Em janeiro de 2008, Kawhi Leonard, então com 16 anos, marcou 17 pontos num jogo contra os Compton Dominguez na meia-final do campeonato estadual de basquetebol entre colégios da Califórnia, mas não evitou a derrota da sua equipa, os Riverside Kings. Mal terminou o jogo, desatou a chorar e correu para os braços da mãe. O motivo não foi a derrota. Leonard tinha decidido jogar apesar de o seu pai, Mark Leonard, de 43 anos, ter sido assassinado na véspera com dois tiros, no centro de lavagens de carros de que era proprietário, em Compton, Califórnia. Este episódio marcou definitivamente a vida de Kawhi Leonard, 27 anos, eleito na madrugada desta sexta-feira o MVP (o jogador mais valioso) das finais da NBA, depois do triunfo histórico dos Toronto Raptors diante dos Warriors no jogo decisivo de atribuição do título, que permitiu à equipa de Toronto ganhar pela primeira vez o troféu. Ser campeão e MVP das finais não é algo inédito na carreira de Leonard, que na temporada 2013-14 tinha alcançado este duplo feito ao serviço dos San Antonio Spurs. Mas na madrugada de sexta-feira tornou-se o terceiro jogador da história a levar o prémio de melhor jogador da decisão por duas franquias diferentes, uma façanha que só dois "monstros" da modalidade como LeBron James (Miami Heat e Cleveland Cavaliers) e Kareem Abdul-Jabbar (Milwaukee Bucks e Los Angeles Lakers) tinham conseguido até aos dias de hoje.. "O basquetebol ajuda-me a parar de pensar nas coisas, anima-me sempre que estou em baixo. O basquetebol é a minha vida. Queria ir para o campo para esquecer as coisas. Foi muito triste. O meu pai deveria estar neste jogo", confessou semanas depois da tragédia que vitimou o pai, em entrevista ao LA Times, ele que talvez devido a este trágico acontecimento foge ao que é o estereótipo dos jogadores da NBA, logo a começar pelo facto de não utilizar redes sociais. Gregg Popovich, 70 anos, um dos mais carismáticos treinadores da NBA, descreveu na perfeição o feitio reservado do basquetebolista. "Ele era mais sério do que um ataque cardíaco", atirou ao recordar o seu primeiro encontro com Kawhi. "Alguns jogadores só pensam na grandeza, ele não, ele está-se nas tintas para ser uma estrela. Ele ama o jogo e ignora o resto das coisas. Se o ginásio estivesse vazio, ele provavelmente gostaria muito mais", acrescentou. A paixão pelo basquetebol vem desde criança. Aos 7 anos, numa consulta médica de rotina, disse logo ao pediatra que queria ser jogador da NBA. O médico sorriu, como contou um dia o especialista em NBA Lee Jenkins à revista Sports Illustrated. Além do basquetebol, tinha também uma paixão pela matemática..De escolha do draft aos Toronto.Kawhi Leonard foi crescendo e dando nas vistas dentro das quadras. Sem ofertas de grandes faculdades, mesmo depois de ter sido eleito o melhor jogador do Ensino Médio da Califórnia em 2009, decidiu ir para a Universidade Estadual de San Diego. Dois anos depois, e após duas classificações para o March Madness, tentou finalmente a sua sorte na NBA. Em 2011 foi a 15.ª escolha do draft e escolhido pelo Indiana Pacers, mas mudou-se logo para os San Antonio Spurs, envolvido numa troca de jogadores, franquia que defendeu até julho de 2018 e na qual conquistou o seu primeiro título da NBA (2014), o prémio de MVP das finais, duas distinções como melhor defensor do ano (2015 e 2016) e foi selecionado duas vezes para o All-Star Game (2016, 2017). Em 2018 foi transferido para os Raptors e neste ano liderou a equipa de Toronto ao seu primeiro título de conferência da história..Ao serviço do Spurs, em 2015, assinou um contrato milionário. Mas nem isso o fez deslumbrar e ganhar tiques de vedeta, como o prova o facto de durante muito tempo ter continuado a conduzir o seu modesto Chevrolet Tahoe de 1997. Apesar da fama, ainda hoje leva uma vida pacata, meio no anonimato, ao contrário de outras estrelas da NBA como Stephen Curry ou LeBron James, que falam a toda a hora e são seguidos e interagem com milhões de fãs nas redes sociais. Kawhi continua reservado como sempre, longe dos holofotes, sem vedetismo e avesso ao estatuto de estrela. Por isso, raramente dá entrevistas. Na madrugada de sexta-feira, depois de se ter sagrado campeão e MVP da final pela segunda vez na carreira, o jogador teve de enfrentar os media. E aproveitou a oportunidade para deixar um recado a todos os que o questionaram na época passada, quando chegou a ser acusado de simular uma lesão para forçar a saída do Spurs. "No ano passado muita gente duvidou de mim, achou que eu estava a fingir uma lesão para não jogar mais pelos Spurs. Isso é muito injusto, porque eu adoro jogar basquetebol e se não o posso fazer é porque estou mesmo lesionado. O verão passado foi duro, com uma recuperação stressante. Queria voltar em grande e não fazer cinco jogos e arriscar uma recaída. Agora sou um homem feliz por ter ganho este título. Não me importo com os que os media escrevem. Só me interessa ser feliz e fazer aquilo de que mais gosto. Aqui em Toronto fui apoiado e entenderam-me", atirou..A resposta aos que duvidaram da lesão.A verdade é que esta lesão acabou por contribuir para um enorme mal-estar entre o jogador e os responsáveis dos Spurs. O treinador Popovich, incomodado com as constantes perguntas sobre a verdadeira extensão da lesão de Leonard, chegou a desafiar os jornalistas a perguntarem às pessoas próximas do basquetebolista. E os médicos do clube chegaram a viajar para Nova Iorque, onde Leonard estava a ser tratado, mas não conseguiram encontrá-lo. E por isso a rutura foi inevitável, com a saída para os Raptors. Depois de ter sido decisivo no triunfo histórico da franquia canadiana e eleito MVP da prova, começam já a surgir rumores sobre o seu futuro, pois torna-se um jogador livre já neste verão. Mas por enquanto nada se sabe sobre a próxima equipa que irá representar. Assim como também se sabe muito pouco sobre a sua vida privada. Especula-se que foi pai pela segunda vez recentemente, e também ninguém tem certezas se é casado com a sua companheira de sempre, Kishele Shipley, que conheceu quando estudava na Universidade de San Diego. Quase tudo é um mistério na vida de Kawhi Leonard, o basquetebolista reservado que só a muito custo se ri. E quando isso acontece torna-se notícia.."Queria fazer história e consegui. Esta equipa já era talentosa sem mim. Mas entrei com a mentalidade correta e quando assinei fiz questão de enviar logo uma mensagem ao Kyle Lowry a dizer-lhe: "Vamos jogar juntos e fazer algo especial. Sei que o teu melhor amigo [DeMar DeRozan, com que protagonizou a troca] saiu, sei que estás chateado com isso, mas vamos fazer as coisas darem certo. E aqui estamos hoje", disse Kawhi após o jogo de sexta-feira, onde durante alguns momentos deixou de lado o seu ar sério e celebrou a conquista do título de campeão com champanhe. Agora que as finais da NBA terminaram, muito se vai falar do futuro do basquetebolista. Mas, se depender de Kawhi, nem uma palavra sobre o assunto. Nem em entrevistas, nem através das redes sociais, que não usa..Raptors são a primeira equipa canadiana campeã da NBA.Algum dia teria de terminar a hegemonia dos Golden State Warriors, campeões em três dos últimos quatro anos. Porém, não se esperava era que o título fosse para os Toronto Raptors, que se sagraram não só a primeira equipa canadiana da história a vencer a NBA como a primeira franquia não americana a ganhar uma das quatro principais ligas desportivas profissionais norte-americanas, um grupo restrito que inclui também as de basebol (MLB), futebol americano (NFL) e hóquei no gelo (NHL)..A franquia fundada em 1995 sentiu dificuldades para se impor durante os primeiros anos, mas a contratação de Vince Carter em 1998 elevou o estatuto dos Raptors, que chegaram aos playoffs em 2000, 2001 e 2002. Porém, só nesta época chegaram a uma final, e logo com o estatuto de primeira equipa na história a chegar a essa fase sem um único jogador escolhido no top 10 do draft do seu ano, depois de terem vencido pela primeira vez a Conferência Este..A cereja no topo do bolo, o título de campeão, ficou confirmado na madrugada desta sexta-feira em casa dos Warriors, após vitória por 114-110, no sexto jogo da final, ganhando a eliminatória por 4-2. Os comandados do estreante Nick Nurse, técnico que passou cerca de uma década na Europa e que no início da época foi promovido de adjunto a treinador principal após a saída de Dwane Casey, sucederam aos Warriors, vencedores de três dos últimos quatro títulos, que só tiveram Kevin Durant durante dez minutos, no quinto jogo, e, no sexto, ficaram sem Klay Thompson sobre o final do terceiro período..A conquista do inédito título dos Raptors levou milhares de pessoas às ruas de Toronto. Além de ter sido o culminar de um percurso desportivo, foi também o da reconstrução de uma marca. A palavra north (norte), pela qual o Canadá é tratado nos Estados Unidos, passou a ser a bandeira da franquia para aglomerar o público canadiano em torno da única equipa ativa do país na NBA. Tanto assim foi que o jogo cinco da final, que poderia ter dado o título aos Raptors, foi a partida de basquetebol com maior audiência de sempre no Canadá: 4,3 milhões de pessoas. "Não apenas mudámos a marca dos Raptors, mas do basquetebol no Canadá. Como fazer que a nação do hóquei se apaixone pelo basquetebol? Procurando algo que unisse as pessoas", afirmou Tom Koukodimos, da Sid Lee Toronto, agência responsável pela campanha We Are North.