Num regime totalitário como o da Coreia do Norte nada na encenação política é deixado ao acaso. O que Kim Jong-un fala ou deixa por dizer e o que é transmitido para o público é alvo de descodificação por parte de vários peritos. Sobre o mais recente discurso não há consenso..Numa reunião do politburo do Partido dos Trabalhadores, o líder norte-coreano censurou quadros do partido por terem negligenciado os seus deveres na execução de medidas relacionadas com a pandemia, pelo que foram demitidos das suas funções. Um "grave incidente" que causou uma "enorme crise" na batalha do país contra a covid-19, noticiou a imprensa estatal na quarta-feira. Um surto do coronavírus no país que oficialmente não tem qualquer caso? O agravamento da crise alimentar, admitida há dias numa outra reunião partidária? Ou ainda um exercício de autoridade para apertar a disciplina?.Kim Jong-un comunica com disparo de mísseis ."Os altos funcionários responsáveis por importantes assuntos de Estado negligenciaram a execução das importantes decisões do partido em tomar medidas organizacionais, institucionais, materiais, científicas e tecnológicas associadas à crise mundial de saúde, e assim causaram um caso grave, uma grande crise em garantir a segurança do Estado e a segurança das pessoas, e acarretaram graves consequências", declarou Kim segundo a agência oficial da Coreia do Norte, KCNA.."Ele analisou em termos enérgicos que um fator importante de bloqueio e impedimento à aplicação das importantes tarefas discutidas e decididas no congresso e reuniões plenárias do partido é a falta de capacidade e a irresponsabilidade dos quadros", acrescentou a agência sem, contudo, explicar a que "caso grave" Kim aludia nem quem foram os oficiais despromovidos..Destaquedestaque"O facto de a agência ter noticiado indica que Pyongyang está provavelmente a precisar de ajuda internacional", disse o desertor Ahn Chan-il..O combate à pandemia teve como consequência a saída dos trabalhadores de agências de ajuda internacionais e o encerramento das fronteiras, tendo quase acabado com as importações da China..Num documentário sobre a reunião de quatro dias do Partido dos Trabalhadores transmitido no dia 20, o canal único de TV revelou que um dos temas da agenda intitulava-se "Sobre o estabelecimento de uma política de emergência para ultrapassar a atual crise alimentar". De acordo com o site especializado NK News, o narrador disse que "a distribuição e o processamento seguirão rapidamente a partir da garantia a nível nacional dos cereais, e [Kim Jong-un] salientou que todo o trabalho deve ser realizado de forma responsável até que os alimentos cheguem ao povo"..Perda de peso de Kim Jong-un gera especulações sobre a sua saúde.Pela sua parte, Kim revelou que "a situação alimentar das pessoas está agora a ficar tensa, pois o setor agrícola não conseguiu cumprir o seu plano de produção de cereais devido aos danos causados pelo tufão do ano passado"..Segundo um relatório do Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas, a Coreia do Norte teve uma grande crise alimentar e uma crise alimentar nos últimos cinco anos. Porém, esta admissão é incomum e faz disparar os alarmes, se recordarmos que os norte-coreanos sofreram fome durante os anos 90. Para o perito em economia norte-coreana Peter Ward, o regime estará a reintroduzir o sistema de rações (que falhou nos anos 90) "na esperança de que possam reabrir a fronteira daqui a um par de meses e reconstituir as reservas com ajuda chinesa", disse à NK News..Outros, como o diretor do centro de estudos norte-coreanos do Instituto Sejong, Cheong Seong-chang, apontam para a pandemia, no caso um "enorme problema" na disseminação em cidades como Sinuiju e Hyesan, fronteiras à China. "O facto de o politburo ter discutido isto, e de a KCNA ter noticiado, indica que Pyongyang está provavelmente a precisar de ajuda internacional", disse à AFP o desertor Ahn Chan-il. Por fim, há quem levante outra hipótese: "Pode haver várias possibilidades, incluindo o reforço da disciplina interna", disse sobre o despedimento um funcionário governamental da Coreia do Sul à agência Yonhap..cesar.avo@dn.pt