes trabalhos têm de interessante é que fazem vacilar a (pseudo) separação entre leitura técnica e leitura de ficção. Do ponto de vista da aquisição de uma maior proficiência de leitura, direi até que, pelo seu maior grau de complexidade e de riqueza semântica, ler textos literários potencia abordagens mais produtivas de textos técnicos. Assim o percebeu a Medicina narrativa ao introduzir o saber literário na formação médica, com o objetivo claro de contrabalançar o modelo da "nova medicina", arrimada à técnica e à maquinaria. Rita Charon, mentora desta abordagem, faz questão de enfatizar o valor diferencial da imaginação no processo de decisão clínica.
Que aconselha a pais que queiram incutir nos filhos ainda pequenos o gosto pela leitura?
Parece-me que a palavra chave aqui é gosto. Aprende-se a gostar de leitura como se aprende a gostar de certos alimentos. Doseando, experimentando, despertando as papilas gustativas e aquilo que a se chama desejo. Há toda uma raiz comum, aliás, entre saber e sabor bem explorada por Roland Barthes no Prazer do texto. Por outro lado, aprender constitui talvez aquilo para que estamos mais naturalmente predispostos, se considerarmos que somos o animal mais dependente à face da terra... E como se aprende, desde a mais tenra idade? Por estímulos sensoriais e por reflexos endógenos. O primeiro de todos é a imitação (como evidencia Aristóteles na Poética).Não são necessários, por isso, grandes artimanhas nem manual de instruções...
Recorda-se dos seus primeiros passos como leitora? O que começou por ler e como foi descobrindo, por exemplo, os clássicos?
Os meus primeiros passos como leitora situam-se antes da aprendizagem formal da leitura. Lembro-me do corpo, da voz que contava, da atmosfera envolvente, e que nunca resultava da mesma maneira. A minha avó, por exemplo, lia como o nariz em cima do livro, e eu achava isso muito curioso. Só mais tarde percebi que ela via mal, e que decifrava pior (a iliteracia, é bom não esquecer, era canónica, no nosso país, há duas gerações atrás), mas a magia era total! Anos depois, quando comecei a ler por mim própria, lembro-me que fiquei muito intrigada com aquela passagem do Principezinho em que o desenho duma caixa vazia satisfaz a insistência do pequeno herói que queria ver a sua ovelha. É verdade que mais à frente o autor diz que "o essencial é invisível aos olhos". Mas também é verdade que, por sentenças dessas, Saint-Exupéry foi rotulado de "moralista", quando, na realidade, também sugere (ou adverte para) o perigo do imediatismo (o "falso chapéu" no princípio do livro é genial). Walter Benjamin tem um texto belíssimo, "A caixa de leitura" (Infância berlinense) em que fala da leitura (e da escrita) como hábitos de efeitos duradouros. Creioque, de certa forma, a caixa vazia preludia o meu interesse pela questão da ficção, que outros "clássicos" como Mallarmé ou Pessoa me têm permitido explorar.
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