Ornatos Violeta, Pluto, Supernada, Foge Foge Bandido ou Estação de Serviço foram alguns dos nomes atrás dos quais, acompanhado ou a solo, Manel Cruz sempre se escondeu. Como confessa nesta entrevista ao DN, nunca se quis assumir como músico. Era uma questão de "liberdade" ou de "compromisso", mas, como o tempo acabaria por lhe ensinar, uma coisa não existe sem outra. E eis que chegou a altura de assumir, sem medos, a carreira, a música, o público e o palco, nesse periclitante equilíbrio entre a honestidade e o ego. Até, enfim, a fama, que afinal "nem é assim tão importante"..E eis que surge Vida Nova, o primeiro disco assinado por Manel Cruz, cujo título diz tudo sobre esta nova fase da carreira de um dos mais aclamados escritores de canções da música portuguesa. "Fui obrigado a complicar para tornar tudo mais simples", explica, recordando todo o processo de composição do álbum, que vai apresentar pela primeira vez ao vivo no dia 28 abril, na Casa da Música, no Porto, e no Capitólio, em Lisboa, a 1 de maio. Para o verão, está também já anunciado novo regresso dos Ornatos Violeta, que vão celebrar em palco os 20 anos da edição do disco O Monstro Precisa de Amigos, com três concertos no NOS Alive, MEO Marés Vivas e Festival F..É o primeiro disco em nome próprio....Sim, é essa a principal diferença para com todos os outros discos, porque a base é idêntica, até porque trabalho sempre rodeado de várias pessoas..Mas porque é que desta vez decidiu não se esconder atrás de um qualquer alter ego, como fez até agora, e assumir o seu verdadeiro nome?.Tem que ver com o contexto do processo, ou seja, se até aqui, em termos de profissão, sempre fui um bocado errante, no sentido em que eu próprio não sabia muito bem se era um profissional da música, se era ilustrador ou apenas artista, seja lá isso o que for. Por causa disso, todos os meus projetos musicais acabavam sempre por ser apresentados como um evento e não tanto como uma continuidade de carreira. E a parte conceptual do nome também vinha ao encontro dessa forma de estar..Como Estação de Serviço, que deu nome à última digressão?.Sim, embora nesse caso a abordagem fosse algo diferente, pois consistia em pegar nas canções dos vários grupos e projetos em que participei e dar-lhes uma roupagem diferente, para tocar ao vivo. A diferença é que aí, além do nome, não havia propriamente um conceito que não fosse o de recuperar essas canções antigas, trabalhar numa coisa de que gosto muito, a música, e também ganhar algum dinheiro (risos). Isso permitiu-me criar na minha cabeça uma ideia de palco para projetos futuros, porque até aí os concertos eram sempre a consequência do tal conceito inicial. Daí ter assumido o meu nome, para também poder assumir tudo aquilo que fiz até agora e o que fizer a partir daqui. É o meu trabalho em palco, ponto. E, comercialmente, também é uma ideia que simplifica uma série de coisas..Disse há pouco que durante algum tempo não sabia se era músico, ilustrador ou outra coisa qualquer, isto é também uma forma de assumir esse lado mais profissional da música?.Sim, pelo menos enquanto estiver com essa disponibilidade. Tive uma grande vontade de simplificar algumas coisas na minha vida, porque ao contrário de outros tempos não sei se quero estar completamente livre, porque a liberdade implica um preço, tal como o compromisso, mas esse eu já me habituei a pagá-lo e já sei como me defender. Talvez seja algo inevitável, quando chegamos a uma certa idade, essa tendência de olhar para trás, para tentar perceber o que fizemos, o que nos define e no modo como podemos otimizar isso, de forma a tornar tudo mais simples e, claro, de forma a manter uma certa liberdade dentro do tal compromisso..O que o impedia de se assumir como músico?.Dúvidas, falta de experiência... Normalmente quando tenho dúvidas sobre uma coisa não a faço, preciso de razões muito fortes para a fazer. Mas esta coisa do sistema, no qual, quer queiramos quer não, estamos todos envolvidos, permiti-nos também ir adiando as decisões, ao mesmo tempo que nos leva a fazer coisas que não queremos ou, pelo menos, sobre as quais não temos a certeza. Não é nenhuma conspiração, trata-se apenas de engrenagens sociais. E essas certezas, comigo, tardaram em surgir. Apenas sabia que queria ter tempo para fazer o que gosto, como a música ou a pintura, que para mim continuam a ser mais uma brincadeira..Não considera, portanto, a música ou a ilustração como uma profissão?.Podem sê-lo, claro, mas isso é algo que só sei agora e que veio com esse tal autoconhecimento. Por exemplo, a ilustração é uma coisa que me acompanha desde muito novo como um trabalho, porque aos 12 anos já ia vender desenhos e caricaturas para a rua. Era um talento que me permitia ganhar dinheiro e era fácil lidar com isso..Era uma vocação mais explícita do que a música?.Exatamente, que tecnicamente me permitia responder a determinados enunciados sem ter de me expor ou de me encontrar de um modo mais pessoal..Sem ter de se esforçar tanto, também?.Sim, também, ou pelo menos economizando mais o esforço, sendo igualmente competente. Mas quando queremos expressar-nos de uma forma mais pessoal, como me acontece com a música, precisamos de tempo para amadurecer as ideias, para nos perdermos, para nos procurarmos, para nos encontrarmos. E, como a música foi sempre essa vocação menos explícita, acabei por lhe conferir um lado mais de experimentação pessoal e não tanto artística..E quando é que se torna uma prioridade?.Isso tem mais que ver com o facto de ser uma atividade menos individual do que o desenho. A música é feita juntamente com outras pessoas, o que nos leva a um entusiasmo e também a um compromisso. E que também deu um certo retorno em termos financeiros, isso também ajuda. Mas foi um processo muito lento, houve alturas em que não toquei e me agarrei ao trabalho em artes plásticas para ganhar a vida. E o contrário também. Mas entretanto cheguei a uma altura em que quero ter algo mais regular, aquela ideia de ter uma profissão, uma rotina que me permita não estar sempre e sempre a trabalhar. Parece estranho, mas é mesmo isso..E a música permite-lhe isso?.Sim, apenas tive de aprender a gostar mais de tocar, a tirar mais partido do encanto que é tocar para outras pessoas, em vez de estar sempre a tentar fugir disso. Passei a divertir-me com a música..A música fazia-o sofrer assim tanto? Sofrer se calhar é uma palavra um bocado forte....Sim, mas não há outra, penar é ainda pior (risos)..No sentido de se sentir obrigado a expor-se. Neste disco, por exemplo, soa muito mais solto, de certa forma mais livre....Sim, sem dúvida, apesar de neste disco ter sentido muito mais o custo disso mesmo, se calhar por causa dos prazos que me impus. Fui obrigado a complicar para tornar tudo mais simples, é quase como mexer na merda em vez de a estar a cheirar a vida toda. Houve um trabalho mais profundo e por isso também mais chato, que no futuro me vai permitir simplificar todo o processo. Ou seja, o trabalho foi mais puxado, mas o resultado final bastante mais simples e também por isso mais auto-aceite. Aqui a questão foi mais o fazer e não tanto as questões pessoais..A sua música é tão pessoal como parece quando se ouve?.Esse lado pessoal é inevitável, mas também é muito técnico. Normalmente falamos da emoção como se isso fosse algo separado da técnica, mas, para mim, pensar, analisar e sentir são exatamente a mesma coisa. Quando toco ou canto estou num constante diálogo interno, que não se guia apenas pelo código das palavras. É tudo uma questão de experimentar e sentir. Tudo isto parece muito abstrato, mas no fundo sou apenas um gajo a lidar com a própria emoção de um ponto de vista técnico, de uma maneira intuitiva. Sou muito emocional, mas também sou muito cerebral e até hoje nunca consegui perceber se sou mais uma coisa ou outra. Acima de tudo, gosto de pensar na arte como um ofício. E tanto a técnica como a emoção são ossos desse ofício. Tal como a frustração..Neste ano há também um regresso dos Ornatos Violeta, para concertos nalguns festivais de verão. Porquê agora esta reunião, novamente?.Porque se cumprem 20 anos sobre a edição do disco O Monstro Precisa de Amigos e surgiu esse convite de tocarmos nos festivais. Pensámos no assunto e como à partida o conceito seria mais simples do que em 2012, quando se deu "o regresso", aceitámos. Vai ser um espetáculo mais despojado, integrado num festival, no qual vamos interpretar na íntegra um disco que ainda nos dá muito gozo tocar..Como é que, a esta distância, analisa o sucesso dos Ornatos Violeta, que continuam a ser ouvidos por uma nova geração de fãs, como se viu no concerto dos coliseus, há sete anos?.Tenho de me esforçar muito para não ver isso através do olhar dos outros, porque os Ornatos transformaram-se naquilo que as pessoas fizeram deles. Depois dos concertos dos Coliseus, em 2012, passei a perceber melhor aquela ideia das canções deixarem de ser nossas. Houve momentos em que simplesmente não consegui cantar, porque o público cantava a letra toda do princípio ao fim. As pessoas criaram um lugar só delas para a nossa música e nós, quando vamos tocar, já sabemos que não vamos surpreender ninguém, vamos apenas levá-las de volta a esse lugar..E que lugar é esse, para si?.Os Ornatos, para mim, são uma coisa completamente diferente. Remetem-me mais para os tempos iniciais da banda, quando ainda nem tínhamos disco e éramos apenas um grupo de amigos, que passavam o tempo juntos, a fazer música. Mas como nos continuamos a dar todos muito bem, isso já entrou mais para o campo das nossas histórias de amigos, que todas as pessoas têm..Porque é que os Ornatos acabaram naquela altura, quando eram uma das bandas mais populares em Portugal?.Não foi um decisão fácil, porque é muito complicado estar num projeto que está a começar a ser conhecido, a ganhar dinheiro e, ao mesmo tempo, ter a leveza de perceber que chegou ao fim, porque a tendência é sempre aproveitar ao máximo o momento. Sempre fomos muito unidos no nosso processo criativo e a nossa identidade dependia dessa unidade enquanto grupo. Nunca nos passou pela cabeça, por exemplo, continuar com a banda se alguém saísse. Os Ornatos éramos nós, sabíamos que se houvesse alguma discordância isso significava o fim e na altura começou a haver alguma..Em que sentido?.Começámos a discutir questões como a autoria das músicas, o que cada um fazia, o dinheiro que ganhávamos, todas aquelas coisas, enfim, de que já não nos podemos abstrair que existiam. Aí começou a parte mais difícil, que é o entendimento. E éramos todos putos, muito inexperientes, centrados em si próprios e com muito medo de assumir compromissos. Eu, por exemplo, tinha muito medo de me comprometer com o que pudesse pôr em causa a minha liberdade. A dada altura, quando a coisa começou a ficar um bocado feia, todos sentimos que tinha chegado a altura. Não houve propriamente uma decisão, foi antes o resultado de um certo desgaste, que transformou esse fim num alívio para todos, porque a partir daí deixou de ser necessário estarmos todos os dias a chatearmo-nos com os nossos melhores amigos..Os seus filhos sabem que têm um pai famoso?.Começam a ter noção disso e há pouco tempo até fizeram uma música em que cantavam "sou filho de um cantor famoso", numa espécie de sátira ao pai. Era uma brincadeira, mas que na verdade coloca as coisas no seu verdadeiro lugar. Às vezes perguntam-me se realmente sou um tipo famoso, mas respondo sempre de forma evasiva e sem grandes paternalismos, para eles perceberem que essa popularidade tem apenas o lugar que tem e não é assim tão importante..Herdaram do pai a vocação para a música, portanto?.O mais velho tem 11 anos e os gémeos têm 9 e costumam tocar todos juntos lá em casa, mais na brincadeira, numa banda a que deram o nome de Os Mosquitos. Acima de tudo, herdaram de toda a família os bichos-carpinteiros, que lhes dão uma grande vontade de viver e descobrir coisas novas a cada dia..O que significa para si cantar?.Nunca pensei cantar, aliás, nem sequer sabia tocar guitarra, foi o Peixe quem me ensinou uns acordes, quando formámos os Ornatos. Cantar dá-me o poder de manipular, não no sentido de distorcer a verdade, mas no sentido da eloquência, de transmitir uma ideia, que nos oiçam. É uma forma de comunicação, mas também de entretenimento, que é a parte que torna o ato de fazer música ou de cantar uma partilha e não apenas um capricho pessoal. No fundo, trata-se de conseguir um equilíbrio entre a honestidade e a responsabilidade com o ego e a vaidade, que também são legítimos, quando se está em cima de um palco..E consegue atingir esse equilíbrio?.A minha batalha em palco sempre passou muito por aí. Uma coisa são as músicas e cada um faz o que quer com elas, quando as ouve. Outra é a minha pessoa em cima de um palco, que me obriga a relacionar com o público. Existe um poder em estar num palco, do qual, em certas alturas, claramente me demiti. Estava lá, mas sem estar. Hoje já consigo estar e até brincar com o facto de me sentir ansioso com isso. Tem que ver com o tal assumir da profissão, de que há pouco falávamos.