A demissão do presidente Ibrahim Boubacar Keita (IBK), do Mali, é o fim de um ciclo, começando por coincidir, neste fim de ciclo, com os últimos dias do ano islâmico de 1441. O 1.º de Muharram de 1442 celebrou-se na sexta 21, em pleno período de pré-transição no Mali, já que esta primeira semana equivalerá também ao primeiro teste dos novos senhores da República do Mali..1442 começa com ambiente de festa naturalmente, tendo no povo mobilizador o seu principal agente. Não ter esperança é não ter valido a pena!.Os acontecimentos de 18 de agosto acabam por ser uma meia surpresa, por se tratar de uma ação militar espontânea e não uma ação/intervenção em consequência da mobilização da "voz de comando" do imã Mahmoud Dicko, um wali local, homem-santo, portanto, e a verdadeira personificação da oposição a IBK, desde abril do ano passado. E quando digo "ação militar espontânea", refiro-me ao facto de ter sido motivada por uma questão salarial e independente da "agenda Dicko". É verdade, o "25 de Abril" no Mali foi motivado por salários em atraso aos militares. Ainda na manhã de 18 de agosto, circulou a informação de que tal depósito já tinha sido efetuado, a todas as unidades militares, mas já era tarde demais. Após a tomada de um paiol em Kati, onde se situa a Academia Militar, a 15 km da Capital Bamako, precisamente um ex-diretor dessa "casa-maior", coronel Sadio Camará, comandou a tropa que a partir dali exigiu a demissão do PR, numa première que apagou da agenda do imã Dicko todo o protagonismo da semana..Na semana anterior ao golpe, tinham surgido rumores de que o imã Dicko teria cedido e já estava "comprado" pela Palácio Presidencial. Para diluir essa potencial verdade, marcou para essa semana uma agenda de rua cheia de atividades reivindicativas. Na verdade, Dicko precisava de mais mortos, já que a sua principal âncora propagandística, os 11 mártires, como sempre lhes chamou, do fim de semana de 11, 12 e 13 de julho, já se estavam a esgotar. E era assim que estava "escrito" este "reviralho" acontecer. Rassemblement na Praça da Independência, ânimos exaltados, carga policial, imagens a circularem nas redes sociais, mais ânimos exaltados, unidades que se recusam a bater nos seus compatriotas, mais gente na rua e a criação de um ponto de não retorno a partir do qual um grupo de generais iria até ao gabinete do presidente pedir a chave do palácio e que lhes assinasse um papel. As coisas há muito que tinham condições para acontecer, mas os cálculos só incluíam ação militar, depois de Dicko "virar a rua do avesso", o que estava a conseguir, sendo os militares a fase seguinte..Russian connection?.Haverá uma ligação russa a este avanço militar? Trata-se de uma hipótese levantada a partir da biografia de dois dos coronéis envolvidos neste golpe..O coronel Camará, ex-diretor da Academia Militar, quando abandonou este posto, em janeiro de 2020, foi ter formação na Rússia. O coronel Malick Diaw, que comandou o motim no Aquartelamento de Kati, do pouco que se sabe do seu percurso militar, sabe-se que tinha chegado recentemente da Rússia, onde esteve a receber formação. Um terceiro elemento importante neste xadrez é o general Fanta, sem publicidade! O general Cheikh Fanta Mady Dembele é diplomado na Escola Militar de Saint-Cyr, em França, tendo também uma licenciatura em História da Universidade de Paris e ainda um mestrado em Engenharia Civil pela Universidade do Exército Federal Alemão, em Munique..Que interesse terá a Rússia no Mali?.Partindo do principio de que a Primavera Árabe "se fez" na Tunísia, para aí ter uma plataforma de projeção de força para derrubar o regime de Kadhafi, para, por conseguinte, se conseguir ganhar profundidade estratégica para chegar ao Sahel e, particularmente ao norte da Nigéria. Não por causa do petróleo, mas por causa da água, das nascentes e do Aquífero da Núbia e, conjugando isso tudo com o investimento que a Rússia está a fazer atualmente na Líbia, parece-me elementar perceber que a Federação Russa pretende estender a influência que ganhará no Mediterrâneo Oriental, caso a guerra lhe corra de feição, tendo a partir do mar e da Cirenaica água e chão suficientes para projetar força e influência até ao Sahel, confirmando o Mali como peça-charneira e centrípeta do Sahel e da África Ocidental..A "nova Argélia", aliada histórica dos soviéticos, nunca quebrou esse laço, tendo-o, aliás, reforçado ao longo dos últimos anos, parece ter também a "casa securitária arrumada", com as chefias deixadas pelo falecido general Gaid Saleh já substituídas por homens do presidente Tebboune, vai querer reaver toda a influência que perdeu durante os últimos anos da presidência Bouteflika, no Sahel, nomeadamente para o rival marroquino, cada vez mais continental. Esta hipotética parceria argelo-russa na "gestão" do Sahel não desagrada aos militares malianos, porque lhes parece mais natural e "local", até pelo conhecimento do terreno de argelinos e pelo pragmatismo russo, menos dado a preocupações com direitos e convenções quando perante a necessidade de resolução de um problema, como seja lidar com terroristas..Outra razão para o interesse russo é o facto de a Guerra Fria ter acabado apenas nos livros de História, porque na realidade apenas se mudou para cenários alternativos e com menos protocolo e visibilidade, como é o caso de África, e, no Sahel, os ganhos recentes americanos, sobretudo no durante e pós-Primavera Árabe, já merecem uma atenção do rival do século XX. O jogo deixou foi de ser bipolar, para passar a multipolar, e como a Rússia faz frente à Turquia na Líbia, esta também será arrastada para esta disputa. Como tal, o Mali volta a estar dependente dos acontecimentos na Líbia, mesmo depois da morte do "estabilizador regional Kadhafi"..1442 H, o ano do Mali.A nova Junta Militar já anunciou a realização de novas eleições dentro de um ano e também garantiu que as forças militares estrangeiras (MINUSMA, Barkane e G5-Sahel) se manterão no território. Na verdade, estas missões são cruciais para o futuro do Mali na continuação da luta contra o terrorismo e na estabilização nacional. Na verdade, são estes militares estrangeiros, entre os quais há portugueses, que servem de "fita-cola" e mantêm o norte unido ao sul. Prova disso tem sido o alheamento dos azawadis em relação aos acontecimentos a sul. "Nós somos revolucionários, não somos "partidários", queremos a independência" (de Azawad), disseram todos os contactados naturais do norte desértico. Da capacidade de mobilização das fileiras e da qualidade da liderança da Junta Militar dependerá a partição do norte, ou não. Caso o processo de transição entre por caminhos ínvios e demorados, não só os movimentos independentistas a norte se reforçarão, como também os movimentos jihadistas, havendo depois a possibilidade de assistirmos à "pornopolítica" de ver o Sul a avençar grupos jihadistas para travarem a formação de mais bolsas independentistas!.Será também o ano que verá a confirmação de um padre na esfera política nacional. O imã Mahmoud Dicko, após a demissão de IBK, disse que regressava às rezas e que a sua missão já estava cumprida. Pudor do muçulmano, cuja vaidade à ocidental não lhe permite tomar iniciativas próprias, preferindo esperar pela confirmação dos "escolhidos de Deus" que virá através da vaga humana. Ou seja, creio ser certo apostar numa candidatura presidencial deste wali, já que o mesmo, sendo unificador no Sul, poderá ser também o cimento que falta chegar ao norte. Porquê? Porque é padre, porque se trata de um religioso respeitado, o que em Terras do Islão equivale a estima, e esta reflete-se em voto, na impossibilidade de se lhe oferecer uma galinha..Mas quem é o imã Mahmoud Dicko?.Natural de Tombuktu, 66 anos, foi entre janeiro de 2008 e abril de 2019 presidente do Alto Conselho Islâmico do Mali. Precisamente a 18 desse abril de 2019, é demitido do cargo pelo primeiro-ministro Soumeylou Boubèye Maïga, minutos antes de o próprio primeiro-ministro apresentar a demissão ao presidente IBK, o que nos dá uma ideia do ambiente político no Mali, que tem praticamente vivido de governos anuais. É a partir daqui que as ambições presidenciais do imã Dicko se tornam mais claras e a verve também se torna elegantemente mais agressiva ao mencionar "os traidores do povo" e a "corrupção endémica e a céu aberto", rematada com a humildade dos simples de quem não é "fazedor nem de reis nem de presidentes, mas da paz"..Precisamente a paz, que conseguiu segurar, por vezes, ao ser enviado do ex-presidente nas negociações com os grupos jihadistas, tem muito que se lhe diga. Formado na Arábia Saudita, trata-se naturalmente de um wahabita sem aspas, que, segundo o coordenador-geral do CMAS (Coordenação dos Movimentos, Associações e Simpatizantes, cujo líder é o imã Dicko), em resposta floreada à clássica e obrigatória questão de haver ambições no movimento em tornar-se um partido político, lá disse que "o CMAS tem por ideais as visões religiosas, societais e políticas do imã Dicko", o que decifrado significa "deem-me o poder e eu dar-vos-ei o Paraíso"!.E não será muito complicado fazê-lo, já que basta seguir o modelo de paraíso do agora penúltimo presidente do Mali, Amadou Toumani Touré, o qual fez do Azawad uma "colónia de férias jihadista". Ou seja, fiquem por aí, garantam que não atacam em solo maliano e eu jamais vos incomodarei. O mesmo modelo também do ex-presidente Blaise Compaoré, no Burkina Faso..A maior ameaça deixada por Dicko, no período anterior ao golpe, altura, aliás, em que se pode dizer tudo, já que não há responsabilidades formais "em campanha", é a vontade de colocar a França com um pé na porta de saída do território, já que um "religioso sério" nunca perderá oportunidade em capitalizar assunto tão popular junto dos seus. A impopularidade do ex-colonizador fardado na ex-colónia!.* Politólogo/arabista www.maghreb-machrek.pt