Conhecem-se desde miúdos e juntos abriram uma companhia teatral, a vital Arena Ensemble. Marco Martins, sempre a dirigir, Beatriz Batarda sempre do lado do palco, em frente à câmara. Já nos deram muito, agora em Great Yarmouth - Provisional Figures parecem dar tudo num drama de dureza enlutada sobre uma comunidade portuguesa de emigrantes em Great Yarmouth, cidade costeira inglesa, outrora famosa pelos seus casinos e turistas, agora presa a uma depressão económica e a um sistema de capitalismo que faz com que fábricas tratem seres humanos como escravos..Beatriz Batarda é uma portuguesa que tenta sobreviver a um esquema e começar a ter também um negócio de alojamento com os emigrantes que chegam de Portugal para entrar num processo de abuso total. A sua Tânia é uma espécie de vítima que encontra no seu pequeno poder um escape para esquecer o marido alcoólico e uma vida cinzenta. É uma interpretação arrancada aos locais mais negros da alma humana e é uma espécie de motor autónomo deste objeto de cinema. Como se a câmara de Marco fosse refém da sua respiração, dos seus desejos, das suas lágrimas..De Beatriz Batarda já se espera essa entrega, mas desta vez há ainda um avanço mais feroz em direção ao precipício. Há um gesto de dor e de sofrimento que se sente que é das entranhas e é aí que o seu trabalho surpreende. Tem nuances, tem aquela verdade que vem de um entendimento de uma intimidade de mulher autêntica, real. Não é uma composição, é transformação.."Este era daqueles filmes em que tivemos de dar tudo para lá do...tudo. Se dei coisas que não sabia que tinha? Bem, isso acontece sempre mas nesta criação do Marco impliquei-me e aprofundei-me com responsabilidade física, emocionalmente e intelectualmente", começa por dizer Beatriz. E porque era importante ouvi-los ao mesmo tempo, Marco Martins, ao seu lado, diz mesmo que a criação da personagem, dessa Tânia forte e vulnerável, foi a quatro mãos. E é curioso pensar no que fizeram para trás em cinema: a mãe perdida de Alice, aquela mulher irreconhecível e sem grandes planos de São Jorge... "Tudo parte de uma ideia que está escrita mas que depois vai sendo transformada com ideias, não só no processo de ensaios e de pesquisa, mas também na rodagem. Trata-se mesmo de uma construção a dois". E Beatriz completa: "sim, na impressão de uma voz de mulher numa realidade masculina. A Tânia movimenta-se num sistema económico pós-industrial dominado pelo poder masculino. Creio que contribuí para aquilo que o Marco procurava...".Fica uma dúvida no ar, se por um lado há uma marca do real, impossível não seguir o caminho de uma ideia de cinema coreografado, de um cinema com movimento de corpos marcado: será do facto de Great Yarmouth - Provisional Figures ter sido antes uma peça de teatro? "Quisemos desde sempre que a personagem nunca parasse, nunca tivesse descanso. Nos únicos momentos em que a vemos sentada ou deitada continua a sentir-se uma inquietação", diz Marco, enquanto Beatriz afirma que se trata de um corpo que dói: "quando a Tânia se levanta está toda moída e dorida. Diria que é sempre um corpo vibrante". "E isso tem a ver com essa divisão entre o trabalho intelectual dominante e o físico das fábricas. Hoje em dia passamos mais tempo sentados do que a dormir. Na verdade, o trabalho físico é feito por outras pessoas, aquelas de que o filme fala. São os trabalhadores invisíveis. Muito rapidamente percebi que o espetáculo teatral poderia derivar para um filme. Aliás, a peça é muito mais documental do que este filme. Depois, muitos dos atores começaram a visitar Yarmouth e a contactar os trabalhadores", complementa Marco..A dada altura, no terraço do cinema São Jorge, Marco e Beatriz voltam a ser confrontados com esta união que dura há anos. Sorriem a olhar um para o outro de forma envergonhada e falam em admiração mútua. "Não sei se essa reciprocidade tem a ver com o facto de sermos da mesma geração mas é legítimo dizer que há coisas que nos ligaram e que nos continuam a ligar na maneira como nos relacionamos com o trabalho. Damos importância por exemplo a um certo fascínio pela vulnerabilidade e pelo erro nos próprios processos de criação. Mas, além disso, o que moveu a criação do Arena Ensemble, foi o desejo de imprimir uma memória no espectador através do que é mais real na sua sensação ao receber o objeto artístico, algo que está para lá da compreensão do outro. No fundo, foi isto que nos ligou sempre, não é Marco? Um cumplicidade que foi crescendo e se foi manifestando no teatro e no cinema". Sim, diz o realizador e encenador e acrescenta: "há também uma ideia de risco e neste filme é muito evidente, tal como já o era na série Sara, um projeto que só valeria a pena ser feito com a Beatriz"..Para quem pensa que a Beatriz Batarda é uma atriz para as grandes ocasiões de sofrimento e massacre psicológico e físico nas mãos do cúmplice, eis uma possível confirmação: "isso é verdade, mas ele também sofre nas minhas mãos!". "Ok, mas uma coisa é importante perceber: desafiamos sempre mais as pessoas de que gostamos e admiramos. Lembro-me de uma professora de direção de atores nos EUA dizer-me que tínhamos que nos libertar dessa ideia de que os atores são seres muito sensíveis. Por muito que o sejam querem sempre ouvir o que nós queremos deles e isso é sempre complicado: trata-se de uma negociação com outro ser humano que está à nossa frente. Eu com a Beatriz levo essa coisa de nos desafiarmos e ficarmos de rastos muito longe", contrapõe Marco para levar resposta de rajada: "mas eu sujeito-me a essa tortura porque está na minha natureza acreditar que a transformação acontece num lugar qualquer de sacrifício e é uma espécie de ritualização. Trata-se de uma transformação minha e também do mundo à minha volta através do meu veículo, o meu corpo. E estou em crer que a contemporaneidade se relaciona com o sofrimento um bocadinho hipócrita - relacionamo-nos com o trauma como um álibi para não agir. Pessoalmente, tento relacionar-me com o sofrimento num sentido de evolução, de transformação e sempre com esperança"..Depois de se ouvir isso, fica uma pergunta no ar: todo esse processo deixa um ator ileso? Beatriz não hesita: "claro que não! Ficam marcas! Aliás, mais do que marcas, ficam traumas. Rugas? Olhem para mim. Isto também é a vida real, o trabalho faz parte dessa vida... A ilusão que podemos separar não é mais do que uma tentativa de organização e de racionalização mental - o corpo não entende dessa maneira. Para o corpo é tudo a mesma realidade! Fica impresso no DNA, não sai"..A forma como o filme mostra uma exploração real de seres humanos na Europa hoje pode ainda ser polémica? O cineasta acredita que sim e no Festival de Glasgow na Escócia sentiu sobretudo amor do público escocês. Quem esteve em San Sebastián, na estreia mundial, também sentiu que estas imagens tocam forte no íntimo do público: "esta coisa da precariedade do proletariado é algo global. A crise que começa em 2009 é a grande transformação no meu trabalho e na minha forma de olhar para a organização socio-política do mundo. Este neo-liberalismo do lucro a qualquer custo, da mão de obra barata, etc, fazem com que existam lugares como Great Yarmouth e Odemira. Esta ideia da fábrica vazia no fim é o meu happy end: se não comêssemos tanto peru, se não explorássemos os emigrantes, se calhar, o mundo era um bocado melhor. Esta coisa de dizer que em Portugal tivemos um crescimento X e as pessoas estarem a viver pior é a prova de que o dinheiro vai para outro lado"..Beatriz observa Marco enquanto ouve as suas palavras e depois lembra que a preocupação de criar um ponto de vista com o contemporâneo sempre foi um dos trunfos do realizador: "ele agora está no auge em que consegue relacionar as suas valências técnicas e originalidade artística com o seu pensamento político e social. Criou-se uma sinergia que veio culminar neste trabalho. É um cineasta em grande forma! Espero que não seja um beco sem saída, será um caminho sempre em evolução. Não estou a vê-lo a ficar preso a dogmas". O elogio deixa Marco a sorrir mas é o próprio que quer garantir que o que lhe interessa sempre são as pessoas de onde partem os filmes e não um pensamento ativista ou militante: "estes temas atraem-me sempre pelo lado humano e não quero politizar. Não sou do Partido Trabalhista inglês e ao fazer este filme em Inglaterra tinha toda a consciência do cinema de Mike Leigh e Ken Loach - o meu opera noutra esfera menos realista, mais performática. É um cinema mais gráfico". "Mais formal e mais estético", defende a sua atriz..Quanto à velha questão de que o cinema português com temas duros e sérios afasta o público, no caso dos filmes de Marco Martins não se tem aplicado. Alice em 2005 fez números bem bons e o mesmo aconteceu com São Jorge, em 2016. Até o seu recente documentário Um Corpo Que Dança - Ballet Gulbenkian - 1965-2005 foi uma surpresa em termos de adesão. Por isso, é o próprio que desmistifica o medo da ausência de bilhetes vendidos: "Recuso sempre a ideia de que é difícil encontrar o público com os produtores e os distribuidores. Por exemplo, lembro-me de ouvir o Paulo Branco, quando me produziu o Alice, dizer que os filmes portugueses não têm um público, mas eu insistia muito para o filme ser promovido. A mim não me diz grande coisa rendermos-nos à ideia de fazermos filmes que não vão ter público. Acredito que existe sempre um público para os filmes". Uma coisa é certa, Great Yarmouth - Provisional Figures tem tido imprensa, tem tido exposição. Este e o díptico Mal Viver/Viver Mal, de João Canijo são testes derradeiros para não perdermos a esperança que Marco Martins tenha a tese correta..dnot@dn.pt