Lisboa, cidade (ainda) aberta

Vinagre de maçã, sabão azul e branco e fé em Deus. Foi assim que a lisboeta de 83 anos resumiu as precauções ao DN. Como os turistas que gozavam o sol, a cidade resistiu a aceitar que tudo tem de mudar - para que possa ficar na mesma.
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Há um livro de Paul Auster, No País das Últimas Coisas, em que tudo muda todos os dias - ruas pelas quais na véspera se podia passar ficam interditas, ações que ainda ontem eram possíveis passam a proibidas, palavras deixam de existir, pessoas desaparecem.

A Lisboa desta quinta-feira, antes da declaração pelo governo do estado de alerta, evocou a cidade sem nome do livro de Auster: um lugar onde se sabe que tudo mudará amanhã mas no qual se age com as regras do dia, as que havia, por mais que se saiba que depois se perguntará como foi possível.

Vejamos por exemplo Astrid, 50 anos, francesa de Metz que aguarda na longa e compacta fila onde dezenas esperam vez para subir no elevador de Santa Justa. Será ela mais o marido e 16 outras pessoas - 18 é a lotação atual desta antiguidade inaugurada em 1902 para que os lisboetas pudessem subir os 45 metros da rua do Ouro até ao largo do Carmo sem perder o fôlego mas que no século XXI só serve turistas, a mais de cinco euros por cabeça.

Astrid é enfermeira num lar de idosos e quando partiu de férias para Portugal (chegou na quarta-feira) o lar já tinha proibido visitas "para proteger os idosos". Di-lo como se não acreditasse na necessidade e abana a cabeça quando lhe perguntam se não será má ideia meter-se numa cabine fechada de elevador com tanta gente. "Não acho perigoso. Aliás, porque é que as pessoas não têm medo da gripe e têm medo do coronavírus?" Deixa a pergunta fazer efeito e prossegue: "Não se pode parar a economia de um país inteiro. E as percentagens de morte são baixas."

Não para quem morrer, evidentemente - e decerto não para quem, como os idosos no seu local de trabalho ou pessoas com fragilidades pré-existentes, esteja nos grupos de maior risco. Mas talvez Astrid não seja assim tão temerária afinal; foi ainda esta manhã (de quinta-feira) ao consulado de França informar-se sobre as recomendações. "Disseram que não tinham nada de especial para nos dizer - hoje." E repete: "Hoje. Disseram para estarmos atentos ao site da embaixada."

"Estas pessoas estão aqui a fazer o quê?"

Se fosse precisa alguma prova da importância das orientações governamentais para criar nas pessoas e nas empresas, incluindo as públicas, um sentimento de perigo, esta fila para o elevador de Santa Justa seria a ilustração perfeita.

Porque não se trata apenas dos turistas que por sua vontade aqui estão: há aqueles - dois guarda-freios funcionários da Carris - cujo trabalho é passar o dia dentro do elevador com uma média de 1500 pessoas, a 84 viagens por dia entre as 7.30 e as 21 horas. Num elevador - local que na China e na Coreia do Sul foi considerado de alto risco, implicando que nas empresas se prescrevesse um número máximo de pessoas por viagem, indicando as últimas notícias da Coreia que só é agora permitida uma única pessoa de cada vez.

Os funcionários declinam comentar, mas a expressão do rosto é elucidativa. Um não contém um desabafo: "E estas pessoas [refere-se aos turistas] estão aqui a fazer o quê? Não sabem do risco?" Outro encolhe os ombros: "Não percebo de que estão as autoridades à espera. Ainda há bocado entraram aqui uns ingleses vindos de Heathrow, perguntei se houve algum controlo e eles disseram que não. O mesmo para os dos cruzeiros. Continuam a atracar e ninguém pergunta nada aos passageiros."

É verdade que as ruas da Baixa não estão tão cheias como de costume. Mas também não estão vazias, longe disso. Na Praça do Comércio, há esplanadas repletas onde se goza o sol de março, e se os elétricos específicos para turistas passam quase vazios, o 28, uma carreira normal que se tornou quase impraticável para os lisboetas devido à afluência de turistas, continua bastante cheio. Particularmente impressionante é a quantidade de turistas aparentando mais de 65 anos que espera por vez nas paragens. Ou que, como esta excursão de dezenas espanhóis seniores que entra na Sé de Lisboa, sorri ante as perguntas. Chegaram na quinta-feira, partirão no domingo e apesar de o seu país ter começado já, com milhares de infetados e mais de 100 mortos, as medidas duras de mitigação (seria declarado o estado de emergência esta sexta-feira em várias regiões, havendo já membros do governo infetados) não parecem nada preocupados. "Não temos medo. Somos de Barcelona e lá ainda está tudo limpo."

"É capaz de ser mais seguro que no meu país"

Uma ideia de imunidade por etapas, então: estaremos a salvo, como por magia, enquanto não houver evidência de que o vírus entrou disparado no nosso continente, no nosso país, na nossa região e na nossa cidade. E ainda assim, talvez seja preciso conhecermos alguém infetado ou sabermos de mortes - e até agora não há notícia delas em Portugal - para nos atingir a noção de urgência, de risco, percebermos que é preciso mudar a maneira como nos comportamos, como vivemos.

Porque, caramba, é difícil - sobretudo se, como Carmel, uma britânica de 65 anos que com o marido chegou na segunda a Lisboa, estamos de férias numa cidade estrangeira, está sol e queremos aproveitar. "Comprámos a viagem há duas semanas. Achámos que comparado com outros países Portugal é seguro, não tem muitos casos, não parece muito afetado. Não, não estamos a evitar estar com pessoas nem a tomar grandes precauções. Só lavamos as mãos mais vezes."

O mesmo diz um casal de alemães de trinta anos que passeia o bebé na Praça da Figueira. Também marcaram férias em fevereiro e chegaram ao Porto no início da semana. "Não estamos arrependidos de ter vindo. Sabemos que Espanha está a fechar tudo mas não temos medo que suceda aqui. E não estamos a ter mais cuidado que o de lavar as mãos mais vezes."

Há até quem, como este jovem estudante, também alemão, de férias num grupo de 15 compatriotas que passeia à beira rio a caminho do Cais do Sodré, ache que aqui está melhor: "É capaz de ser mais seguro aqui que na Alemanha." Como Carmel, como os espanhóis, como a francesa Astrid, como o casal do bebé, franze o sobrolho ao ser perguntado sobre precauções de distanciamento social. Quando lhe é dito que há bares e discotecas e espaços culturais a anunciar o fecho (alguns estabelecimentos lisboetas, caso da Galeria Zé dos Bois, no Bairro Alto, que tem também um espaço de bar e disco, fizeram esse anúncio antes mesmo da declaração final do Conselho de Ministros na madrugada de sexta), fica espantado. "Ai é?"

É, respondem as três estudantes do curso de ciências de comunicação do IADE, Margarida, Marta e Laura, todas de 20 anos, que se sentaram à beira Tejo na Ribeira das Naus a meio da tarde desta quinta-feira. Creem que já não deviam ter aulas - "Estamos montes de alunos na mesma sala, é um disparate" - e que "as pessoas não estão a levar isto a sério. Acham que só acontece aos outros. Basta ver as praias cheias." Quanto a elas, acham que estão a tomar precauções, mesmo se aqui estão longe de observar o metro (ou metro e meio?) de distância recomendado. "Não damos beijos de cumprimento - já não tínhamos esse hábito, portanto." Nem dos outros? "Não há namorados, não corremos esse risco". Riem.

"Fechar só se o governo decretar medidas extremas"

Praias cheias, esplanadas cheias: como a do quiosque da Ribeira das Naus. João, o gerente, nota menos gente a passear na cidade (é notório nesta zona como no Chiado e Rua Augusta) mas quanto ao negócio é "um dia normal". O único sinal de não normalidade são as luvas de látex azuis usadas pelos empregados. "Começámos com as luvas e a tentar manter a distância de um metro na terça. Isso nós, porque nos clientes, que são maioritariamente estrangeiros, não noto a mínima preocupação. Só aceitamos pagamentos em cartão e estamos a limpar as mesas e as cadeiras mais vezes e com uma solução com álcool, mas não conseguimos ter sempre tudo limpo, é impossível." Fechar, só se os clientes deixarem de aparecer ou se "o governo decretar medidas extremas".

Medidas extremas é o que espera Tiago Monteiro, da empresa de animação turística Boost Portugal, com sede na Rua dos Douradores. "Providenciamos várias atividades, incluindo tuk-tuks, e trabalhamos muito por agendamento. Começámos a receber os primeiros cancelamentos há duas semanas mas não sentimos grande quebra até à semana passada. Esta semana começaram a cair os cancelamentos e hoje (quinta) foram os últimos. Em março costumamos ter uma média de 60 a 100 atividades por mês e está tudo parado."

Com 50/60 pessoas com contrato e recorrendo a 60 a 100 freelancers, o empresário só vê duas alternativas: "Ou despedimento coletivo ou lay-off [suspensão do contrato de trabalho ou diminuição do horário de trabalho com redução do salário bruto até um terço, durante um máximo de seis meses, sendo 70% do mesmo pago pela segurança social]. Preferimos o lay off, claro, mas estamos à espera de ver o que sai do Conselho de Ministros desta noite."

E empresas muito mais pequenas que vivem do turismo, como aquela para a qual trabalha Manuel e que tem apenas um tuk-tuk, como farão face ao "fecho" do país? Parado junto à Sé, como mais uma dezena e meia de "colegas", no fim da manhã de quinta-feira, o homem de 36 anos suspira. Está no ramo desde outubro, apanhou os meses de inverno, sempre mais calmos, e a coisa começava a animar no início de março. "Estava a ser bom até sábado. Mas estive uns dias a descansar, voltei hoje e ainda não dei nem uma voltinha. Espero sinceramente que não se entre em situação de grande alarmismo e que se parar tudo não seja mais de um mês, senão vou ter de falar com a minha esposa para decidirmos a nossa vida. Estávamos no estrangeiro a trabalhar e voltámos porque tínhamos saudades, teremos de ponderar o que fazer."

"Uso vinagre de maçã e tenho fé em Deus"

Precisamente a ponderar estão os empregados do cabeleireiro da cadeia Tony & Guy na Rua da Padaria, que apesar da porta aberta têm um cartaz à entrada com "closed/estamos fechados". "Viemos trabalhar mas encerrámos porque não temos clientes. O telefone não toca, há uns dias que ninguém marca nada. Não sabemos ainda o que vai acontecer, se vamos continuar fechados ou reabrir se vieram toalhas e capas descartáveis. Mas é muito complicado porque o nosso trabalho implica estar mesmo em cima das pessoas, não dá para manter a distância. E não vamos pôr-nos de máscaras, não é? Não faz sentido."

O que faz e não faz sentido muda, como no livro de Auster, de acordo com a necessidade, as regras da sobrevivência e os dados disponíveis. Alguém imaginava há dois meses que podíamos chegar aqui, ao momento em que o mais banal gesto de afeto é designado como irresponsável, em que estar no espaço de respiração de alguém ou tocar onde os outros tocam, das maçanetas das portas aos terminais de multibanco, dos balcões de lojas aos corrimãos de escadas, é risco para o próprio e terceiros?

Nas urbes das sociedades livres, onde nos cruzamos diariamente com milhares, o princípio fundador é a suspensão da desconfiança e do medo. Foi assim que tudo começou, na ideia de que dentro das muralhas da cidade estaremos seguros. A não ser que o perigo venha dessa fraternidade, da ligação entre nós, da confiança que nos temos, da troca, do diálogo. Do amor e da liberdade. Da comunhão e da alegria.

Não é fácil aceitar esta mudança tão abrupta, tão dura, tão contra os hábitos, tão contra aquilo que cremos ser - e é - o melhor de nós.

Ana Maria, bengala a amparar os 83 anos, não aceitou ainda. Veio no elétrico 725 da Estrela para fazer compras na Pollux, o grande armazém de produtos para o lar sito na Rua dos Fanqueiros. "Preciso de umas coisas. Não vou deixar de sair, de ir ao centro comercial, à igreja... Não vou ficar fechada em casa." Questionada sobre o que a preocupa na situação, refere "as mães com crianças pequenas", sem que se perceba exatamente porquê. Não parece considerar o facto de o vírus ser muito mais letal na sua faixa etária, com uma taxa estimada de morte de quase 15%.

"Precauções? Comprei mais leite em pó e conservas, mas nada de açambarcamento. E uso vinagre de maçã para desinfetar e sabão azul e branco." Sabe que em Espanha estão a fechar tudo, não teme que suceda o mesmo aqui? "Não. Tenho fé em Deus." Não acha que em Espanha também há quem tenha? "Não sei. Eu tenho muita fé."

Teremos de a ter. Senão em divindades, uns nos outros, uns pelos outros. E nesta ideia: comunidade.

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O DN e o Média Lab do ISCTE estão a acompanhar o crescimento de uma campanha de fake news no WhatsApp. Nas últimas horas, várias mensagens com informações falsas procuram lançar o pânico, pondo em causa as informações verificadas e dando a entender que a crise do Covid 19 é muito mais grave. Por isso, o DN e o MediaLab procuram recolher exemplos desta campanha para poder refutar todos os erros ou informações manipulatórias.

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