"O mundo não é mais um lugar seguro", é anunciado logo no início de No Fim Era o Frio, ao longo de uma lenta declamação de Adolfo Luxúria Canibal, que dá o tema a este décimo primeiro trabalho de originais da banda fundada em Braga em 1984, o primeiro após cinco longos anos de ausência dos discos..Ao longo de 11 faixas, este álbum conceptual narra o estertor de uma sociedade distópica, que sobrevive dentro de fatos herméticos no topo de montanhas, em fuga da constante subida das águas do mar. Uma parábola ambiental mas também pessoal, como assume Adolfo Luxúria Canibal nesta entrevista ao DN, pelo modo como questiona as relações pessoais, num cenário pós-apocalíptico sublinhado pela música da banda, também ela tão sensorial quanto as palavras.."Oxalá o futuro nos traga a sorte de uma morte indolor e rápida", ouve-se mais ou menos a meio de um disco feito para ser devorado do princípio ao fim, como se de um livro, de um filme ou de uma peça de teatro se tratasse. É editado nesta sexta-feira e no dia seguinte tem a sua primeira apresentação ao vivo, com um concerto no Hard Club, no Porto, repetido também no dia 11 no Lisboa ao Vivo, onde o universo distópico de No Fim Era o Frio ganhará finalmente vida, em palco..Este é um disco que mais funciona como um livro, um filme ou uma peça de teatro, em que o ouvinte tem de seguir a narrativa até ao fim, faixa a faixa, para perceber todo o enredo. Porquê esta opção? A minha escrita é de facto muito visual, sempre o foi. E o objetivo era dar mesmo essa dinâmica de filme à história, de modo a criar na cabeça do ouvinte o cenário visual de uma distopia. E depois há um lado cénico, que é dado pela música, para ajudar a criar todas as diferentes sensações que o ouvinte vai vivendo do princípio ao fim do disco..Como é que lhe surgiu esta ideia de uma sociedade pós-apocalíptica, com a humanidade a viver em montanhas, a fugir da subida das águas, dentro de fatos herméticos que impedem o toque? Curiosamente, neste disco, surgiu primeiro a música e só depois a temática. Tudo começou com uma ideia do Miguel Pedro, que começou a adaptar alguns métodos de composição da música eletrónica ao rock. Foi a partir desses esboços de composição que a ideia foi sendo construída, não havia nada de preconcebido. Aliás, só percebi que tinha uma história já quase no final do processo de composição. Mas como os temas foram todos escritos na ordem cronológica em que aparecem no disco, bastou-me voltar atrás para limar algumas arestas e dar um sentido de continuidade ao enredo..Qual foi a primeira imagem que lhe veio à cabeça, quando começou a escrever? O primeiro a chegar-se à frente, em termos de escrita, nem fui eu, mas o António Rafael. Esse texto acabou por não avançar, mas inspirou-me em termos do cenário a criar. Imaginei um tempo pós-apocalíptico, com tudo destruído e pessoas à volta de fogueiras, para se aquecerem..Causado por um desastre ambiental, que fez subir as águas dos oceanos. É caso para dizer que qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência? Quis manter essa ideia inicial de desolação, mas tinha de arranjar um motivo minimamente plausível para isso e a subida das águas era perfeita para justificar o cenário distópico que pretendia criar. Inicialmente, a história terminava no módulo quatro do disco, tratava-se de uma micro-história, um alerta para determinadas situações que estamos a viver, tal como já tinha sido apresentada ao vivo..Mas a sua continuidade dá-lhe um outro sentido, até mais sensorial, concorda? Sem dúvida, dá-lhe um sentido menos ambiental e redireciona a história para a questão das relações humanas. A ação continua a passar-se no tal mundo pós-apocalíptico, que não nos abandona mais até ao fim do disco e serve de cenário a uma temática mais relacionada com a perda e com o vazio de um amor perdido..Nos dois concertos de apresentação do disco, no Porto e em Lisboa, vão de alguma forma recriar em palco este cenário distópico? Sim, será um espetáculo com uma componente cénica muito forte, a exemplo do que já tinha acontecido no nosso espetáculo de bailado, levado à cena neste ano e que de certa forma acabou por estar na origem deste disco. Esses espetáculos terão uma primeira parte mais conceptual, em que vamos interpretar o disco na íntegra, e uma segunda, com um outro cenário, mais caótico, digamos assim, baseada no nosso repertório habitual..Não sendo os Mão Morta a sua atividade profissional a tempo inteiro, que papel tem a banda, já com mais de 30 anos de carreira, na sua vida?Tem um papel importantíssimo. Como os Mão Morta não são o nosso ganha-pão principal, isso permite-nos arriscar sem estarmos preocupados em ter de agradar a alguém que não apenas ao nosso próprio umbigo. Os Mão Morta são portanto um espaço de liberdade, mas também de refúgio, de reflexão e de muito divertimento. Não seríamos as mesmas pessoas sem isto, tenho a certeza..E como são as rotinas da banda, tendo em conta essa realidade? Sendo esta espécie de hobby, o tempo para estarmos juntos vai sendo cada vez mais diminuto, até porque, com o passar dos anos, todos nós passámos a ter mais obrigações, sejam elas profissionais ou familiares. Mas isso apenas nos faz aproveitar melhor o pouco tempo que passamos juntos, como aconteceu com este disco, criado em simultâneo com o espetáculo de dança que também já apresentámos neste ano. É essencial que assim seja..No Fim Era o Frio.Mão Morta.CD com livro.Editora Rastilho.Sai sexta-feira