"Leonardo queria ver o todo, não apenas as partes, por isso era um génio"
Senhor embaixador, Leonardo da Vinci é uma espécie de colega seu de profissão, um grande embaixador de Itália, o maior de todos?
Uberto Vanni d"Archirafi (U.V.d'A.) - Bem, Leonardo é tudo. Um embaixador, um cientista, um escultor, um pintor.
É uma personagem, diria eu, que nos entrou no ADN em Itália. É uma personagem que é estudada em todo o lado, seja num liceu científico ou num liceu cultural. Leonardo da Vinci é hoje estudado do ponto de vista da ciência e da tecnologia, como também do da filosofia. É um génio que nasceu no século xv e nos deixou uma herança, 500 anos passados, de ideias, de capacidade e sobretudo de desejo de ver mais à frente. E não se trata só de uma questão científica, mas da capacidade de ver mais à frente do que foram as suas circunstâncias de vida.
Quando se fala de homem do Renascimento, um homem completo, Leonardo é para si o melhor exemplo apesar de tantas outras personagens que a própria Itália produziu na mesma época?
U.V.d'A. - Sim. Leonardo é o exemplo de uma cultura diversificada, de uma cultura construída por um desejo de melhoria pessoal, que abrangeu todos os setores da ciência e da cultura. Há outras personagens importantes, como Rafael, e no próximo ano vamos ter os 500 anos da sua morte, mas Rafael era um artista, alguém especialmente dedicado à cultura, à arte. Leonardo era muito mais diversificado. Fez tudo. Deixou-nos desenhos para a construção de helicópteros. Porque é que chamamos hoje Leonardo à companhia italiana que vende helicópteros e muitas outras coisas que nascem dessa mecânica? Por justa ligação a Leonardo, o homem. E Leonardo está também presente no ideal de Hipácia, a associação de cientistas e investigadores italianos que trabalham em Portugal.
Cara diretora, Leonardo é um produto de Itália ou mais especificamente da Toscana, já que nasceu a 15 de abril de 1452 em Anchiano, comuna de Vinci, província de Florença?
Luisa Violo (L.V.) - Leonardo é único e seguramente a vivacidade muito particular que existia na Toscana ajudou a gerá-lo. E teve também a oportunidade de trabalhar com o pintor Verrocchio, que também se interessava não só pela pintura, como pela ciência. E Leonardo foi, se se pode dizer, o melhor aluno de Andrea Del Verrocchio. Esta relação naturalmente estimulou a apetência de Leonardo para sonhar, pois era um visionário e talvez aquela não fosse a época mais adequada às suas grandes ideias. Para ele, no fim de contas, a pintura foi a última coisa a nível de importância, para ele era importante, sim, a ciência, estudar e compreender o mundo e a sua realidade. Não fez muitas pinturas, talvez sejam 15 no máximo. Mas na pintura, dizem os estudiosos, está também o resultado da sua atenção à realidade. O estudo que fez da anatomia é incrível. Há desenhos de anatomia humana que ainda hoje impressionam. Foi grandioso.
Se a Itália tivesse de escolher um nome para o Instituto Cultural Italiano, como Portugal tem o Camões e a Espanha o Cervantes, Leonardo seria um candidato fortíssimo, imbatível até?
L.V. - Creio que sim, porque se dedicou a muitos campos. A cultura não é só a pintura, é também ciência e engenharia. E Leonardo foi um engenheiro muito importante. Na sua carta de apresentação dizia "e por último sou pintor". Se alguém hoje pensa na beleza de Mona Lisa, admirada em todo o mundo, parece excessiva humildade. Mas foi uma pintura que lhe levou um grande período de tempo a terminar, porque sempre estava a retocá-la, a aperfeiçoá-la. Leonardo tinha uma sensibilidade incrível e nunca estava totalmente satisfeito.
U.V.d"A. - Creio que Leonardo Da Vinci é um símbolo para o património cultural do nosso pais, mas ao mesmo tempo seria redutor dar o nome de Leonardo ao Instituto Italiano de Cultura, pois este último representa todo o património cultural italiano. E se Leonardo é o representante mais alto, há também Rafael ou Dante. Porque não chamamos Dante ao Instituto Italiano de Cultura? Temos também, aliás, um Instituto Dante Alighieri, que se distingue do Instituto Italiano de Cultura.
Têm muitos, os italianos, por onde escolher...
U.V.d"A. - Sim, temos muitos nomes grandes entre os quais podíamos escolher, mas na realidade Instituto Italiano de Cultura é uma designação bem conseguida porque representa todos. E quando falamos de património cultural italiano falamos de um património que é enorme, do norte ao sul. E posso dizê-lo com grande conhecimento próprio pois fui conselheiro do ministro da Cultura entre 2013 e 2018 e sei que a política cultural do meu país teve uma dinamização muito importante, ao nível do que se exige a uma superpotência, que é o que é a Itália neste campo.
Embaixador, consigo, quando era uma criança, foram os desenhos das máquinas mais do que as pinturas que o levaram até Leonardo?
U.V.d"A. - A minha experiência direta com Leonardo começou com os desenhos, com a parte científica, mas não se pode nunca reduzir Leonardo a essa faceta. Ele é tudo, os 360 graus da cultura italiana. Ele como homem de génio que é dedica-se a todas as atividades. Claro, temos um sistema científico e tecnológico que reivindica Leonardo da Vinci como se fosse o ADN italiano. Temos 24 parques científicos. Temos em Trieste e temos na Apúlia. Cito Trieste no norte e Apúlia no sul só para mostrar que em todo o lado da península temos institutos e entidades estatais e não estatais que estão diretamente ligados, psicologicamente e pelo ADN, a Leonardo. O AREA Science Park de Trieste junta as capacidades universitárias com o desejo de criar empresas. Aí nascem startups no mundo da universidade e que se transformam em empresas. E isto é um laço com Leonardo, porque ele nunca pensava num único setor. Era um homem curioso que queria ver o todo, não apenas as partes, por isso era um génio. Tinha capacidade de relacionar questões da ciência com outras da cultura, com a arquitetura, com a engenharia, era um homem completo.
Recorda-se da primeira vez que viu uma das pinturas de Leonardo?
U.V.d"A. - Sim, teria uns 7 anos e fui a Paris numa viagem. Foi a primeira vez que apanhámos o jumbo jet, era assim que se chamava ao 747, mas estamos a falar de há 40 e tal anos, e fomos ao Louvre e ali estava Mona Lisa. E foi um choque vê-la, um choque positivo, claro. E tive sempre a escola a mostrar obras de Leonardo da Vinci. Mostravam-nos nos livros o que ele fizera. E fica dentro de uma pessoa. Mesmo que durante anos não se volte a ver um da vinci, fica na pessoa, no ADN. E nós italianos vivemos, sentimos e respiramos uma cultura que está diretamente relacionada com Leonardo.
Diretora, recorda-se da primeira vez que viu obras de Da Vinci?
L.V. - Não tenho uma memória tão viva como o nosso embaixador. Claro que quando era pequena, nos livros, estava sempre a ver Leonardo. Lembro-me de que havia em Itália uma magnífica enciclopédia, que se chamava Vida Maravilhosa, e ali estava a história de Leonardo com tudo. O que me impressionou de verdade foi mais recente, quando vi a Sant'Ana restaurada, que normalmente estava no Louvre mas dessa vez estava em Lille, onde o Louvre construiu uma filial. E cheguei ali a pensar que ia encontrar centenas de pessoas atraídas pelo obra, esperar horas, e não estava ninguém. Foi uma experiência única, porque Sant'Ana é uma obra magnífica, e com o restauro tinha essa paisagem vibrante, com cores magníficas. Foi uma experiência muito forte.
Das obras de Leonardo que estão em Itália, A Última Ceia, em Milão, é a mais emblemática?
L.V. - Bem, A Última Ceia foi uma grande novidade na época, porque foi uma representação muito diferente da normal. As personagens tinham uma postura diferente, mas Leonardo não sabia a técnica do fresco e por isso inventou uma muito pessoal, que deu um resultado não tão duradouro, daí se falar sempre em restauros. Mas essa pintura foi logo conhecida em toda a Europa, por ser completamente nova para a época. Não sei se está relacionado, mas creio que Leonardo não teve uma boa relação com Miguel Ângelo, um grande pintor que, esse sim, sabia também fazer frescos.
U.V.d"A. - Também tenho uma recordação que quero contar: depois de anos a interiorizar toda a cultura italiana, encontro em Londres um quadro de Leonardo, com uma técnica muito particular, pois ele desenhava com lápis negro e depois logo se punha a cor, que podia ser cores ou preto. Ora, este Sant'Ana é algo maravilhoso, que nos dá toda uma sensação de vivacidade, a capacidade de Leonardo transmitir a vida com o olhar de Santa Ana, com o olhar de Maria, no menino nos seus braços, é extraordinário. Sobe-se as escadas e logo à esquerda há uma abertura e vê-se o quadro de Leonardo, e assim se dá com a genialidade.
L.V. - É uma outra Santa Ana, não a que vi em Lille. Esta em cartão, que não foi terminada. Leonardo muitas vezes
desenhava em cartão e deixava os discípulos a terminar. Mas neste caso fez depois uma Santa Ana.
Estão previstas celebrações dos 500 anos da morte de Leonardo aqui em Portugal?
L.V. - Sim, no instituto vamos ter uma conferência em maio sobre a paisagem de Mona Lisa a nível científico e estético. E vamos ter um espetáculo de música, porque Leonardo também se dedicou à música e à cenografia, e vai ser no Palácio da Ajuda. No verão vamos ter uma atividade sobre os escritos de Leonardo para estimular a mente humana. Será algo único, muito divertido, provavelmente organizado no Museu da Ciência aqui em Lisboa.
Embaixador, Leonardo é italiano, mas viveu muitos anos em França, onde morreu. As obras estão espalhadas por Itália, França, Reino Unido, Polónia. Hoje é possível dizer que Leonardo pode ser o símbolo de uma Europa Unida? Um símbolo europeu.
U.V.d"A. - Creio que Leonardo é um símbolo de universalidade. É um orgulho que o tenhamos na Europa, que tenha nascido na Itália. E, claro, tendo morrido em Amboise, França, a 2 de maio de 1519, há uma partilha de interesses entre Itália e França sobre a herança de Leonardo. Ele fez tantas obras que se espalharam pelo continente que podíamos dizer que é um símbolo da Europa, mas eu gosto de pensar que este homem nascido perto de Vinci é um representante da universalidade. Creio que também simboliza a riqueza cultural extraordinária do meu país, onde temos 53 sítios UNESCO, um país relativamente pequeno, mas com mais sítios UNESCO do que qualquer outro, por maior que seja. E fazemos tudo para que toda esta riqueza seja preservada para as gerações futuras. E fazemo-lo através de instituições como o Comando de Carabinieri, que tutela o património cultural e que é um pequeno grupo de pessoas, pouco mais de cem, que tudo fazem para que as obras de arte não sejam roubadas, e se o forem a nível internacional, recuperá-las e levá-las de volta. Tenho muito orgulho disso, porque não se fala muito deles mas têm feito coisas extraordinárias. Tem colaborado com a UNESCO e há protocolos para que estes peritos integrem equipas internacionais que possam ir onde for preciso no mudo, na Síria por exemplo, para recuperar ou restaurar património que em períodos de guerra são roubadas ou destruídas, como aconteceu há muito pouco tempo no Médio Oriente. Outro aspeto é tentar que a componente cultural esteja também prevista quando das operações de manutenção da paz das Nações Unidas. Recordo também que a Itália, e aqui foi uma homenagem à herança de Leonardo, dedicou à cultura a cimeira do G7 que organizou em 2017. Também Umberto Eco interveio num evento em que estava 83 ministros da Cultura na Expo de Milão de 2015 e desafiou todos sobre a responsabilidade de conhecer a cultura. Porque através da cultura eliminam-se as incompreensões entre os países. Eco morreu pouco depois. Do ponto de vista das celebrações, haverá também uma parceria entre o Museu de Ciência e Tecnologia de Milão e a Gulbenkian. E queremos aproveitar para dar mais visibilidade à Hipácia.