Lucília viveu na Leprosaria Nacional. "Se tentássemos sair éramos presos"

Lucília entrou na leprosaria com 9 anos e só saiu adulta já com dois filhos. Viveu o estigma da doença que, nos últimos 30 anos, deixou de ser um problema de saúde pública, mas não está erradicada. Em 2017 registaram-se mais 210 mil novos casos no mundo. Cinco em Portugal.
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Lucília Vaz Marques, 76 anos, não vê, pelo menos aquilo que os olhos nos mostram. Percorre a sua casa com a memória. A lepra, que já não mora no seu corpo, levou-lhe um dedo da mão esquerda e obrigou-a a morar fora da sua casa por mais de duas décadas.Vive com a cadela Mimi na casa da sua infância, no lugar de Carvalha, Alvaiázere, distrito de Leiria. Foi dali que saiu a 2 setembro de 1951, a poucos dias de fazer nove anos, para a Leprosaria Nacional - o Hospital-Colónia

Rovisco Pais, criado em 1947, para receber aqueles a quem era diagnosticada a infeção crónica que afeta a pele, os nervos periféricos, o trato respiratório e os olhos.

Juntou-se aos outros pacientes, com a sua mãe, também doente, no isolamento do hospital próximo da vila da Tocha, no distrito de Coimbra, seis anos depois do seu corpo ter começado a dar os primeiros sinais da doença também conhecida como hanseníase, causada pela bactéria "Mycobacterium Leprae".

Tinha apenas três anos, quando os pais souberam que Lucília teria lepra. Os sintomas manifestaram-se rapidamente, tendo em conta que estes podem surgir entre dois a vinte anos depois da infeção.

"A minha mãe disse que me estava a dar banho e que o corpo estava cheio de manchitas. E tinha dores. Chorava muito com dores, nem deixava descansar a minha mãe, nem o meu pai", recorda.

O que sabia da doença era o que sentia. "Apareciam uns caroços - chamavam-lhes reação - e depois aquilo rebentava tudo nos braços, na cara, nas pernas. Fazia comichão e os enfermeiros faziam-nos os pensos. Eu lembro-me de que uma vez estive dois meses na cama sem me levantar".

Lucília podia ter regressado a casa aos 15 anos, mas preferiu ficar com a mãe, que ainda não estava curada. Acabou por "tornar a acusar" a doença aos 17 anos. E continuou a viver no Hospital Rovisco Pais até 1977.

Uma doença que não ficou no passado

Embora na década de 1940, a sulfona tenha contido a proliferação da doença, a reincidência era comum até 1980, quando se encontrou uma cura definitiva para a lepra - o tratamento com poliquimioterapia. Feito a tempo e em doses adequadas, entre seis a doze meses, permite deixar o doente sem sequelas e impede a transmissão a terceiros.

A combinação de sulfona, rinfampicina e clofazimia conhecida como poliquimioterapia é disponibilizada de forma gratuita desde 1995 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o que permitiu controlar o surto de hanseníase cinco anos depois.

Em 2000, a lepra deixou de ser considerada um problema de saúde pública, uma vez que passou a atingir menos de uma em cada 10 mil pessoas no mundo, segundo o relatório da OMS Estratégia Global Hanseníase 2016-2020: aceleração para um mundo sem lepra.

No entanto, o declínio acentuado da doença nos últimos 30 anos (em 1980 havia mais de cinco milhões de casos registados e em 2017 já eram 210671) não é sinónimo de extinção. A lepra é uma doença contemporânea, com transmissão em curso. Não está erradicada, porque ainda não existe uma vacina que impeça o contágio.

Nos últimos anos, o maior número de casos de lepra foram registados na Índia, no Brasil e na Indonésia, segundo dados de 2018 da OMS.

Em Portugal, existe um número reduzido de doentes com lepra. Nos últimos quatro anos houve 16 novos casos, segundo dados cedidos pela Direção-Geral de Saúde ao DN. Cinco foram registados em 2016 e outros cinco em 2017. A maioria dos pacientes tinha entre 45 e 54 anos.

"Os novos casos diagnosticados em Portugal provêm, em regra, de países endémicos de África, América Latina e Ásia. Mesmo assim, os casos diagnosticados no país são tratados e curados sem quaisquer restrições", explica Vítor Borges, presidente da Associação Portuguesa Amigos de Raoul Follereau, que dá apoio a ex-doentes de lepra no nosso país.

A aldeia da lepra

O primeiro inquérito que avalia a situação nacional da lepra foi realizado em 1821 por Bernardino António Gomes, da Academia Real das Ciências de Lisboa. São referidos 1403 doentes. Mas só uns anos mais tarde, no início do século XX, surgiria a ideia de juntar todas estas pessoa num mesmo local.

A inspiração foi importada da Noruega, quando o médico Gerhard Hansen, responsável pela descoberta da bactéria da doença, defendeu na 2.ª Conferencia Internacional da Lepra (1909), que o isolamento social dos doentes levaria a uma diminuição da reprodução da lepra - teoria nunca comprovada cientificamente.

Em Portugal, a Leprosaria Nacional abriu portas em setembro 1947. Era uma aldeia-ilha: um terreno de 140 hectares rodeado por arame farpado disfarçado de sebe. Do lado de dentro, havia camaratas para homens e mulheres, casas para as famílias e para os funcionários, creche, refeitórios, lavandaria, igreja, centro médico para investigação, tratamentos e bloco cirúrgico bem como espaços de lazer. Por ali passaram, durante 49 anos, 3260 doentes, segundo as contas de Vítor Matos e Ana Luísa Santos no livro Leprosaria Nacional (Dafne Editora).

Dentro da Leprosaria: "A gente não podia sair de lá"

"Aquilo tinha uma sebe muito grande com picos e arame farpado. E a gente não podia sair de lá. Se saíssemos éramos apanhados e íamos para a cadeia, porque tinham lá uma cadeia também. Eram umas celas com umas janelas muito grandes e muito altas; para ir à janela tínhamos de subir para cima de uma mesa e de um banco", descreve Lucília.

Ela própria frequentou o espaço prisional mais do que uma vez. A primeira vez movida pela curiosidade de saber a que sabiam as couves e depois por não ter cumprido o tempo (um mês) da licença para ir a casa depois de provar que tinha as análises "em condições".

"Aquilo tinha coisas boas e coisas más. Lá é que eu aprendi tudo: a cozinhar, a ler, a escrever, a bordar. Lá é que eu me fiz mulher. E as coisas más já passaram. Cheguei a passar muita fome. Uma vez estava a servir o comer nos pratos - era feijão-frade - e estava um rato lá dentro. Já não comi".

Inicialmente, vivia numa camarata com duas companheiras. Fez a quarta classe com ajuda de uma professora e de um professor, que também ali estavam internados. E mais tarde, conheceu dentro do hospital o marido, Caetano Rosa Vaz. "Foram elas é que me arranjaram o casamento", diz, referindo-se às enfermeiras. Casaram-se, em 1973, na igreja da Tocha.

Na altura, Lucília já tinha dois filhos, José Luís e Rui, que cresceram longe da mãe. Como acontecia com todos os filhos das pessoas que viviam no Rovisco Pais, foram levados da sala de partos para uma ala à parte - o preventório. "Foram embora logo. Lavaram-nos, vestiram-nos e foram logo para lá". Viu o filho, José Luís, mais velho pela primeira vez quando ele tinha 15 dias. Depois passou a vê-lo uma vez por mês através de um vidro.

José Luís e Rui não ficaram no hospital-colónia muito tempo. O padrinho do primeiro arranjou vagas para os dois na Casa do Gaiato, para onde foram viver. Lucília só voltou a ter consigo Rui, quando este já tinha 16 anos. Já José Luís acabou por nunca ir viver com a mãe: quis ficar na instituição, estudar e ir para o estrangeiro. Esteve mais de 16 anos no Brasil e atualmente vive na Coreia do Sul.

José Luís não tem grandes memórias dos seus primeiros anos de vida, por isso encarou com normalidade a distância da mãe. "O padre da casa do Gaiato explicou-me por que fui separado da minha mãe. Eu ouvi e encarei com naturalidade. Talvez se fosse mais velho tivesse assimilado a história de outra forma. Só mais tarde percebi a gravidade da situação", conta.

Os filhos eram separados dos pais para evitar o contágio. No entanto, hoje sabe-se que a doença tem uma taxa de contágio muito baixa. Segundo a Organização Mundial de Saúde cerca de 95% das pessoas não desenvolvem hanseníase quando em contacto com a infeção.

Segregação indevida

A Leprosaria Nacional viria a fechar portas em 1996 para reabrir depois como o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro Rovisco Pais, "um dos três centros de reabilitação do Serviço Nacional de Saúde com internamento e ambulatório", explica a diretora clínica deste espaço, Margarida Sizenando.

Mas a primeira vida do Rovisco Pais não está esquecida. "De facto, ainda está bem presente. Por um lado, porque ainda temos sete pessoas desse tempo aos nossos cuidados, e por outro lado estamos a organizar um núcleo museológico para preservação desta memória - o Immaterial and Material Memories of the Last Portuguese Leprosarium - Hospital Cologne Rovisco Pais, revela Margarida Sizenando.

Sobre a forma como afinal é transmitida a lepra, persiste o mistério. Acredita-se que o contágio aconteça pela via respiratória, como a gripe, e através de espirros. Sabe-se que não é uma doença hereditária e está muito associada a grupos vulneráveis, sem acesso a direitos humanos básicos, como saneamento, água potável, condições de higiene e alimentação adequadas.

"A lepra está inserida dentro de um grupo que se chama as doenças negligenciadas, onde estão aquelas que incidem mais em populações pobres e que por isso não atraem a mesma atenção que doenças com uma expressão mais generalizada. Atinge populações muito marginalizadas e estas também são quem tem menos capacidade de mobilização social para reivindicar alterações", indica Alice Cruz, relatora da Organização das Nações Unidas (ONU) para a eliminação da discriminação das pessoas com hanseníase.

"O Estado tem sempre o dever de assegurar o direito à saúde. A discriminação relacionada com a lepra também está associada à deficiência. Por isso, é importante que exista uma garantira de diagnóstico precoce e tratamento personalizado que previna o aparecimento destas mesmas sequelas que vão gerar pareceres discriminatórios", continua.

O estigma

Mais do que uma doença, a lepra tornou-se uma metáfora para descrever o socialmente vergonhoso, um insulto. Em 2016, o presidente francês, Emmanuel Macron, e o vice-presidente italiano, Luigi Di Maio, utilizaram a expressão "leprosos" em discursos sobre nacionalismo.

"A lepra é frequentemente utilizada como metáfora para tudo aquilo que deve ser mantido à parte. E quando pessoas com elevados níveis de responsabilidades evocam a doença como algo negativo vão reforçar esse imaginário na opinião pública", explica Alice Cruz.

"Existem mais de 50 países no mundo com leis discriminatórias. Só na Índia existem mais de 118 leis discriminatórias contra pessoas afetadas pela Lepra. Há leis que proíbem estas pessoas de andarem de transportes públicos ou de se candidatarem a cargos públicos", diz a relatora da ONU. "E há outros países onde já não há leis discriminatórias, mas onde existem práticas dentro da administração do estado discriminatórias. Infelizmente tenho recebido vários relatos deste tipo". Razões que justificam a existência de uma dia para assinalar a doença, o último domingo de janeiro. Este ano, 27 de janeiro.

Outra forma de discriminação das pessoas com lepra que merece a atenção de Alice é a estrutural, "que passa por toda a sociedade e que afeta as relações sociais nos espaços públicos e até dentro da própria família". Estas formas de estigmatização podem contribuir para diagnósticos tardios, que por sua vez acentuam as consequências da doença e reforçam a possibilidade de transmissão.

"Quando eu cá vim pela primeira vez, olhavam de lado e diziam: é lepra, é lepra", recorda Lucília Vaz Marques, sobre o regresso a casa e a reação dos vizinhos.

Com o tempo, deixaram de apontar para a doença, só da família, em particular das tias, sentiu a distância. Mas nunca se escondeu. Enfrentou a doença, de que hoje está livre. É o que lhe dizem as análises anuais que vai fazer à Universidade de Coimbra. Só as mazelas deixam à vista aquilo que um tratamento mais rápido e eficiente poderia ter prevenido.

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