Ken Loach: "Temos de mudar todo o modelo económico vigente"

<em>Passámos por Cá</em>, drama social nesta Inglaterra do pré-Brexit, chega aos cinemas depois de ter sido o filme de abertura no LEFFEST. O DN conversou com Ken Loach sobre uma obra dura que deverá figurar na lista dos melhores do ano.
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Do alto dos seus 83 anos , Ken Loach, o pai do cinema do real inglês, conta que tem um grande desejo em relação a este seu novo Passámos por Cá: "Espero que as pessoas se possam identificar com esta família. Se o conseguirem é porque a escrita do meu argumentista, Paul Laverty, é tramada de boa! O Paul é um grande argumentista e eu sou um sortudo por poder trabalhar com ele todos estes anos. É alguém que tem um enorme conhecimento acerca das dinâmicas da vida familiar... Sabe ouvir como as pessoas falam, mas para isso resultar é preciso encontrar as pessoas certas para dar vida a tudo isso e que façam o público reagir. Ou seja, atores que possam fazer com que tudo pareça espontâneo".

Pois bem, o mestre Ken tocou no busílis: o espontâneo! Na verdade, Sorry, We Missed You é bem capaz de ser o seu mais espontâneo e brutal filme dos últimos anos, a história de um casal do norte de Inglaterra cuja vida parece desabar quando a sua situação financeira entra em colapso e são obrigados a trabalhar quase 18 horas por dia em condições adversas e sem tempo para educarem os dois filhos. Uma tragédia familiar mostrada até ao limite e motivada por um sistema capitalista que obriga os trabalhadores a um esquema fraudulento de perderem regalias da Segurança Social para criarem os seus próprios postos de trabalho a fim de, supostamente, terem trabalho, ele como motorista de entregas e, ela, como assistente social.

O dedo na ferida exposto com uma "mise-en-scéne" tão frontal como humanista, mas com aquele segredo que é muito loachiano: nunca dar tréguas ao espetador- somos atirados para este drama de um só fôlego e ficamos par a par perante o sofrimento destes trabalhadores. As más línguas podem dizer que é um calvário de dor, mas a câmara de Loach nunca faz da injustiça social espetáculo, está sempre do lado da denúncia. E tal como o realizador expressa, um dos segredos está na escolha dos atores, neste caso Kris Hitchen, conhecido de The Navigators, precisamente de Loach, e a desconhecida Debbie Honeywood. "Gosto muito do processo de escolha dos atores: observamos toda a gente! De atores retirados a atores amadores, fazemos audições com todos que achamos que podem resultar. E vemos muito talento... Mas formar uma família em cinema é coisa muito específica. Por exemplo, para o papel do filho tivemos que escolher um puto ruivo pois o Kris é ruivo. São importantes estas pequenas ligações...", refere.

Quando Ken Loach percebe que está a ser entrevistado por um português, avisa que tem conhecimento das injustiças do nosso sistema precário de contratações no mercado de trabalho e vai mais longe: "essa situação não se verifica apenas em Portugal, está espalhada por toda a Europa. É inevitável face ao sistema económico. Quando temos serviços, indústrias e negócios dominados pelas grandes corporações, acontece uma competição entre elas e o trabalho vai parar a quem consegue a mão de obra mais barata. Mas para conseguirem os trabalhadores mais baratos há que cortar com as despesas nos direitos do trabalhador! Os benefícios sociais são cortados e os trabalhadores ficam por sua conta ou com salários muito baixos, sem direito a subsídio de saúde, apoio sindical, subsídio de férias e obrigados a trabalhar 12 ou 14 horas por dia. Trata-se de exploração pura! Esta economia de marketing torna este ciclo inevitável. Se quisermos mudar isso, temos de mudar todo o modelo económico vigente".

Por esta altura, Loach ainda não confirmou se este é mesmo o seu derradeiro filme, mas há fortes indícios que a seguir possa vir a reforma. Enquanto isso, o seu discurso de militância não abranda: "Para haver uma mudança deste flagelo as pessoas têm que saber organizar-se politicamente. Todos podemos fazer coisas boas individualmente mas isso não muda nada. A partir do momento que estas grandes corporações continuem a decidir sobre a organização económica nunca vamos conseguir mudar nada. As pessoas têm mesmo de se organizarem politicamente, eventualmente apostar em partidos mais radicais e em organizações sindicais. Enfim, só as ações coletivas podem ter um efeito. Isso passa por uma organização política. Se não fizermos isso, a extrema-direita aproveita e toma ação. Não há alternativa: é preciso organizarmo-nos." Voltamos a insistir com a questão da despedida, embora o realizador, pacientemente, vá dizendo que "depende", mas que voltou a ter muito prazer nesta rodagem: "mas supostamente uma rodagem é algo de muito duro...Só sei que agora o meu médico só me deixa beber uma caneca de café. Só que é um momento muito importante para mim. Aquele café macchiato de manhã, ai, ai".

Obviamente que nesta breve conversa o tema do Brexit vem ao de cima e aí em vez da lamúria previsível, há uma chamar de atenção lúcido: "em relação a este tema do filme, o da exploração do trabalhador, a União Europeia é parte do problema. Trata-se de uma organização que é baseada nesta economia de marketing. Basta olhar para a sua constituição e perceber que nos seus casos legais a prioridade é garantir o lucro das empresas em detrimento dos direitos dos trabalhadores. Queremos solidariedade no povo europeu mas para isso acontecer só num outro modelo económico". Passámos por Cá, independentemente das leituras políticas, é, mesmo assim, um filme com seres humanos lá dentro e isso é o mais marcante. Por muito que o discurso de esquerda do realizador seja unidirecional, o drama das suas personagens tem um alcance universal. Se é manipulação sentimental, não importa - o que fica é um peso cinematográfico que nos coloca ao lado daquelas pessoas. Pessoas reais, sem desenho pré-concebido de personagens de um guião.

Veterano do Festival de Cannes, vencedor de duas Palmas de Ouro, pedimos ao cineasta para deitar cá para fora as memórias mais intensas das suas experiências ao longo de algumas décadas na Croisette: "O que fica é sempre o que se passa com aqueles que nós trazemos com o filme. Lembro-me em 1995 quando viemos cá com o Terra e Liberdade e todo o pessoal da milícia da Guerra Civil espanhola subiu a escadaria vermelha... Foi como se um grande grupo revolucionário estivesse a marchar sobre a Croisette! Mas estar em Cannes com um filme pode não ser fácil, já tive muitas desilusões aqui, algumas delas bem justificadas. Nunca se sabe..."

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