"Ouvi isso hoje no tribunal, a uma colega. Pareceu-nos uma brincadeira de Carnaval.".O comentário é de uma juíza de um tribunal superior sito em Lisboa e que prefere não ser identificada. Porquê uma brincadeira de Carnaval? Ri: "Achámos cómico. Não conheço o contexto. Mas dizerem-me, assim, que uma associação de juízes vai organizar um workshop de maquilhagem... Parece-me estranho. E se for verdade é estranho. E até algo que deve ser recebido com sentido crítico. Não sou membro, mas creio que a associação deve ocupar-se com outras coisas.".A socióloga Isabel Ventura, autora de Medusa no Palácio da Justiça (Tinta da China, 2018), uma investigação de doutoramento sobre o discurso judicial português em relação à violência sexual contra as mulheres a partir da qual concluiu que este conforma "um pensamento falocêntrico, compreensivo para com o agressor e desconfiado para com a vítima", tem uma reação semelhante à da juíza citada. Ri, descrente do que ouve. "Não sei o que dizer. Parece a gozar. Em 2019?".É, não há dúvida, de 2019 o e-mail dirigido aos associados da ASJP, datado de segunda-feira e com o tema "Workshop Maquilhagem - 8 de Março - 15.00". Nele, lê-se: "Comemorando-se o Dia Internacional da Mulher, a Direção Regional Sul - Associação Sindical dos Juízes Portugueses realizará no próximo dia 8 de março um workshop de maquilhagem. O evento decorrerá na sede da ASJP, pelas 15.00 (...). Poderá ser utilizado material de maquilhagem próprio ou fornecido durante a formação. O número de inscrições é limitado.".Inscrições esgotadas: nove juízas e três juízes.Na eventualidade de se tratar mesmo de uma partida de Carnaval, como aventou a magistrada citada, o DN tentou falar com Manuel Soares, o presidente da ASJP, juiz desembargador no Tribunal da Relação do Porto e coautor do acórdão que ficou conhecido como "da sedução mútua" (no qual, a propósito da violação de uma jovem, enquanto inconsciente, numa casa de banho de uma discoteca, por dois dos seus funcionários, se considera que existiu "mediana ilicitude" e "um clima de sedução mútua"). Mas Manuel Soares remeteu os esclarecimentos para o assessor de imprensa da associação, José Brandão. Este manifestou-se surpreendido: "Nunca ouvi falar disso.".Mais tarde, porém, confirmou a veracidade do e-mail: vai mesmo haver um workshop de maquilhagem a celebrar o Dia Internacional da Mulher na sede lisboeta da associação sindical dos juízes. A iniciativa até tem um cartaz, com três rostos de mulheres fortemente maquilhadas, que o assessor envia ao jornal, juntamente com os de outras iniciativas que qualifica como "recreativas", passadas e futuras, das três direções regionais da ASJP: um workshop de defesa pessoal a 9 de março em Coimbra, um ciclo de Justiça no Cinema, uma caminhada na serra de Sintra, até uma "minimaratona da justiça" que terá ocorrido em outubro de 2018 no Parque das Nações, em Lisboa.."As inscrições estão sempre esgotadas em todas as iniciativas", garante Brandão. "Na da maquilhagem, no limite de 12 juízes inscritos, há nove mulheres e três homens." Quem na Direção Regional Sul da ASJP teve a ideia de assinalar deste modo o dia que celebra a luta pela igualdade de género no mundo, José Brandão não soube dizer, remetendo para a Direção Regional Sul da ASJP..Contactada esta, quem atende o telefone assegura que qualquer esclarecimento terá de ser prestado pelo secretário regional sul, Domingos Mira, magistrado atualmente colocado no Juízo de Comércio de Sintra, e que as perguntas deverão ser enviadas por e-mail. Assim se fez: tendo o DN solicitado, nomeadamente, esclarecimento sobre o motivo da escolha de tal atividade para a comemoração do dia em causa, e sobre as iniciativas comemorativas do mesmo em anos anteriores..Também se pergunta se, sendo os estereótipos de género alvo de insistente combate das Nações Unidas, que criaram o Dia Internacional da Mulher para homenagear a luta pela igualdade e o combate feminista, não considera a DRS da ASJP que esta sua iniciativa pode ser lida como um reiterar desses mesmos estereótipos..O Dia Internacional da Mulher, recorde-se, foi criado em 1975 pela ONU, em homenagem às operárias que desde o final do século XIX lutaram por melhores condições de trabalho e direitos iguais para mulheres e homens, assim como à luta das sufragistas pelo direito de voto para as mulheres; também está ligado à tragédia que em março de 1911, em Nova Iorque, vitimou, num incêndio, mais de 140 operárias, chamando a atenção para as condições de trabalho das mulheres..44 anos de Dia da Mulher e de fim dos crimes de honra no Código Penal.O ano de 1975, por coincidência, é também o ano em que acabou a interdição de acesso das mulheres à magistratura em Portugal - uma norma legal do regime pré-25 de Abril que as impedia de ser juízas ou procuradoras, tal como a que as impedia de votar (ao contrário dos homens, que desde 1945 podiam votar mesmo se analfabetos, elas só tinham acesso às urnas com o equivalente ao curso de liceu, ou se fossem "chefes de família", por viuvez ou marido ausente, desde que com "idoneidade moral")..E é igualmente o ano em que foi expressamente revogada a norma do Código Penal então em vigor, o de 1886, que consagrava os "crimes de honra", permitindo que um marido ou pai matasse a mulher adúltera ou as filhas menores de 21 se "corrompidas", sem mais castigo do que seis meses de desterro da comarca (na mesma pena incorria a mulher que matasse o marido e/ou a amante mas apenas se este introduzisse aquela na "casa de família"). Já o crime de adultério, punido com prisão maior, de dois a oito anos, no caso da mulher, e no do homem, só com pena de multa e apenas no caso de este introduzir a amante na "casa conjugal", tinha deixado de existir dois anos antes, em 1973..A norma do Código Penal de 1886 que permitia o crime de honra e a consideração do adultério da mulher como algo de execrável e condenado pela sociedade fazem, como é sabido, parte da argumentação usada pelo juiz desembargador Joaquim Neto de Moura em dois acórdãos de 2017 que causaram repúdio na sociedade portuguesa e determinaram um processo disciplinar contra o magistrado, que no início do mês de fevereiro foi punido pelo órgão fiscalizador dos juízes, o Conselho Superior de Magistratura, com uma advertência registada..E ainda esta semana foi notícia mais um acórdão em que o mesmo juiz foi relator, em outubro de 2018, e no qual certifica que "nos últimos tempos, têm-se acentuado os sinais de uma tendência (...) em que a mais banal discussão ou desavença entre marido/companheiro/ namorado e mulher/companheira/namorada é logo considerada violência doméstica e o suposto agressor (geralmente, o marido ou companheiro) é diabolizado e nenhum crédito pode ser-lhe reconhecido." .Este novo acórdão de Neto de Moura, juiz que a ASJP considerou em 2017, pela voz da sua anterior presidente, Manuela Paupério, ter sido "vítima de um linchamento", foi tornado público depois de uma sucessão de mortes de mulheres - dez, mais a de uma menina de dois anos - em contexto de violência doméstica, desde o início do ano, reacender o debate sobre o sexismo do sistema judicial e a forma como este desvaloriza a violência sobre as mulheres e lhes falta em proteção. O governo acaba, aliás, de anunciar a intenção de declarar luto nacional no dia 7 de março, véspera do Dia Internacional da Mulher, em homenagem às vítimas de violência doméstica e para, de acordo com a intenção declarada pela ministra da Presidência do Conselho de Ministros, Mariana Vieira da Silva, "consciencializar a sociedade portuguesa."."Parece de propósito, parece jocoso".Daí que Sara Falcão Casaca, socióloga, professora no ISEG-UL, ex-presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, seja cortante na reação à iniciativa da ASPJ para o Dia Internacional da Mulher: "Um workshop para reflexão e delineamento de estratégias para garantir que a justiça protege os direitos humanos das mulheres. Isso é que seria.".Isabel Ventura recorda, por outro lado, "uma conversa informal em que uma aluna do Centro de Estudos Judiciários [a escola de formação de magistrados] me contou que alguém lá lhe disse que ela estava com um aspeto 'muito feminino'. A chamada de atenção teve a ver com a sua preferência por vestidos. E a justificação residiria nos espaços comuns nos quais magistrados se cruzam, ou podem cruzar, com outros agentes judiciários.".A socióloga recupera uma nota que escreveu sobre o assunto: "A preocupação com a manutenção de uma imagem austera do/a juiz/a e a doutrinação dos/as seus/suas membros ocorre a partir dos momentos mais precoces da iniciação na magistratura. As reações a uma notícia da feminização da magistratura, no portal In Verbis, em 2011, são particularmente interessantes e reveladoras da colagem a estereótipos de género e crenças populares. Entre as consequências negativas [da feminização da profissão], apontadas por alguns/mas participantes, destaca-se a consciência da "degradação remuneratória" e "diminuição do poder reivindicativo". Saliente-se ainda o extrato de um comentário de alguém, que se identifica como magistrada, e que afirma ser "feminina (mas não uma borboleta colorida e a espalhar fragrância pelos corredores, gabinetes e salas de audiência)...". As críticas relativamente a aspetos conotados com o feminino: cores (colorida), diversão e inconstância (borboleta), vaidade e exibicionismo (espalhar fragrância) revelam receio pelos abalos na imagem austera da figura do juiz. Embora de uma forma menos notória, estas questões são também válidas para homens, que também são forçados a manter uma determinada imagem (cabelo curto, barba aparada, abster-se do uso de brincos ou de outros acessórios visíveis).".E Isabel Ventura conclui: "Havia um foco na aparência das mulheres, e era uma discussão sobre o impacto da feminização da magistratura. A forma como estes factos se articulam com esse workshop não sei dizer. Mas considerando a desvalorização simbólica que acompanha a feminização das profissões, sobretudo as que estão associadas ao poder, um workshop de maquilhagem, no Dia Internacional da Mulher, é algo igualmente simbólico acerca do que quem pensou, planeou e implementou esta iniciativa, tem a dizer acerca deste dia: que a melhor forma de o assinalar é promover uma iniciativa que qualquer loja de cosmética também oferece.".Outra magistrada, esta do Ministério Público, confrontada pelo DN com a iniciativa da ASJP, fica igualmente perplexa. Mas, após a hesitação inicial, comenta: "Gosto muito de maquilhagem e de me maquilhar. E acho que cada uma e cada um se apresenta como bem lhe apetecer. Mas celebrar o Dia da Mulher, que foi criado para homenagear a luta feminista pela igualdade, com um workshop dessa natureza é associá-lo ao papel de bibelô consignado social e culturalmente às mulheres. Entendo que queiram proporcionar um momento leve, mas creio que uma associação profissional de magistrados deve bater-se pela igualdade de forma séria. Quando estamos a debater, e bem, o machismo nas decisões judiciais e a necessidade de formação para a igualdade de género dos magistrados, ver esta iniciativa surgir nesta altura parece de propósito, parece algo de jocoso.".O DN questionou a DRS da ASJP sobre, precisamente, a possibilidade de a forma escolhida para a sua celebração do Dia Internacional da Mulher surgir como desenquadrada das preocupações da sociedade, e quis saber que iniciativas tomou para responder a essas preocupações com o veicular de estereótipos de género nas decisões judiciais, estando a aguardar resposta.