É cada vez mais raro encontrar um discurso assim, tão direto e acutilante, sem medo das palavras, como aquele a que Luís Varatojo dá voz no novo projeto Luta Livre, cujo álbum de estreia, Técnicas de Combate, foi lançado na sexta-feira. Mais ainda porque as letras, ou antes, os textos, quase sempre mais declamados do que cantados, são todos baseados em histórias e factos reais, compilados da imprensa ao longo de dois anos pelo músico outrora pertencente a Peste & Sida, Despe e Siga, Linha da Frente, A Naifa ou Fandango, das quais resultaram temas com títulos tão sugestivos como Política, Ninguém Quer Saber, Iniquidade, O Problema É o Sistema ou Escravo do Patrão..Com produção do próprio Luís Varatojo, foi gravado entre janeiro de 2019 e outubro de 2020 e conta com a participação de vários convidados, como o Coro Gospel Collective, o saxofonista Ricardo Toscano, Kika Santos, João Pedro Almendra (seu antigo companheiro nos Peste & Sida), entre outros..O objetivo inicial, como revela nesta entrevista, em que a música é apenas um pretexto para uma conversa de temática bastante mais alargada, nem passava pela edição de um disco, mas antes de um videoálbum, com recurso a animações, que iam sendo disponibilizadas num canal próprio de YouTube. A pandemia, porém, alterou os planos de Luís Varatojo, que criou assim a banda sonora perfeita, como também refere ao DN, para um tempo em que "as pessoas estão mais atentas e recetivas para este tipo de mensagem", cada vez mais afastada do universo da música pop rock..Como é que surge este projeto, aparentemente tão alinhado com estes estranhos tempos, mas que afinal até é anterior à pandemia? Sim e, embora não se trate de uma consequência, pode-se dizer que a pandemia acabou por ajudar na sua concretização, porque acabei por ficar com mais tempo livre, como toda a gente..Inicialmente já existia o desejo ou o objetivo de fazer um disco com estas características? Não, de todo, não fazia ideia do que poderia vir a ser e até certa altura foi avançando em duas frentes completamente diferentes. Sou um consumidor de informação ávido, leio compulsivamente todo o tipo de publicações e, ali entre 2018 e 2019, comecei a tirar algumas notas das reportagens e artigos que ia lendo. E pouco tempo depois comecei a juntar esses pequenos textos, tornando toda essa informação avulsa numa espécie de discurso, como se fosse a minha própria voz, mas ainda sem qualquer preocupação com o ritmo ou a métrica. Mas com o tempo a coisa foi tomando forma e percebi que até poderiam ser colocados em cima de música. Por outro lado, mais ou menos há cerca de dez anos, comecei a ouvir jazz, que era um estilo que não me dizia nada quando era miúdo, porque não o compreendia, mas do qual hoje sou um enorme fã. Quando estou em estúdio gosto muito de fazer samples e beats, a partir de discos de jazz antigos. E a dada altura pensei que juntar esses dois mundos, da escrita e do jazz, poderia resultar nalguma coisa..E quando é que começou realmente a tomar forma? No final de 2019 já tinha o primeiro tema pronto, que foi o Política. A ideia era ir editando os temas de forma avulsa, num canal de YouTube que entretanto criei, sempre acompanhados de vídeos, feitos por artistas gráficos que fui convidando. Pretendia apenas comunicar a música e o discurso, mas, depois, a chegada da pandemia e o primeiro confinamento acabaram por conduzir ao álbum, o que acabou por fazer sentido..Até porque, devido à temática, funciona como um excelente quadro da atualidade que desde então se vive... Concorda? Se calhar as pessoas agora é que estão atentas e recetivas para este tipo de mensagem. Se calhar andávamos todos um bocado distraídos com o suposto crescimento económico e o sucesso do turismo, que nem reparávamos que tudo isto já por aí andava..Apesar da opção pelos samplers de jazz, acaba por ser um disco muito orgânico, para o qual convidou alguns músicos precisamente dessa área musical... Fiz as bases todas em estúdio, no baixo, guitarra e bateria, mas depois percebi que poderia ser interessante ter mais alguns músicos que soubessem tocar a sério [risos]. Isso enriqueceu muito os temas, como se percebeu no nosso único espetáculo, na Festa do Avante!, para o qual formei uma banda de nove elementos, alguns vindos do jazz, que trouxeram alguns espaços de improvisação que funcionam muito bem quando combinados com estas frases fortes..Este tipo de música de intervenção, tão assumidamente política, é algo cada vez mais raro no universo pop rock. Não teme que este álbum possa criar alguns anticorpos, numa época tão polarizada como a atual? A intervenção está muito presente no hip hop, por exemplo. E na América Latina também há todo um movimento ligado à música eletrónica que aborda estas temáticas mais sociais. Quanto ao rock, que é de onde eu venho, e, tirando uma ou outra exceção, como o Idles, por exemplo, praticamente deixou de existir. O que se faz é uma espécie de sabonete formatado aos esquemas da indústria e dos festivais. E quando se foge a isso torna-se muito complicado para as bandas sobreviverem. No meu caso apenas achei que era o momento certo para fazer música assim. Quem gostar, gosta, quem não gostar, paciência. Nunca tive problemas com anticorpos ao longo da minha carreira, portanto também não vai ser agora. Acima de tudo, como músico, dá-me gozo fazer coisas diferentes, sem repetir fórmulas..Porque é que acha que essa temática quase desapareceu da música? Talvez por estarmos na Europa e tudo ainda parecer bem. Por exemplo, neste álbum tenho um tema, chamado Escravo do Patrão, que é sobre os entregadores de comida, que são explorados, mal pagos e não têm qualquer regalia. É algo que faz parte do nosso dia-a-dia, que quase toda a gente utiliza, até, e não paramos um momento para pensar em quem são aquelas pessoas. Mais tarde ou mais cedo, vai-nos tocar a todos, como, aliás, se viu com os músicos e com os trabalhadores da cultura, por causa da pandemia, mas enquanto o dinheiro for entrando na conta de cada um, nem nos apercebemos da precariedade em que grande parte da população vive..Daí também o nome deste projeto, Luta Livre, que junta duas palavras com uma forte conotação política? Gosto de dar sempre nomes diferentes aos meus projetos musicais, porque todos eles têm uma identidade própria, e este sempre pretendeu ser um espaço de total liberdade, em que pudesse fazer e dizer aquilo que bem me apetecesse. E numa das definições do dicionário, diz que na luta livre se podem dar os golpes como quisermos, sem regras, tal como faço neste álbum.