Lembrar o primeiro tratado sino-russo (um português estava lá)

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O Tratado de Nerchinsk, em 1689, não só foi o primeiro entre a China e a Rússia como o primeiro em que o chamado Império do Meio negociou em plano de igualdade com outro país, pois tradicionalmente não reconhecia a existência de nada que não fossem reinos vassalos. Mas a recente dinastia Qing, de origem manchu, teve, mesmo assim, de contornar os letrados han nas negociações e em vez deles usar personalidades de confiança da sua própria etnia. Não por acaso, as línguas do tratado são o manchu (e não o mandarim) e o russo, com uma versão em latim para servir de instrumento de resolução de algum ponto questionado. Um jesuíta polaco serviu de tradutor para o latim do lado da Rússia, um jesuíta português do lado chinês.

Foi depois de uma poderosa ofensiva militar chinesa que o tratado surgiu, com a Rússia, teoricamente, como o lado mais fraco. Mas na realidade o Tratado de Nerchinsk, só por existir, significou que a China, habituada a rivais vindos das estepes além-Grande Muralha, como os mongóis e os próprios manchus, povos pequenos e portanto assimiláveis quando surgiam como conquistadores, tinha agora que lidar com uma potência europeia em grande expansão através da Ásia Central e da Sibéria. Uma potência obviamente destinada a ser um tipo diferente de vizinho e um grande inimigo, tão cobiçoso de terras como a própria dinastia Qing o foi até entrar em decadência século e meio depois. Novos tratados entre a Rússia e a China, por esta considerados depois como desiguais ou impostos, substituíram, a partir de meados do século XIX, o de Nerchinsk e representaram a passagem de grandes parcelas de território da Manchúria para controlo dos czares.

Hoje, os presidentes chinês e russo, na cena internacional, fazem questão de se mostrar unidos frente aos Estados Unidos. E na realidade aquilo que une Xi Jinping e Vladimir Putin é mesmo a determinação em contrariar a persistente supremacia americana no mundo. Quando se olha para a cooperação entre Pequim e Moscovo, seja no plano militar (até exercícios conjuntos, mas com cuidado russo para não transferir demasiada tecnologia), seja no económico (fornecimento energético russo à China cresce, mas mesmo assim uma relação que não substitui como cliente o Ocidente), esta mostra fragilidades que têm explicação lógica mesmo sem olhar muito para a história remota. Há desconfiança de lado a lado, pois a Rússia não se sente confortável em ser o parceiro menor de uma China que é já a segunda economia mundial, e, por outro lado, a China não quer ficar ligada em excesso a um parceiro que, de modo algum, é essencial para absorver as suas exportações.

Nos anos 70, em plena Guerra Fria, as divergências ideológicas no campo comunista foram suficientes para trazer a China para o lado dos Estados Unidos, em detrimento da União Soviética. Desta vez, os Estados Unidos, até por ações como o alargamento da NATO a leste ou o apoio a Taiwan, têm dado razões para o eixo Pequim-Moscovo mostrar solidez. Mas quando penso no Tratado de Nerchinsk, onde estava Tomás Pereira presente, não deixo de pressentir que a quebra demográfica russa, a par do gigantismo da população chinesa e da sua necessidade constante de novos recursos de toda a ordem, pode trazer, mais cedo ou mais tarde, para cima da mesa tensões territoriais que parecem sanadas.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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