28 de junho de 1979. A Assembleia da República vota a criação das bases do Serviço Nacional de Saúde (SNS), um projeto de lei que entrara no Parlamento no final de 1978 com a assinatura dos socialistas António Arnaut, Mário Soares e Francisco Salgado Zenha. A votação final global parte o hemiciclo em dois: de um lado, PS, PCP e UDP aprovam o documento; do outro, PPD e CDS votam contra. O projeto é aprovado..12 de julho de 1990. É votada a proposta de Lei de Bases da Saúde apresentada à Assembleia da República pelo governo liderado por Cavaco Silva. A votação final global parte o hemiciclo em dois: de um lado, PSD e CDS fazem aprovar o diploma do governo; PS, PCP e PRD votam contra..O pacto "de regime" defendido por Marcelo Rebelo de Sousa para a nova Lei de Bases da Saúde, que vai começar a ser discutida em comissão parlamentar, seria uma situação inédita: nunca PS e PSD se entenderam quanto ao quadro legislativo geral para o setor da saúde. Mas esta será mesmo a condição para o Presidente da República viabilizar o diploma que sair do Parlamento: o jornal Público avançou ontem que Marcelo chumbará a nova Lei de Bases da Saúde caso o documento seja aprovado à esquerda e não recolha o acordo dos sociais-democratas..Em entrevista à agência Lusa, por ocasião dos três anos sobre a sua eleição para Belém, Marcelo Rebelo de Sousa já tinha avisado que a lei que sair da Assembleia da República deve ter uma base de apoio suficiente para não ser alterada numa futura legislatura, com outras cores políticas. "Eu não acharia muito feliz andarmos a ter leis no domínio da saúde que mudassem ao sabor das maiorias de cada período político", avisou então o Chefe do Estado, rejeitando uma legislação conjuntural - Marcelo quer uma lei de "regime"..PSD sem linhas vermelhas.Para o PSD não há "há linhas vermelhas" para um entendimento com outros partidos, garante o coordenador social-democrata para a área da saúde, Adão Silva. "Queremos é uma lei duradoura, moderna e que responda às necessidades dos portugueses. Estamos neste debate com uma lógica construtiva", afirmou ao DN o também vice-presidente da bancada do PSD, pedindo um debate sem "preconceitos" - e os que existem, defende, são os da "esquerda radical"..Maria Antónia Almeida Santos, porta-voz do PS, escusa-se a comentar a posição do Presidente da República, lembrando que o trabalho na especialidade das cinco propostas que estão em cima da mesa (governo, Bloco de Esquerda, PCP, PSD e CDS) ainda não começou. "Estamos ainda no início do processo, é muito cedo para se perceber o que se pode consensualizar", diz ao DN..O primeiro-ministro, António Costa, tem defendido que esta é uma lei para aprovar à esquerda. Ontem, o CDS lembrou isso mesmo, numa declaração política no plenário, criticando o líder do executivo por achar "normal" que uma Lei de Bases da Saúde, "elemento essencial para a estabilidade e continuidade do sistema nacional de saúde", "seja aprovada só com os votos da esquerda e da extrema-esquerda"..Presidente está a "condicionar" o debate.As palavras do Presidente caíram mal entre bloquistas e comunistas. Para Carla Cruz, do PCP, Marcelo Rebelo Sousa está a "colocar no PSD a possibilidade de determinar o que vai ser a lei de bases". "Não é só condicionar o debate que se vai estabelecer na especialidade, é ir para lá disso", critica a deputada comunista, defendendo que Belém está a definir "a matriz" da nova lei. E essa, sendo a do PSD, é a "ideologia do negócio" e da "promiscuidade entre o setor público e privado", acusa a deputada..Já Moisés Ferreira, do Bloco de Esquerda, argumenta que não se deve inverter os termos da discussão - e esta deve ser feita em torno "do que queremos para a saúde, quais os princípios orientadores". "Perdermo-nos na forma, na aritmética, na mercearia dos votos, é desviar a atenção do que é essencial", diz ao DN. "A pergunta a que temos de responder é se queremos uma lei de bases que trate a saúde como um direito ou que a trate como um negócio", defende o deputado bloquista, sublinhando que a atual maioria parlamentar tem legitimidade para aprovar uma nova lei de bases, independentemente de o PSD dar ou não o seu acordo. O Presidente da República fará depois "o que entender"..O que separa as propostas em cima da mesa.Ponto central neste debate - e grande clivagem entre as propostas à esquerda e à direita - é a relação entre o setor público, o social e o privado..A proposta de lei do governo admite a celebração de contratos entre o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e entidades quer do setor privado quer do social, desde que seja identificada essa necessidade. Já o PCP limita o recurso a entidades fora do SNS a "situações excecionais", estabelecendo que, na "ausência de resposta adequada e atempada do SNS, o Estado pode recorrer supletiva e temporariamente aos setores privado e social para assegurar a prestação de cuidados de saúde". Também o BE admite a celebração de acordos com entidades privadas, mas só quando esse recurso "se demonstre indispensável para garantir o acesso universal e equitativo aos cuidados de saúde"..Para o PSD, as "prestações de saúde são asseguradas, sob regulação e fiscalização do Estado, por serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde e por entidades do setor de economia social e do setor privado". Para o CDS, o "setor privado não deve existir apenas para suprir deficiências do público" - a "articulação entre público e privado deve ser efetuada de forma ponderada, responsável e sustentada, encarada sob uma perspetiva de rede, com real complementaridade entre os dois setores"..Questão decorrente desta, a gestão das unidades de saúde do SNS tem uma perspetiva oposta consoante o lado do espectro político. O executivo defende a gestão pública como regra geral, mas admitindo que as unidades do SNS possam ser geridas por entidades do setor privado ou social, supletiva e temporariamente. O BE quer uma gestão "exclusivamente pública, não podendo sob qualquer forma ser entregue a entidades privadas ou sociais, com ou sem fins lucrativos". O mesmo que preconiza o PCP, que não admite qualquer exceção à gestão pública. Ou seja, bloquistas e comunistas defendem o fim das parcerias público-privadas na área da saúde..Já o PSD sustenta que a gestão das unidades do SNS "é pública, podendo ser assegurada por entidades privadas e de economia social, desde que estas revelem evidentes ganhos em saúde para os cidadãos e demonstrem ser economicamente vantajosas para o Estado". Quanto ao CDS, o partido subscreve o princípio de que "o sistema de saúde deve evoluir no sentido de alargar e diversificar as formas de prestação e de gestão dos serviços de saúde, em benefício dos cidadãos, independentemente da natureza pública, privada ou social das instituições prestadoras de saúde"..Outro foco de discórdia são as taxas moderadoras pagas pelos utentes. Se a visão do governo tiver vencimento, as taxas moderadoras vão continuar, justificadas como um instrumento "para controlo da procura desnecessária e orientação da procura para respostas mais adequadas às necessidades"..O Bloco de Esquerda sustenta que devem ficar isentos de qualquer taxa "todos os cuidados prestados no domínio dos cuidados de saúde primários e nos serviços de urgência e emergência, incluindo o transporte do doente", mas admite que a lei "pode prever a cobrança de taxa moderadora nas prestações de saúde realizadas em unidades do SNS ou por este convencionadas que não tenham sido prescritas ou requisitadas por médico" (conferindo isenção a grupos específicos de doentes). Já o PCP não admite qualquer exceção - as taxas moderadoras são para extinguir..Neste capítulo, a posição dos socialistas é mais aproximada da visão de sociais-democratas e centristas. Para o PSD, as taxas são admissíveis dado o "objetivo de orientar a procura e moderar a procura desnecessária, perante alternativas clinicamente aceitáveis", prevendo a "isenção de pagamento em situações de interesse de saúde pública, de maior risco de saúde ou de insuficiência económica"..No texto do CDS, a lei pode prever a cobrança de taxas moderadoras pelas "prestações públicas de saúde", desde que estabeleça a isenção de pagamento nas mesmas situações apontadas pelo PSD.