A boa tradição literária portuguesa diz que os escritores estabelecidos sentem a dado momento uma inveja do sucesso dos novos valores e o caso de Vergílio Ferreira a diminuir António Lobo Antunes em 1985 é um bom exemplo. Na sua diarística, Conta-Corrente, volume 5, o autor de Aparição escreve na entrada do dia 25 de novembro: "Há para aí agora um escritor novo que faz um cagaçal medonho com a sua obra. Chama-se Lobo Antunes e diz ele que não lhe interessa a literatura europeia e que formou o gosto na americana. Perguntam-me se aprecio o novo génio. E eu disse: não gosto de Coca-Cola. Prefiro vinho tinto.".Após o anúncio no ano passado de que a prestigiada Plêiade vai incluir na sua biblioteca este segundo português - a seguir a Fernando Pessoa -, António Lobo Antunes está neste ano a celebrar 40 anos de vida literária e hoje realiza-se um colóquio a celebrar esta data na Fundação Calouste Gulbenkian, onde o autor que para Vergílio Ferreira tinha o sabor de literatura Coca-Cola também revela o seu mais recente romance: A Outra Margem do Mar. Uma história com o cenário da guerra colonial, aquele que melhor marca a identidade da obra do escritor vivo mais importante da nossa literatura contemporânea..Tal como os mestres da literatura americana referidos por Vergílio Ferreira, Lobo Antunes regressa periodicamente a esta época nacional e faz do tema da guerra um romance. Foi o caso de William Faulkner, que Lobo Antunes continua a apreciar ao contrário de outros autores - Joseph Conrad, por exemplo -, um escritor que olhou para a guerra e as suas sequelas desde o seu primeiro romance, A Recompensa do Soldado, e no qual contava a história de um piloto que combateu na Grande Guerra e quer reorganizar a vida após regressar..A Outra Margem do Mar vive de um cenário da guerra colonial e sucede a um interregno de um ano na temática, após ter publicado em 2017 o romance Até Que as Pedras se Tornem mais Leves Que a Água, momento em que teve outro rumo. Desta vez, recria na sua polifonia os momentos que antecipam o início dos conflitos na Baixa do Cassange em Angola em 1961..No romance que chegou às livrarias nesta semana, Lobo Antunes volta à guerra e não lhe dá tréguas nas 365 páginas do livro. Com inovações inesperadas na sua habitual estrutura literária, pois constrói uma das raras vozes femininas enquanto protagonista, a Domingas. Uma menina em crescimento - "foi essa aí que veio de África?" -, que permite ao autor recordar o que se passou em Angola no ano em que a violência independentista deu os primeiros grandes passos devido aos conflitos laborais na empresa Cotonang, que explorava o algodão a preços baratos, e dos quais resultaram massacres de centenas de portugueses..A violência desses confrontos fez que o governo de Salazar enviasse várias centenas de militares para reprimir o levantamento, um contingente a que se seguiram muitos outros, fazendo rondar em 1974 o número de um milhão de homens que tinham ido para África defender as províncias ultramarinas. António Lobo Antunes foi um desses portugueses, psiquiatra enviado para fora de Lisboa e a quem foi impossível virar a cara ao que viu em Angola, bem como a relatar sob a forma de literatura o que observara..A partir desse momento, firmava-se o escritor marcado pela guerra colonial e tal acontece logo nos primeiro e segundo romances que publicou em 1979 e que o lançaram definitivamente como autor após vários manuscritos em que corrigiu uma voz própria e a tornou diferente. Dois romances em que a guerra colonial está presente, como iria suceder em sucessivos livros a que a boa receção dos leitores o tornaria uma das revelações mais significativas da nossa literatura no tempo pós-25 de Abril em que os manuscritos proibidos pela censura não surgiram..O escritor que revolucionou a literatura.Há 40 anos, a voz de Lobo Antunes foi a primeira grande revolução literária entre os escritores portugueses dos finais do século XX. Nas décadas anteriores poucos se destacaram e nenhum dos autores de sucesso reformulara a narrativa como António Lobo Antunes iria fazer em Memória de Elefante e Os Cus de Judas. Ambos publicados de rajada antes e depois do verão desse ano, para dar resposta a leitores sôfregos da novidade do psiquiatra/autor que punha nos seus livros aquilo a que mais ninguém se aventurava - a guerra. No primeiro romance, a alusão à guerra colonial surge poucos parágrafos após dar início ao livro: "Este gajo deve ter sido na tropa o pide favorito do sargento." No segundo romance, é preciso ir até à sexta página: "Felizmente que a tropa há de torná-lo um homem.".A razão por que António Lobo Antunes faz neste novo romance um regresso ao tema que o destacou desde o início da carreira ainda não foi explicada pelo escritor. Mas na página 49 sugere uma pista, ao pôr na boca da personagem que esta pode debruçar-se da "janela de Portugal", mesmo que não consiga ver o que se passa lá longe, em Angola. Tal como nos sucessivos romances sobre a guerra colonial, em que Lobo Antunes teima em desmistificar o receio nacional ainda em vigor por parte da maioria dos seus colegas escritores de descrever o período mais traumático da história portuguesa recente, passadas 14 páginas, o escritor volta atrás e permite que a personagem altere a declaração e diga: "Tenho a certeza de que vejo Angola daqui." O reconhecimento da teimosia de Lobo Antunes no relato da guerra já foi destacado por Eduardo Lourenço:"Somos sobreviventes de um império de lembranças e Lobo Antunes escreveu uma das maiores obras literárias em que reinventou o que se abandonou em 1974 sem fazer luto. É uma obra representativa para fazer o luto sem viver de nostalgias confusas e aberrantes.".Um novo romance, o mesmo livro.A Outra Margem do Mar, o novo romance de António Lobo Antunes, mantém o seu estilo tradicional e, como já disse em entrevista ao DN, espera que a cada novo volume "consiga estar mais perto daquilo que considero ser um bom livro. À medida que os anos foram passando, percebi que escrever era muito difícil... Os livros bons são maiores do que a vida. Se lermos Os Possessos, de Dostoievski, perguntamo-nos como é que aquele homem conseguia encher os livros de grandes trevas vivas? Se o escritor não as tem não é bom... ".Em A Outra Margem do Mar, Lobo Antunes regressa a temas que o perseguem e que se tornaram norma na sua digestão da guerra colonial; utiliza expressões da memória de quando lá esteve - como "numa bifurcação da picada onde o capim igual sempre, um bando de mabecos a fugir de nós";delírios de vozes que tanto refletem o pensamento dos locais como dos militares, como "não há África nenhuma, garanto-lhe, que absurdo imaginar Angola, as colinas de algodão, os mandris, o governador de Malange";a resposta dos colonizados rebeldes, como "enquanto os pretos continuavam a destruir pontes e a queimar armazéns"; ou as notas emocionais de amores casuais, como "aquela com a ponta da lâmina para cima terminando não num bico, mas em dois bicos letais, o bâton da tua boca a suplicar"..Nota-se neste novo romance um corte com algum do recorte literário habitual em António Lobo Antunes, mais despojado de metáforas e por vezes menos lírico ou reincidente em afirmações que regem a pauta musical das suas páginas. Não faltam referências a romances que já tinham um pé em Lisboa depois da guerra em Angola, como quando coloca a presença repetida de gaivotas no imaginário das personagens..Em 2017, após entregar para ser datilografado o manuscrito deste romance que agora publica, Lobo Antunes disse que estava "à espera dele para voltar à escrita". Acrescentava: "Este intervalo tem dado muito espaço para pensar. O que foi a minha vida? O que fiz dela? O que vou fazer nos anos que faltam? Espero que não sejam muitos porque não quero assistir à decadência.".Como este novo livro não deverá ainda estar sobre a mesa do colóquio que hoje a Gulbenkian organiza, com uma sessão inaugural proferida por um dos maiores fãs do escritor, Bernard-Henri Lévy, os dois primeiros vão estar bem presentes. De Memória de Elefante disse o seu editor francês, Philippe Bourgois, que era o "melhor primeiro romance que conhecia". Quanto a Vergílio Ferreira, Antunes já lhe respondeu em tempos: "Era um chato.".Colóquio - Programa.A Gulbenkian realiza hoje na Fundação em Lisboa um colóquio sobre António Lobo Antunes para evocar os seus 40 anos de vida literária.10.00 Abertura por Guilherme d"Oliveira Martins.10.30 Conferência de abertura por Bernard-Henri Lévy.12.00 Memória de Elefante/Os Cus de Judas: A Génese da Obra com Daniel Sampaio, Dinu Flamand e Nuno Lobo Antunes.14.30 De dentro para dentro, com Ana Paula Arnaut, Maria Alzira Seixo, Norberto do Vale Cardoso e Sérgio Guimarães de Sousa.16.00 De fora para dentro, com Dominique Nédellec, Knut Cordsen, Mircea Martin e Vincenzo Russo.17.30 Encerramento com Marcelo Rebelo de Sousa, Isabel Mota e Lobo Antunes, seguido de leituras pelo autor..Sábado, dia 28 setembro, Auditório 2, com entrada livre.