"Ela tinha desde julho uma instituição que estava encarregada dela." Ela é Sara Furtado, a jovem de 22 anos indiciada pela tentativa de homicídio do bebé que confessou ter dado à luz na madrugada de 5 de novembro e colocado num ecoponto. E quem fala é alguém que com ela contactou na João 13, uma associação de voluntários onde Sara começou a ir jantar e tomar banho quatro meses antes de dar à luz.."Para poderem ter acesso aos nossos serviços, os sem-abrigo têm de estar credenciados, e não somos nós que fazemos a credenciação, porque não temos assistentes sociais, nem psicólogos, nem nada disso", continua a explicar a pessoa ligada à João 13, que pede para não ser identificada. "Limitamo-nos a dar refeições e oferecer banho e lavagem de roupa. A primeira vez que lá vão damos acesso, mas dizemos que na próxima têm de trazer cartão. E ela frequentava a nossa associação desde julho, com cartão. Foi uma pessoa que no-la trouxe, a tentar ajudá-la. E nós dissemos que para voltar tinha de estar credenciada, e onde devia ir tratar disso.".Ser credenciada implica "entrar no sistema", ser "sinalizada". O que significa que a existência de Sara Furtado, uma mulher e jovem num universo, o dos sem-abrigo, em que as mulheres são raras e tão jovens ainda mais, deveria ser conhecida desde então da "rede" de apoio aos sem-abrigo e, de acordo com as boas práticas, passar a ter um "gestor de processo" para a ajudar a criar um projeto de vida e aceder ao tipo de respostas existentes para alguém na sua situação, de prestações sociais a soluções de alojamento, entre outras.."As organizações que estão na rua têm de sinalizar estas pessoas para a rede. E mandam os protocolos que nesta situação, quando há uma nova pessoa sem-abrigo identificada e credenciada, tem de haver uma entrevista e um relatório de assistente social. Alguém tem de conhecer a história dela, ou pelo menos a história que contou", explica o sociólogo Paulo Pedroso, especialista em políticas de combate à pobreza e desigualdade. "E a partir desse momento há uma responsabilidade da instituição que a credenciou. Não pode limitar-se a emitir o cartão e pronto. Não pode quebrar-se aí o circuito.".Mas até agora, ao fim de um mês de noticiário e debate sobre o caso de Sara Furtado, a data e a responsabilidade da sua sinalização no sistema de apoio aos sem-abrigo são uma incógnita. Incógnita que se estende à forma como todo o sistema de sinalizações - para o qual existe até um endereço eletrónico específico e "aberto", sinalizacoes.npisa.lisboa@gmail.com - funciona..O mistério prolonga-se no facto de que, apesar de a credenciação implicar a entrada no sistema, quando Sara foi detida a instituição pública responsável pela maioria das respostas sociais na cidade, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, ter garantido, pela voz do seu presidente, Edmundo Martinho, que aquele nome não constava nos seus registos. "Não há ninguém com esse nome, Sara Furtado, sinalizado nos nossos serviços", repete Martinho ao DN..A ideia que surgiu quando da revelação da tragédia foi de que Sara, por ser estrangeira, estaria ilegal em Portugal e portanto "sob o radar". Sucede que a jovem, que está em prisão preventiva desde 8 de novembro, tinha no momento da detenção, e de acordo com o que a advogada Ana Maria Lopes (que representou Sara até que esta lhe revogou a procuração) certificou ao DN, autorização de residência válida de 2019 até 2021: "Fui ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e deram-me essa informação. Ela está em Portugal há cerca de dois anos."."O NPISA sabe, pergunte-lhes"."Não tinha de ser a Santa Casa a fazer a credenciação", adverte o interlocutor do DN na João 13. "Existem outras instituições, entre as várias que trabalham com esta população, que podem fazer essa credenciação.".Quem foi então? E por que motivo essa informação está a ser sonegada? "Até sei qual é a instituição, mas por lealdade não lhe vou dizer", responde a pessoa da João 13. "Mas o NPISA sabe, pergunte-lhes.".O NPISA é o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo. O de Lisboa arrancou em janeiro de 2015, no âmbito da Estratégia Nacional para a Integração da Pessoa Sem-Abrigo 2009-2015, sendo descrito como "uma estrutura única" que "centraliza e otimiza todas as respostas direcionadas para a população em situação de sem-abrigo (alojamento, alimentação, apoio psicossocial, higiene pessoal, balneários, apoios pecuniários, intervenção das equipas técnicas de rua), bem como, numa lógica de otimização de recursos, promovendo o trabalho em rede"..Tem coordenação da Câmara Municipal de Lisboa, mais precisamente do pelouro de Educação e dos Direitos Sociais, e integra dezenas de entidades (incluindo ONG) além da autarquia. A responsável é Teresa Bispo, a quem o DN requereu resposta para cinco perguntas: quem credenciou Sara? Quem tinha a partir daí a obrigação de a sinalizar para a rede e segui-la? Teve um gestor de processo? Se sim, o que se passou? Se não, porquê?.Teresa Bispo remeteu o DN para a assessoria de imprensa do vereador Manuel Grilo - autarca do BE que em 2018 substituiu Ricardo Robbles e que tem o referido pelouro. Mas nenhuma das perguntas enviadas por escrito para Bispo e para a vereação sobre o percurso de Sara Furtado teve resposta..A começar pela da credenciação e pela existência ou inexistência de um gestor de processo. A resposta do NPISA/vereação a estas duas perguntas tem tanto de genérico como de recusa de esclarecimento: "O NPISA é constituído por uma rede de 33 parceiros que agem de acordo com um protocolo de atuação em conformidade com as respostas que disponibilizam. A coordenação do NPISA garante a articulação entre parceiros com vista a uma resposta integrada. Todas as pessoas em situação de sem-abrigo sinalizadas são acompanhadas por várias entidades quer na vertente de equipas técnicas de rua quer na vertente de centros de alojamento, etc., com vista a facilitar o acesso a cuidados de saúde primários, alimentação, roupa e higiene, bem como outras respostas que visam a autonomização com capacitação e formação profissional. QUALQUER DESTAS PROPOSTAS DEPENDE DA ADESÃO E DA VONTADE DO PRÓPRIO [capitulares da responsabilidade do emissor].".Traduzindo, então: como apontou Paulo Pedroso, existe um protocolo de atuação, e deve haver articulação entre as várias entidades de modo que as pessoas sem-abrigo sinalizadas - sublinhado em sinalizadas - tenham acesso a todas as respostas existentes. Só falta pois dizer que instituição sinalizou Sara Furtado e o que aconteceu a seguir - que era afinal a pergunta.."Estão a tentar esconder a falha no sistema".Atendendo a que as perguntas do DN chegaram ao NPISA e à vereação 17 dias após Sara Furtado ter sido detida, seria expectável que a coordenação tivesse já um diagnóstico do que aconteceu. E a ter um diagnóstico, não deveria ser público?."Das duas uma: ou o sistema falhou completamente neste caso, e portanto o sistema não existe, ou estamos perante uma situação em que há qualquer coisa que nos falta perceber e que muda tudo", reflete Paulo Pedroso. "Mas ao não responderem no NPISA estão a tentar esconder a falha no sistema.".A conclusão de Paulo Pedroso parece confirmar-se perante a linha do tempo reconstituída pelo DN a partir dos fragmentos de informação existentes..Por exemplo, o relato da ONG Médicos do Mundo, que faz intervenção na área da saúde junto dos sem-abrigo. Esta informa ter contactado pela primeira vez com alguém com as mesmas características de Sara - uma jovem de 22 anos, cabo-verdiana - a 18 de setembro, perto da Estação de Santa Apolónia, mais exatamente sob o viaduto da Avenida Infante D. Henrique.."Sendo uma mulher e jovem saltava à vista", diz ao DN Joana Tavares, a diretora de projetos Lisboa e Sul daquela ONG. "Quando falámos com ela disse-nos que tinha estado no serviço de emergência social do Cais do Sodré, na unidade de atendimento a pessoa sem-abrigo [UAPSA, que funciona no rés-do-chão do NIPSA], e que estava a ser seguida. Adiantou-nos que estava previsto reintegrar o ensino e que estava a tratar da mudança de morada para ter acesso a prestações sociais, porque a morada que tinha na documentação não correspondia, naturalmente, à atual - estava a dormir na rua, não é?".Nestas circunstâncias - para a receção de RSI, que no caso de uma só pessoa tem o valor fixo de 189 euros - o que se costuma fazer, explica Joana Tavares, é a pessoa fazer a mudança de morada para uma instituição..Que instituição estaria em causa, esta técnica da Médicos do Mundo diz não saber. Mas assegura: "A qualquer utente que contactamos na rua fazemos uma avaliação de saúde e social. Podemos levar a pessoa ao serviço de emergência social [UAPSA], onde é atendida por um psicólogo e um técnico de serviço social. E mediante a situação da pessoa - se precisa de apoio alimentar, de alojamento - são dadas respostas. Na primeira vez que a pessoa lá vai, à UAPSA, é feita uma triagem e só depois é atribuído um técnico gestor de caso. As pessoas nem sempre aceitam falar ao primeiro contacto, e muitas vezes quando contactamos com as pessoas elas já foram ao UAPSA ou está já marcada diligência.".Depreende-se assim que a Médicos do Mundo não fez com Sara aquilo que costuma fazer sempre porque esta disse que já estava a ser seguida. Mas estaria Sara a falar verdade? É que a UAPSA é gerida pela Santa Casa. E a Santa Casa, como já vimos, garante que ela não está no seu sistema.."Se fizermos muitas perguntas as pessoas fogem"."Há uma falhazinha na Sara", admite-se na João 13. "Ela não tem um discurso muito certo. E nós, as associações, temos uma situação desconfortável que é as pessoas muitas vezes não dizerem nada, ou dizerem coisas diferentes conforme o dia ou com quem falam. E é ingrato porque se fizermos muitas perguntas elas fogem." Um suspiro. "Neste caso fomos todos enganados.".Incluindo o homem que partilhava tenda com Sara e que a levou pela primeira vez à associação. Nem ele terá percebido, de acordo com os relatos que têm surgido - e com a confissão que a própria fez perante a juíza de instrução criminal -, que Sara estava grávida. Na João 13 acreditam nele: "Ele ainda no outro dia começou a chorar ao falar dela. Está muito triste e um pouco revoltado. É uma pessoa de um heroísmo muito grande, o Sidney, e a história deles é de camaradagem. Ao ver a miúda na rua, quis ajudá-la. Não deu a vida por ela mas fez muito. E sente-se enganado.".Seria fácil ser enganado, afinal: Sara foi ainda a 5 de novembro à João 13, após, segundo a sua confissão perante a juíza de instrução criminal, ter dado o bebé à luz e o ter colocado no ecoponto, e ninguém notou a diferença no seu corpo entre o antes e o depois. Mesmo assim, na associação crê-se que se "uma instituição ligada à saúde suspeitou de que a Sara estava grávida deveria tê-la referenciado". E quem fala ao DN chega mesmo a dizer: "Eu não sei se não chamava a polícia até." Chamar a polícia? Mas a polícia não a poderia obrigar a fazer um teste de gravidez ou a ser examinada por médico. "Pois não. Ficaria o caso declarado, porém. Mas ninguém arriscou.".O que sucederia se o caso "ficasse declarado" não se sabe. Mas não foi só a Médicos do Mundo que suspeitou da gravidez de Sara; uma semana antes, a 11 de setembro, outra associação confrontou a jovem com essa suspeita..A repórter da TVI Manuela Micael é testemunha disso. No âmbito de uma reportagem sobre sem-abrigo, acompanhou a associação CASA - Centro de Apoio a Sem Abrigo e a equipa desta sugeriu-lhe que entrevistasse uma jovem cabo-verdiana que a jornalista começou por achar ser menor, de tão franzina que era. Garantiram-lhe que não, que tinha mais de 20 anos. A entrevista aconteceu, com a condição, imposta pela jovem, de não lhe mostrarem a cara e de lhe chamarem Ana..Depois de Sara Furtado ser detida, a estação deu-se conta de que tinha uma entrevista com ela. Pô-la no ar no Jornal das 8 de 15 de novembro (ver aqui, a partir dos 30.40 minutos).."Esta vida não é para mim, sou muito nova".Na entrevista, Sara não só afirma estar a viver na rua "há quase três meses" (o que coincide com a informação prestada pela João 13) como que queria estudar e trabalhar e estava a tratar de sair "desta vida, que não é para mim, sou muito nova para isto". Adianta até que havia alguém que lhe ia dar emprego e um quarto: "Ela vem cá para buscar o irmão, que também está nesta situação, teve muita pena de mim e disse que ia arranjar um trabalho e que tem um quarto para mim.".A narrativa feita à TVI, sete dias antes de falar com a Médicos do Mundo, não inclui então estar a ser seguida na UAPSA ou a tratar de alterar documentos para receber RSI. Duas histórias diferentes contadas a pessoas diferentes. E a organizações diferentes. Sendo certo que a equipa do CASA já conheceria bem a jovem quando a apresentou a Manuela Micael. A repórter ficou com a convicção, que transmite ao DN, "de que já a conheciam daqueles dois, três meses em que ela estava na rua e tinham contactado várias vezes com ela"..Esse conhecimento próximo está implícito no relato que a repórter fez na TVI a 15 de novembro: "Eles que a conheciam acharam logo que aquela proeminenciazinha pequenina que tinha na barriga podia ser uma gravidez." A sem-abrigo foi confrontada com isso à frente da repórter. "Negou veementemente logo nessa altura. E eles disseram 'tudo bem', não nos vamos meter mais agora, porque não a queriam afastar mas ficaram atentos. Só que a partir daí deixou de lhes aparecer com a mesma frequência, acho que nem voltou sequer a aparecer-lhes pelo que julgo saber, e era o jovem que estava com ela na tenda que viria buscar a comida para ela. Tanto que eles [a equipa do CASA] estavam convencidos de que ela efetivamente tinha tido a sorte de sair da rua, arranjado um emprego e um teto para dormir.".Pelo menos três instituições sabiam de Sara. O que fizeram?.Assim, quando a Médicos do Mundo contacta com Sara pela primeira vez, a 18 de setembro, havia pelo menos duas equipas que conheciam Sara há meses: a da João 13 e a do CASA. Se não foi a equipa do CASA a credenciar Sara (e as informações recolhidas pelo DN levam a crer que não foi), haverá ainda uma outra instituição que contactou com ela desde julho..Acresce que desde 11 de setembro havia a suspeita, por parte do CASA, de que Sara estaria grávida. Nada disto, porém, terá sido sinalizado para a rede, já que a 7 de outubro, quando, de acordo com o comunicado da Médicos do Mundo sobre o caso, a mulher com as características de Sara voltaria ser vista pelos seus técnicos, e detetado "um aumento do volume abdominal da utente", tal não foi relacionado com qualquer referenciação anterior..Quando questionada pela equipa da Médicos do Mundo acerca de uma eventual gravidez, lê-se no documento, a mulher "justificou o observado alegando estar obstipada e referindo ainda estar menstruada. Em ambas as ocasiões referidas, nas quais tivemos contacto com a utente, a mesma declinou uma avaliação clínica. No decorrer do mês de outubro a equipa retornou ao local em diversas ocasiões, não sendo possível localizar ou contactar com a utente". Só voltam a vê-la a 6 de novembro, já após ter dado à luz. Nessa altura, Sara disse que estava sem menstruação há meses e que queria fazer um teste de gravidez, que deu positivo (devido à proximidade do parto)..O comunicado da ONG diz o que sucedeu a seguir: "A Equipa Técnica de Rua de Saúde de Lisboa da Médicos do Mundo mostrou-se disponível para encaminhar o caso para a Maternidade Alfredo da Costa, no dia seguinte, isto é, a 7 de novembro de 2019, para confirmar o diagnóstico. A data foi declinada pela utente, uma vez que teria compromissos familiares. Ainda assim, no dia 8 de novembro de 2019, após ter já articulado com o serviço social da Maternidade Alfredo da Costa, com vista ao início do acompanhamento do caso, a Equipa Técnica de Rua de Saúde regressou ao local de pernoita a fim de localizar a utente, mas tal não foi possível." Sara já tinha sido detida pela Polícia Judiciária, nesse mesmo dia..O comunicado nada diz sobre se a 7 de outubro, no seu segundo contacto com Sara, a ONG referenciou a suspeita de gravidez para a rede. Se inquiriu "a utente" sobre o alegado seguimento de que dissera a 18 de setembro estar a ser alvo pelo UAPSA. Ou se alguma vez confirmou se aquela pessoa, cujo nome pelos vistos não sabia (a não ser que ela tivesse dado outro), estava efetivamente sinalizada ou se confiaram que sim e nada fizeram nesse sentido. O DN solicitou esclarecimento adicional para estas questões, sem sucesso.."Interpeladas para intervenções concertadas e céleres"."Intervenções concertadas e céleres." É aquilo que, diz a ENIPSA, a já citada Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo, tem de acontecer na atuação das entidades que contactam com as pessoas sem-abrigo: devem ser "interpeladas" por essa noção de urgência. Porque, explica-se, estas pessoas estão sujeitas a "prolongados percursos de desinserção"..Quer isto dizer, deduz-se, que é preciso perceber que quando são "apanhadas" tem de se agir rapidamente e em rede, aproveitando a oportunidade que pode não voltar a surgir. Que é "obrigação de qualquer serviço de atendimento social informar, encaminhar e se for o caso colaborar no preenchimento e na instrução do processo de requerimento de prestações sociais", sendo tal extensível "a todas as entidades" que mesmo "não atuando diretamente neste âmbito possam ter conhecimento de situações que possam ser encaminhadas para as prestações e/ou respostas sociais mais adequadas"..A tradução parece ser evidente: qualquer das entidades, e mais ainda as que estão na rede específica de apoio, que contacte com um sem-abrigo pela primeira vez deve sinalizá-lo e tentar encaminhá-lo para respostas sociais. Alguma das três associações identificadas - João 13, Médicos do Mundo e CASA - o fez?.Parece claro pela informação prestada pelas duas primeiras que tal não aconteceu. A João 13 remeteu Sara para uma instituição com capacidade para fazer a triagem, e que deveria, de acordo com a associação, ter seguido o seu processo. A Médicos do Mundo terá descansado perante a informação, adiantada pela sem-abrigo, de que ela estava já a ser "seguida"..Resta o CASA, a cujo presidente, Nuno Jardim, o DN tentou pedir esclarecimento. Este começou por negar que as suas equipas tivessem tido contacto com Sara Furtado: "Acho que não houve esse contacto." Confrontado com a evidência, disse não querer mais falar sobre o assunto e só se aprestar a responder por escrito..Enviadas as questões, a resposta recebida foi de que "relativamente a este assunto cabe-nos informar que o mesmo está em segredo de justiça, aliado a isso estamos abrangidos pelo sigilo profissional e ético. As informações e explicações relativas ao mesmo já foram todas dadas".."Quando passa da caridadezinha o sistema falha".Infere-se do exposto que pelo menos três ONG contactaram, entre julho e setembro, com Sara ou com alguém com as suas exatas características. E que, apesar de fazerem parte de uma rede, nenhuma das ONG teria conhecimento da existência daquela mulher na rua até se deparar com ela pela primeira vez. Se alguma passou informação sobre ela para a rede não se sabe, mas é duvidoso. E tanto mais surpreendente quando duas das organizações suspeitaram de que estaria grávida, o que deveria tornar ainda mais premente a sinalização e a tentativa de intervenção..É suposto ser assim que as coisas funcionam, cada um a trabalhar para seu lado, sem qualquer partilha de informação, sem sinalização obrigatória de cada sem-abrigo - mesmo correndo o risco de sobreposição -, para o núcleo central?.É claro que não, responde Paulo Pedroso. E esse é, considera, o problema: "Quando se passa da caridadezinha - das ONG que têm as equipas no terreno e que dão comida, banhos, roupa, etc. - para o resto, para os passos institucionais mais sérios, onde têm de atuar a Santa Casa, o NPISA, a Segurança Social, o sistema falha. É essa a perceção que tenho. De que o circuito se quebra na emissão do cartão 'de pobre', no apoio de urgência. Só uma pequena franja de casos é que tem acompanhamento a seguir, onde começa o processo duro e caro de 'como é que tiramos esta pessoa da rua?': o da passagem para a recuperação.".Esse processo, explica este ex-governante, que nos executivos Guterres esteve ligado à criação do rendimento mínimo garantido, hoje rendimento social de inserção, deveria ter passado por atribuição de RSI, que implica um acordo celebrado para o percurso de reinserção, e a tentativa, logo no início, de colocar a pessoa num alojamento. "Em doutrina, três quartos das pessoas que estão na rua mais de dois dias é porque não conseguimos persuadi-las a ir para alojamento de urgência. Em 2002, a capacidade de alojamento de urgência em Lisboa era superior à população sem-abrigo. Os municípios comprometeram-se a alocar 2,5% do orçamento para alojamento social para pessoas sem-abrigo e a terem pelo menos 20 alojamentos disponíveis para elas. Isso está a ser cumprido?"."Isto não funciona bem mas agora é que vai ser?".Já após a revelação do caso de Sara, o vereador Manuel Grilo afirmou existirem 80 casas distribuídas para o efeito na área de Lisboa e que a autarquia terá decidido "reforçar o programa" aprovando "mais cem habitações por unanimidade de todas as forças políticas.".E a 24 de novembro explicou que a autarquia "tem a ambição de retirar da rua as pessoas sem-abrigo até 2021", através do Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem-Abrigo 2019-2021, que prevê um investimento de 4,3 milhões de euros. Estimando em mais de dois mil os sem-abrigo, número no qual inclui os que vivem em quartos, sendo 361 os que estão a dormir na rua, o autarca referiu o programa Housing First (casa primeiro), que descreve como "uma metodologia que inverteu o passado, tudo aquilo que era dado como adquirido, que era uma estratégia em escada. A pessoa tinha de merecer para passar para o estágio seguinte. Aqui é exatamente ao contrário. Partimos da casa e depois da casa vem tudo o resto com propostas que são feitas às pessoas respeitando-as, respeitando a sua individualidade, percebendo que cada pessoa é uma pessoa e cada pessoa reage de forma diferente.".Quem na João 13 fala com o DN espera que seja verdade, mesmo se as 180 casas referidas pelo vereador não chegam a um décimo do número de sem-abrigo estimado pelo próprio vereador. "Na nossa associação vemos pessoas que estão prontas a ir para uma casa - porque não têm adições, etc. - mas não há para onde. Há a Vitae que tem camaratas para as pessoas, mas elas não querem ir para lá porque é um susto, tem horários apertados, roubam coisas, andam à batatada. Como dizia um utente: se a alternativa que me dão é a Vitae, prefiro ficar na rua. Tenho a ideia de que os subsídios que se dão, se gastassem em casas não se gastava tanto e resolviam-se mais situações.".Mas a esperança de que de repente tudo passe a funcionar como deveria é pequena. "É notório que toda a estrutura em relação às pessoas sem-abrigo não funciona bem. E agora é que vai ser? Vamos criar uma plataforma online para sabermos quem está na rua em tempo real? É como dizer-se que vamos tirar as pessoas da rua até 2023."."Se fosse um caso de sucesso toda a gente diria: fui eu".O sarcasmo do voluntário da João 13 tem vários alvos. Um tem que ver com a reunião ocorrida a 18 de novembro, sob os auspícios do Presidente da República e com a ministra da Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, e os representantes das ONG que trabalham com sem-abrigo, da qual Marcelo Rebelo de Sousa disse ter saído com a convicção de que "será difícil mas não impossível atingir a meta de tirar da rua as pessoas em situação de sem-abrigo até 2023"..O outro alvo é o anúncio feito pela ministra, quando de uma visita, precisamente, às instalações da João 13, de que está a ser criada "uma plataforma online para identificar em tempo real todos os casos de sem-abrigo pelas instituições que lhes dão apoio". Será este o instrumento, disse Ana Mendes Godinho, que "faltava para articular as entidades que trabalham no terreno" e para que "todos os intervenientes possam ter informação das situações sinalizadas, e haver garantia de acompanhamento e rastreamento permanente, até para garantir maior segurança das pessoas"..O "instrumento que faltava". Será então suposto concluir que foi por falta deste instrumento que no caso de Sara tudo parece ter corrido ao contrário das regras e a despeito do exposto na estratégia, e que as obrigações impostas pelos protocolos e financiamentos - porque há financiamentos públicos implicados no trabalho das ONG - não foram cumpridas porque faltava uma plataforma online..Que o verdadeiro pacto de silêncio e opacidade que o DN encontrou ao procurar respostas básicas que permitam perceber não só o que falhou neste caso como o que deveria ter sucedido se tudo corresse bem é a imagem que os responsáveis, desde a tutela governamental à coordenação da Câmara de Lisboa, não se importam que fique do sistema de apoio a sem-abrigo..Um sistema que nessa imagem se limita a entregar sopas e sandes, cobertores, roupa lavada, cuidados básicos de saúde e "conversa amiga", através de ONG que funcionam cada uma por si, sem coordenação e sem comunicação, como se o objetivo da sua ação se esgotasse na caridade. Como se a invisibilidade de que o NPISA de Lisboa gozou em todo o turbilhão mediático que se seguiu à descoberta do bebé e à detenção de Sara Furtado, furtando ao país a noção de que existe uma entidade responsável pela uniformização de procedimentos e pelo funcionamento da rede, fosse desejável..Como se, afinal, não houvesse uma estratégia. Ou havendo fosse um papel apenas..Na João 13, a conclusão não é caridosa. "Todas as associações que andavam na rua deveriam ter feito mais alguma coisa. Se fosse um caso de sucesso toda a gente queria dizer 'fui eu'. Mas como não é, está tudo calado."