Depois de um Bellini na temporada transata, Arnaud Bernard regressa a Lisboa para um dos "cavalos de batalha" do repertório. Traz ainda "na retina" o sucesso recente obtido no Mariinsky de São Petersburgo com La Fanciulla del West, a ópera em jeito de western do mesmo Puccini, e que explica assim: "Foi um enorme êxito porque todos vestiram completamente a pele de atores, até ao último figurante. E sempre com uma energia fantástica - parecia um filme!".Uma afirmação que diz muito acerca da sua postura criativa: "A encenação é, antes de tudo o resto, as pessoas que estão em palco, os atores-cantores; e aquilo que eles dizem/cantam está no centro, pois a ópera é acima de tudo representação.".Por aí se percebe que diga: "Não gosto por princípio de produções decorativas, e muito menos daquelas em que se gasta um dinheirão em cenografia e figurinos e depois se negligencia o trabalho teatral." Não sem surpresa, esta LaBohème é bastante minimalista: "A cenografia que idealizei traz o benefício de permitir uma concentração no drama que os atores e a orquestra estão a transmitir. A mim, o que me preocupa é contar histórias, contar a história e é isso, sobretudo, que eu quero que as pessoas levem para casa, em vez de irem a discutir as ideias pretensamente originais e geniais do encenador: fazer La Bohème numa câmara frigorífica ou sobre a superfície da Lua, como já vi colegas meus fazerem, não me interessa de todo.".Uma encenação em cores frias.A produção que veremos em Lisboa descende ainda daquela que estreou na Arena de Verona em 2005 - "foi a minha primeira La Bohème e foi um espetáculo muito importante para mim", diz, a propósito -, posteriormente adaptada a teatros tradicionais (fechados) e sucessivamente modificada nos vários teatros um pouco por todo o mundo onde tem sido montada. A versão é a levada à Ópera de Zagreb, no final de 2015. Como diz Arnaud: "A estrutura está lá, agora o espetáculo vai sempre transformando-se.".A sua opção cromática, onde dominam os brancos, azuis e cinzentos frios, começa por justificá-la assim: "A ação passa-se na estação fria e, depois, La Bohème não é uma ópera lá muito alegre, certo?" Depois, argumenta que essa opção reforça "a ideia de base, que não é realista, é mais sonho, um ambiente onírico, tudo aquilo - ou um pesadelo, se preferir". Uma das inspirações surgiu-lhe da televisão: "Era a publicidade a um perfume de Kenzo, em que flores vermelhas brotavam dos telhados todos brancos de Paris. A imagem ficou-me e a ideia para uma La Bohème a tender para os brancos surgiu por essa associação." Ainda outra imagem inspiradora, mas de outra arte: "Aquela famosa fotografia a preto e branco de Robert Doisneau, com o casal a beijar-se nas ruas de Paris. Esse ambiente, essa luz.".Momentos mais "de encher o olho" são poucos [e não os revelamos aqui], mas servem para "fazer" o espetáculo para quem assiste. Também é para isso que as pessoas pagam o bilhete! Afinal, é um espetáculo aquilo que nós fazemos, não é a gravação de um disco..Os protagonistas somos nós todos.Sobre os protagonistas - Mimì e Rodolfo, Musetta e Marcello - diz sumariamente: "São vocês, sou eu. São gente de todas as idades, de todas as épocas e que concentram em si um pouco de todas as características humanas, as melhores e as piores, com reflexo nas suas ações. Os problemas deles são os nossos, sem tirar nem pôr. É a nossa vida que está ali dentro. Às vezes, força-se um pouco a nota na atualidade de certas óperas, mas na La Bohème a atualidade é um dado adquirido!" Daí ser uma ópera que "vale para qualquer época. Pronto: tirando o facto de Mimì morrer de tuberculose, claro! Já houve encenadores que a fizeram morrer de sida, mas isso a mim não me diz nada"..Dar-lhes vida em palco não é, reconhece, empresa fácil: "Em La Bohème, a representação requer o lado dramático, o cómico e o burlesco e é preciso alertar os cantores para manterem a chama igualmente acesa em cada um desses registos, sem nunca esmorecerem." De resto, é ele próprio influenciado pelos cantores: "Permanentemente, pois são eles que representam! Cabe-me motivá-los e pedir-lhes que sejam eles próprios. Não se deve reproduzir com novos cantores o que já se fez com outros. Dou-lhes apenas uma moldura e eles constroem a personagem por si próprios dentro dessa moldura. São eles quem define a personagem que cantam." Outro "escolho" é a sua própria ideia dramatúrgica: "Como tudo se passa num nível onírico, a representação não pode ser absolutamente realista, tem de suceder num segundo estrato, numa dimensão acima. Digamos que ela requer um nível de teatralidade sobre-elevado.".Quanto ao resto, deixa espaço livre: "O encenador não deve dirigir tudo, determinar tudo, prover todas as respostas. Não. Deve antes permitir que cada espectador seja interpelado de modo diferente e leve para casa as suas interrogações, a sua própria leitura do que acabou de ver.".O sucesso não veio logo, mas não demorou. La Bohème subiu rapidamente ao top das óperas mais representadas em todo o mundo, de onde não mais saiu. Mas surpreendentemente, o sucesso não foi imediato. Quando se estreou, em Turim, no Teatro Regio (o teatro da casa real italiana), a 1 de fevereiro de 1896 (o maestro foi o então jovem Arturo Toscanini), o acolhimento do público foi até bastante favorável (teve 24 récitas), sem ser entusiasta, mas a crítica, sobretudo a turinense, foi bastante dura com a obra, chegando a vaticinar-lhe uma rápida queda no esquecimento. Tratando-se de Itália e de ópera, logo se falou em cabalas contra Puccini e contra Ricordi, o seu poderoso editor... Certo é que subsequentes produções em Roma e em Nápoles não alcançariam ainda o sucesso desejado. Veio então a quarta produção, no Politeama de Palermo, a 14 de abril de 1896, e aí sim, sucesso estrondoso com vários "bis" e início de uma "febre" que não mais cessou. Curiosamente, até à morte de Puccini (em 1924), La Bohème foi sempre muito mais popular no sul de Itália do que no norte e isso explica o enorme sucesso que logo obteve em Buenos Aires - ao tempo, uma cidade que fervilhava de imigrantes da Itália meridional -, cidade onde estreou a 16 de junho de 1896. O São Carlos lisboeta pode orgulhar-se de ter sido o quarto teatro fora de Itália a estrear La Bohème e o segundo na Europa (logo após Moscovo): a data foi 11 de fevereiro de 1897, escasso ano e dez dias após a estreia absoluta!.Outra ligação portuguesa: o cantor que foi o primeiro grande intérprete do papel de Marcello, reconhecido (e recomendado) pelo próprio Puccini, foi o barítono português Maurício Bensaúde (1863-1912), originário de Ponta Delgada..La Bohème, de G. Puccini.Teatro de São Carlos.Direção musical: Diego Matheuz.Encenação: Arnaud Bernard.Elenco: Natalia Tanasii/dia 11: Susana Gaspar (Mimì), Dmytro Popov/dia 11: Carlos Cardoso (Rodolfo), Christian Luján (Marcello), Julia Novikova (Musetta) et al., Coro do São Carlos, Coro dos Pequenos Cantores da Academia de Amadores de Música, Orquestra Sinfónica Portuguesa.Récitas dias 7, 9, 11 e 14 (20.00) e dia 16 (16.00).Bilhetes dos 19 aos 65 euros