Lisboa é uma cidade cheia de palácios com séculos de história, mas dificilmente algum terá uma tão longa lista de funções e inquilinos como o Palácio da Independência. Também conhecido como Palácio Almada, o edifício do Largo de São Domingos, junto ao Rossio, já foi sede do Senado da Câmara, do Tribunal da Relação, foi morada de Almeida Garrett, já teve cafés, barbearia, depósito de pão e armazéns vários, recebeu o Liceu Francês, teve uma transformadora elétrica nos jardins, foi sede da Mocidade Portuguesa. A lista não é exaustiva e falta-lhe ainda o mais conhecido dos acontecimentos que decorreu dentro dos muros do edifício: as reuniões dos 40 conjurados que haveriam de ditar o fim da dinastia dos Filipes e a restauração da independência, em 1640, com a aclamação de D. João IV..Dessas reuniões sabe-se que decorriam num pavilhão ao fundo do jardim, presumivelmente no mesmo sítio onde está hoje uma pequena sala com representações dos conjurados. Este será um dos espaços que ficará acessível ao público quando ficar concluída a requalificação do palácio, que teve agora um primeiro passo com a assinatura, na última semana de maio, de um protocolo entre a Câmara Municipal de Lisboa e a Sociedade Histórica da Independência de Portugal (SHIP), entidade que ali está sediada desde 1861. O objetivo é que, dentro de dois a três anos, todo o piso térreo fique aberto ao público, com a criação de um espaço museológico dedicado ao 1.º de Dezembro e a outras datas marcantes da história do país. Também o jardim romântico abrirá as portas aos lisboetas, dando acesso à tal sala dos conjurados e a um troço da cerca fernandina que ali ficou preservado. A intenção final passa, aliás, por levar os visitantes a repetir os passos dos conjurados, que desciam clandestinamente pelas escadas da cerca (que a família Almada nunca desativou), nas traseiras do edifício, para chegarem às reuniões. Mas a abertura dessa entrada é um propósito a mais longo prazo, dado que a porta que em tempos existiu no topo da cerca fernandina está hoje tapada por um prédio..O protocolo firmado entre a câmara e o SHIP - que terá agora de ser aprovado pelo Executivo e pela Assembleia Municipal - prevê um investimento de um milhão e meio de euros na reabilitação do Palácio. "É uma obra muito crítica num monumento nacional, numa zona sensível da cidade", sublinha José Ribeiro e Castro, atual presidente do SHIP, que espera ver a requalificação terminada ainda durante o presente mandato de três anos que cumpre à frente da Sociedade..Os primórdios da história do Palácio da Independência remontam a 1467, ano em que a família Almada assina a escritura de compra de algumas casas no local onde hoje se ergue o imóvel..Quem entre no átrio, a partir do Largo de São Domingos, tem à sua direita aquela que é a imagem mais icónica do edifício: as duas chaminés monumentais, semelhantes às do Palácio Nacional de Sintra. São um dos elementos arquitetónicos mais antigos, a que se somam quatro portais manuelinos, conta Jorge Pereira Sampaio, historiador e autor do livro O Palácio da Independência..O espaço do átrio, que dava entrada para as carruagens e acesso às cavalariças, resulta, no seu traçado atual, de grandes obras feitas já no início do século XVIII, depois de a família Almada ter pedido à Câmara de Lisboa que lhe cedesse "chão público" para ampliar o edifício ou, como escreveu à época, "...meter o cunhal em esquadria para compor o perfil e ficar a praça mais lustrosa ...". .Na sala térrea, a que se acede a partir do pátio, está outra obra marcante do palácio: um painel de azulejos de Gabriel del Barco (o autor do Grande Panorama de Lisboa que está exposto no Museu Nacional do Azulejo). Ao lado, todas as bandeiras de Portugal desde a fundação - o elemento que costuma fazer a delícia dos miúdos nas visitas escolares ao palácio, conta Ana Proserpio, diretora dos Serviços Culturais da SHIP..Em 1755, prossegue Jorge Pereira Sampaio, o palácio escapa com poucos danos ao terramoto, ao contrário do que aconteceu com o vizinho Hospital de Todos-os-Santos, e acaba a receber doentes levados dos escombros da unidade hospitalar. Foi ainda na sequência do grande terramoto que se instalaram depois no edifício o Senado da Câmara de Lisboa e o Tribunal da Relação..Cerca de 20 anos depois do terramoto, a família volta a habitar o palácio de forma permanente, faz novas obras, colocando então nos jardins os painéis de azulejos comemorativos da Restauração, que estão atualmente a ser recuperados. Meio século depois, com a vitória dos liberais, a família Almada - que era miguelista - ruma a norte e deixa definitivamente o edifício, confiscado pelo Estado, que ali instala a Comissão da Reforma Geral dos Estudos destes Reinos. Foi na condição de vogal desta comissão que Almeida Garrett habitou no imóvel, em 1834..Já em 1861 realiza-se no edifício a primeira reunião da recém-criada Comissão Central 1.º de Dezembro (renomeada em 1927 para Sociedade Histórica da Independência Portuguesa), cuja história se vem a confundir com a do palácio nos últimos 160 anos..Com a república, multiplicam-se os inquilinos: habitações particulares, um café, uma padaria, uma barbearia, escritórios, armazéns. As Companhias Reunidas do Gás e Electricidade instalam nos jardins uma transformadora elétrica, uma pesadíssima construção, que vem a ser demolida já nos anos 80..De entre tantos inquilinos, o mais perene, além da própria família Almada, foi o SHIP. José Ribeiro e Castro conta que a então Comissão Central 1.º de Dezembro surge a 24 de maio de 1961, em reação a um "surto de iberismo" que nasce em Madrid e ganha eco em Lisboa. "É uma iniciativa da sociedade civil, de comerciantes, intelectuais", de todos os quadrantes políticos, "progressistas e regeneradores, monárquicos e republicanos". Ao longo dos anos, a Sociedade lança petições populares - o moderno crowdfunding - para subsidiar, entre outros, o Monumento aos Restauradores, na praça lisboeta com o mesmo nome, e que a partir de 1886 se torna um ponto obrigatório nas comemorações oficiais do 1.º de Dezembro, tradição que ainda hoje persiste. A estátua de D. Afonso Henriques, em Guimarães, a de Camões, no Chiado, ou a de Bocage, em Setúbal, foram também financiadas pela mesma via. "A atuação desta comissão deixou grande lastro e a república vem a incorporar esse espírito", diz o presidente da SHIP. O decreto do governo provisório que define os feriados vem estabelecer o 1.º de Dezembro como o Dia da Autonomia da Pátria e depois também da Bandeira..Em 1940, a comunidade portuguesa no Brasil adquire o edifício (por 2800 contos), depois doado ao Estado e confiado à SHIP, mas partilhando o espaço, nas décadas seguintes, com o Comissariado da Mocidade Portuguesa - o que fará com que o palácio seja ocupado após o 25 de Abril de 1974. Já nos anos 80, o imóvel recebe a Associação dos Deficientes das Forças Armadas, também em partilha com a SHIP..Ribeiro e Castro foi uma das vozes que, em 2011, mais se levantou contra a anulação do feriado do 1.º de Dezembro, uma decisão do governo de Pedro Passos Coelho, fundando na altura um movimento em defesa da reposição do feriado. O que veio a acontecer em dezembro de 2016 - e, simbolicamente, a referenda do diploma pelo primeiro-ministro (o último ato antes da publicação em Diário da República) foi feita no Palácio da Independência..Segundo Ribeiro e Castro, a SHIP tem hoje 1000 a 1200 associados, entre os quais se conta Marcelo Rebelo de Sousa (e com as "quotas em dia", garante). Recentemente, por ocasião do 160.º aniversário, o Presidente da República atribuiu à Sociedade a insígnia de Membro Honorário da Ordem de Cristo..susete.francisco@dn.pt