Poucos o saberão, mas um dos sambas mais populares do Brasil, o Samba do Operário, foi escrito por um português, de seu nome Alfredo, que emigrou para o Brasil no início da ditadura de Salazar. Nascido e criado em Alfama, Alfredo Português, como ficou conhecido no morro da Mangueira, trocou o fado pelo samba e a meias com o famoso Cartola escreveu este tema, que devido ao seu teor, "digamos, bastante marxista", só viria a ser gravado pela primeira vez muitas décadas mais tarde, depois da reabertura da democracia no país..É com este samba que arranca Samba de Guerrilha, o novo disco de Luca Argel, um músico brasileiro desde há alguns anos radicado no Porto, onde foi um dos responsáveis pelo surgimento da forte cena sambista portuense. O álbum é composto apenas por versões de sambas antigos, recriados com novas e arrojadas roupagens musicais, através dos quais o autor conta uma outra história do Brasil, igualmente verdadeira, mas ainda hoje bastante menos (re)conhecida, condicionada pelos efeitos da escravatura e pelo modo como estes perduram até hoje na sociedade do país sob a forma de racismo, pobreza e descriminação social..Citaçãocitacao"Existe a ideia de que o samba, como agora acontece com o funk, é apenas uma música alienada e escapista, desconectada com a realidade, quando é exatamente o contrário", sublinha o músico brasileiro.. Em conversa com o DN, o autor reconhece que este novo trabalho surge "exatamente como resposta" a uma cada vez maior polarização da sociedade brasileira. "Na minha leitura houve nos últimos anos um processo de politização do racismo, que atravessou toda a sociedade e atingiu em particular as artes com algum destaque", refere Luca Argel, revelando que o projeto Samba de Guerrilha começou a tomar forma logo em 2016, "quando do golpe que derrubou a Dilma Russeff". A partir desse momento "o Brasil pareceu entrar numa espiral de retrocesso muito violenta", que provocou uma resposta por parte da sociedade. "Umas pessoas aderiram à onda neofascistoide do Bolsonaro e outras foram para o outro lado do muro, o que acabou por criar uma cisão muito grande ma sociedade.".De repente, quase todas as conversas, no Brasil, tornaram-se questões políticas, o que para Luca, "de certa forma, até é interessante. É um processo muito doloroso, é certo, mas a longo prazo pode acabar até por favorecer o país, criando uma maior consciencialização política nas pessoas". E Samba de Guerrilha surge em função desse movimento. "Estava ainda a rolar o processo contra a Dilma, quando uma associação cultural aqui do Porto, chamada Contrabando, me convidou para participar numa semana temática sobre o Brasil." Do programa constavam debates, exposições e concertos, e Luca foi convidado para conceber um espetáculo em que não só tocasse e cantasse, mas falasse também um pouco da história do Brasil, em particular da forma como a mesma é contada através do samba, um estilo no qual já trabalhava há algum tempo. "Além de tocar e cantar, sempre gostei de estudar com mais profundidade a história do samba, e nessa altura já tinha conhecimento suficiente para montar um guião de espetáculo." O objetivo era contar a história do país, desde a abolição da escravatura até à presidência do Michel Temer, fazendo um paralelo histórico entre o samba e o Brasil, a partir de um ponto de vista sempre político. "Queria mostrar como o samba sempre acompanhou todas as transformações políticas do país e como também foi vítima de perseguições, preconceito e descriminação. E também para mostrar que quase todos os problemas que o Brasil tem como país, devido ao processo de colonização e de escravidão, ainda não foram curados e voltaram a manifestar-se novamente com grande força, neste período mais atual. Sempre que há uma conflagração política mais forte, como agora, esses problemas emergem do passado de novo para o presente", defende.. Composto por dez temas, todos antecedidos por uma narração, que contextualiza histórica e socialmente cada um deles, Samba de Guerrilha foi pensado como "uma espécie de ópera-samba" dividida em três atos. O primeiro explora a dialética sempre existente entre o medo e a resistência, o modo como este leva invariavelmente àquela. Além do já citado Alfredo Português, é também recordada a guerrilha da Araguaia, que nos anos 70, em plena selva amazónica, lutou de armas na mão contra a ditadura militar, tendo como hino o samba Pesadelo, de Paulo César Pinheiro - "você corta um verso, eu escrevo outro, você me prende vivo, eu escapo morto, de repente, olha eu de novo, perturbando a paz, exigindo o troco". Neste primeiro ato, é também recordado ao som do samba Virada, de Neca da Portela, que durante os 350 anos em que a escravatura vigorou no Brasil chegaram ao país "pelo menos cinco milhões" de pessoas..DestaquedestaqueLucas Argel diz que o novo trabalho surge "como resposta" a uma cada vez maior polarização da sociedade brasileira e que o projeto começou a ganhar forma, em 2016, "quando do golpe que derrubou Dilma Rousseff" da presidência".."Um recorde na história moderna, em números absolutos. Em números relativos, a concentração de escravizados em território brasileiro só encontra rival no Império Romano. Entre a chegada da família real portuguesa na cidade, em 1808, e os primeiros anos de independência, apenas um único cais, o cais do Valongo, sozinho, recebeu 500 mil africanos. Por volta de 1840, quase metade da população da cidade era de escravizados, e no ápice do tráfico transatlântico o Rio de Janeiro foi a maior cidade africana do mundo", recorda ao ouvinte a narradora, a rapper, compositora e escritora angolana Telma Tvon. "Precisava de um narrador para tornar as histórias mais explícitas, para as contextualizar. rong>Há músicas que ganham muito mais força com a narração", concede Luca Argel, que chegou a pensar ser ele próprio a desempenhar também essa função. Percebeu entretanto que "poderia ficar estranho ou até monótono", e lembrou-se de Telma, "uma escolha óbvia e natural", por vários motivos. "Achei importante haver um contraste entre a voz que canta, de um homem branco e brasileiro, que sou eu, e a que conta as histórias ser a de uma mulher negra e africana, que é a Telma. Achei que seria uma dinâmica muito bonita para contar esta história, e a mudança da voz acabou por funcionar muito bem." O segundo ato começa por recordar a abolição da escravatura e a alegria sentida quando, a 13 de maio de 1888, "às três da tarde, no Paço Imperial, a princesa regente Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga, filha mais velha do imperador Pedro II, deu a canetada final" num sistema que teimava em manter-se no Brasil, quando em quase todo o mundo já havia sido ilegalizada. "Todos respiravam felicidade, e tudo era delírio", escreveu então o maior escritor brasileiro, Machado de Assis - "Ele próprio negro. Neto de escravizados." A realidade, porém, seria bastante mais cruel do que a versão ensinada nas escolas, como é recordado em dois jongos (Cangoma e Na Fazenda do Senhor), um estilo antepassado do samba, que remete para o momento em que muitos negros tiveram de voltar para as mesmas fazendas onde foram escravizados, a implorar serem recebidos de volta, por não terem para onde ir nem quem lhes desse trabalho. Pelo contrário, aos milhares de emigrantes entretanto chegados da Europa, para substituir a mão-de-obra escrava, "foi-lhes oferecido crédito a longo prazo, para comprarem terras do Estado, vendidas com desconto especial. Não que a vida destes imigrantes tenha sido fácil ao chegar. Muito pelo contrário. Mas é preciso dizer que, apenas por serem brancos, a eles foi oferecido absolutamente tudo o que foi negado aos 700 mil negros que já lá estavam, em desamparo", ouve-se pela voz da narradora. O consequente êxodo dos negros para a periferia das grandes cidades, aqui lembrado ao som de sambas históricos como Direito de Sambar, Praça Onze e Agoniza mas não Morre, apenas vem acentuar as desigualdades numa sociedade que se queria "civilizar". Em 1890, apenas dois anos após a abolição, entrou em vigor a chamada Lei da Vadiagem, que, na prática, "autorizava a polícia a prender, invadir e confiscar qualquer pessoa, espaço ou objeto relacionado com as culturas afro-brasileiras". Um simples batuque era considerado crime. Já o terceiro ato, centra grande parte da atenção em João Cândido, o marinheiro responsável por liderar em 1910 a Revolta da Chibata, contra os castigos físicos ainda em vigência na marinha brasileira. O Almirante Negro, como ficaria imortalizado no samba com o mesmo nome (proibido pela censura, sob a argumentação da patente de almirante jamais poder vir associada à palavra negro), funciona assim como um ponto de partida para um presente ainda com muitas feridas abertas, materializado no tema Vá Cuidar da Sua Vida, mas com esperança de que no futuro surja Uma História Diferente, tal como a contou Paulinho da Viola, neste samba escolhido para encerrar o disco.. Um dos objetivos deste trabalho "passa por reconhecer o samba como um observador político privilegiado do Brasil", de um ponto de vista que, segundo Luca Argel, "continua a não ser muito levado em consideração, que é o do povo da base da pirâmide social". Para o músico, "consegue-se fazer leituras históricas muito sofisticadas a partir de letras de sambas antigos, que hoje são um interessante instrumento de pesquisa histórica, porque normalmente já vêm com uma crítica ou uma tomada de posição política incluída, geralmente contrária aos poderes instituídos, que são quase sempre vistos mais fonte de perseguição do que propriamente de bem-estar". Uma visão ainda muito subestimada e desvalorizada no Brasil, como sublinha Luca: "Existe a ideia de que o samba, como agora acontece com o funk, é apenas uma música alienada e escapista, desconectada com a realidade, quando é exatamente o contrário. É só uma questão de os sabermos ler, e isso é algo que só agora as universidades começaram a valorizar.".DestaquedestaqueA Lei da Vadiagem, de 1890, que "autorizava a polícia a prender, invadir e confiscar qualquer pessoa, espaço ou objeto relacionado com as culturas afro-brasileiras", é um dos temas históricos abordados nesta ópera-samba.. O autor espera também que o disco tenha alguma repercussão no Brasil, onde vários projetos musicais, nos últimos tempos, têm abordado estas mesmas questões históricas e políticas, cujo exemplo mais mediático é o documentário AmarElo, do rapper Emicida, lançado na plataforma Netflix no final do ano passado. "Senti-me muito identificado com esse projeto, que parte das mesmas premissas deste disco, e quando comecei a ver o filme até tive algum receio, porque o conceito era muito parecido. Mas por incrível que pareça, as histórias contadas são todas diferentes e acabei por aprender muito", reconhece..Natural do Rio de Janeiro, Luca Argel, 32 anos, chegou a Portugal em 2012, com uma licenciatura em Música, para fazer um primeiro ano de mestrado em Criação Artística Contemporânea, na Universidade de Aveiro. Pouco tempo depois, porém, mudou-se para a Universidade do Porto, onde ingressou num mestrado em Literatura. Com mais um ano ganho no visto de estudante, foi aos poucos ganhando raízes. "Acabei por não voltar quando planeado porque tinha uma namorada aqui e não queria acabar a relação", confessa. Antes de terminar o mestrado em Literatura, já estava envolvido com o grupo portuense Samba Sem Fronteiras, que ajudou a fundar. "Começou como uma brincadeira, mas depressa nos profissionalizámos. Começámos a receber convites para tocar e a música depressa virou a minha principal fonte de rendimento..Inesperadamente encontrei um trabalho, e, quando finalmente defendi o meu mestrado, já não considerava voltar para o Brasil tão cedo", conta. Desde então já editou três álbuns de originais, Tipos Que Pendem para o Silêncio (2016), Bandeira (2017) e Conversa de Fila (2019), a que se junta agora este disco conceptual de arrojadas versões de clássicos do samba, talvez só possível por se ter feito músico deste lado do Atlântico. "O samba é um estilo centenário e as pessoas valorizam muito as tradições. Existe uma cultura muito forte de respeito aos mais velhos, à velha guarda, como se diz nas escolas de samba", assume. Trata-se, todavia, de "uma tradição um pouco inventada", porque o samba sempre se transformou muito ao longo da história"..Mesmo assim, tem a certeza de que haverá muita gente, no Brasil, que não aprova o que Luca fez neste álbum. E a distância permite-lhe fugir a esses cânones. "Como estou fora, sinto-me mais à vontade para ter um olhar diferente e poder experimentar mais com os próprios limites do samba", que afinal, como este disco prova, tem tudo a ver com liberdade.