Um vírus obriga a um jornal à distância e outras lições do covid-19
Este texto foi escrito numa situação muito peculiar. Num salto inesperado, o futuro chegou até nós. E este é um futuro de ficção científica sombria, mete vírus mortais e teletrabalho. Ambas iconografias comuns, mas até agora apenas isso. Agora, estamos lá. A epidemia chama-se covid-19. E daqui a umas horas, o Diário de Notícias, este jornal centenário (mais precisamente com 155 anos, foi fundado em 1864), vai passar por mais uma transformação, esta involuntária e, oxalá, temporária. O jornal vai ser todo feito à distância - numa experiência que mexeu com métodos de trabalho, adaptação tecnológica e muita, muita paciência e alguma ousadia.
Todos os jornalistas e restante equipa estarão a trabalhar em casa, em coordenação com outras equipas da empresa e tão distantes do meio envolvente quanto lhes seja possível. É verdade que o fazemos porque podemos - as tecnologias da comunicação permitem, hoje, e o tipo de trabalho que fazemos também. Isto é algo que os nossos camaradas da televisão ou da rádio não conseguem, para já.
Mas esta decisão implica riscos e não foi tomada de ânimo leve. Seria sempre difícil, o jornalismo precisa de massa crítica, daquela conversa, do olhar que comunica. Mas fizemo-lo com o sentido de proteção da nossa equipa e dos vários sinais que nos indicam que o isolamento e, mais do isso, o recolhimento, é, até agora, a única forma apontada como podendo conter a epidemia.
Há muito em aberto, e haverá muito para dizer sobre o que estamos a viver, quando tudo acalmar - tempos extraordinários, grandes lições. Sobretudo de jornalismo - o combate pelo rigor, a onda da desinformação que nos aparece de todo o lado e para a qual não chegam, como contraponto, todos os órgãos de comunicação social.
A verdade é que no atual ambiente comunicacional é muito fácil pôr o pé em falso. Querem um exemplo? Sexta-feira depois de almoço surgiu a notícia de que o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, estaria com covid-19. Surgiu no jornal tabloide do Rio de Janeiro O Dia. Tendo o DN uma parceria com A Folha de São Paulo, contactámos o seu diretor que disse que a notícia não estava confirmada. Não publicámos nada. Aguardámos.
A pressão era forte: logo de seguida, o sério jornal britânico The Guardian publicou a notícia, citando O Dia e vários órgãos portugueses replicaram. Mas o DN continuou a aguardar. O passa-palavra, que, no fundo, tinha todo a mesma fonte, terminou com o desmentido do filho do presidente brasileiro e com A Folha de S. Paulo a confirmar que o teste de Bolsonaro dera negativo - e essa foi a notícia que o DN publicou. A verdadeira. Cumprimos as regras básicas do jornalismo - mas mesmo assim sabemos que é muito fácil errar e por isso todo o cuidado é pouco. Neste texto do Poynter Institute, Cristina Tardáguila explica o que aconteceu para que órgãos de comunicação social sérios tenham tido esta notícia.
Muito do que se tem passado em Itália, Espanha, e até em Portugal - onde as praias se encheram de gente, no início de uma crise pandémica - tem a ver com o cinismo social. Algo que tem vindo a tomar conta da sociedade: ninguém acredita em nada, ou melhor, toda a gente desconfia de tudo, sobretudo em relação ao Estado, aos políticos e à administração pública. A forma de comunicação das redes sociais, a desinformação, o populismo acusador, tudo isso destruiu a importância da organização comum. Atomizou opiniões e desvalorizou a sociedade. Afastou consensos e enalteceu cisões. E deu origem ao nivelamento entre a ciência e o senso comum - o que talvez seja mesmo o mais grave nesta altura.
No meio de tudo isto, o jornalismo navegou à vista, levando com as vagas sucessivas de ataques, alguns económicos, outros políticos, tentando resistir, imbuído do seu espírito de missão, mas também tentando conservar o seu poder no mundo. E agora, mais uma vez, tornou-se essencial. Para comunicar com rigor - algo que pode salvar vidas. E apesar de chegar debilitado a esta crise que é sanitária mas que há de tornar-se económica, o jornalismo e as empresas jornalísticas enfrentam as dificuldades. Estão, como sempre, a cumprir uma função que é a deles - e que é, ao mesmo tempo, missão e modelo de negócio: informar, informar, informar.
Ainda na sexta-feira de manhã, num encontro com responsáveis da comunicação social, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, o confirmava, apelando a que as rádios e as televisões continuassem no ar e oferecendo ajuda a todos os jornalistas para que transmitissem as informações corretas. Nunca como nos tempos de crise o jornalismo é mais importante. Na sua base de confiança, sabe que não pode falhar. Em casa ou na redação.
* Uma versão anterior deste texto foi publicada na edição em papel do DN