A iminência de um ataque de tubarão. Jovens a pedalar bicicletas voadoras, por efeito mágico de uma afável criatura alienígena. O clímax caloroso de Encontros Imediatos do Terceiro Grau, em que os extraterrestres comunicam com os humanos. E, vá lá, qualquer entrada em cena de Darth Vader. Tudo isto vem à mente com acordes ou melodias de John Williams. "É um pouco como o sistema olfativo estar ligado à memória, de maneira a que um certo cheiro nos faça lembrar a comida da nossa avó. Acontece algo semelhante com a música. Realmente, na raiz da questão está qualquer coisa sobre a nossa configuração fisiológica ou neurológica que não compreendemos. Tem que ver com sobrevivência, ou proteção da identidade de grupo, ou sabe Deus o quê. A música pode ser muito poderosa, mesmo que seja passageira e nos obrigue a correr atrás dela." O raciocínio sofisticado é do próprio Williams, numa entrevista ao crítico de música Alex Ross para a revista The New Yorker, em 2020, e vem na sequência de um comentário sobre o impacto dos seus temas na memória geracional. Naturalmente, ao longo dos anos o compositor tem ouvido muitas histórias sobre o modo como a sua música entrou na banda sonora das nossas vidas, associada a todo um léxico de imagens..A completar 90 anos no dia 8 de fevereiro, com cinco Óscares na algibeira e 52 nomeações (só fica atrás de Walt Disney, que retém o recorde com 59), John Williams não dá sinais de abrandamento. Depois de Star Wars: A Ascensão de Skywalker (2019), o seu próximo projeto é a banda sonora do novo Indiana Jones, desta feita com assinatura de James Mangold, cumprindo a tradição da série de filmes que, tal como Star Wars, têm no ADN afetivo as suas célebres partituras. Para comemorar o aniversário, a Deutsche Grammophon acaba de lançar o álbum The Berlin Concert, composto por alguns dos seus temas mais conhecidos, gravados ao vivo naquela que foi a estreia de Williams como maestro da Filarmónica de Berlim, numa sucessão de concertos esgotados..Apesar dos prémios e da popularidade, tanto no cinema como no universo da música clássica, a fama nunca lhe subiu à cabeça. Quem se cruza com ele, como Alex Ross, que escreveu o tal artigo na The New Yorker, descreve um homem "cortês, de voz suave e inveteradamente discreto. Está bem ciente do extraordinário impacto mundial da sua música (...), mas não faz afirmações extravagantes a propósito dela, mesmo que conceda que algumas partituras possam ser consideradas "bastante boas"". Um homem que continua a compor da mesma forma que compunha no início da carreira, sem recurso a sintetizadores (é demasiado old school para isso), escrevendo tudo a lápis nas pautas e optando pelo ambiente solitário do seu chalé, integrado no complexo da Amblin Entertainment, a produtora de Steven Spielberg. É com este cineasta que tem mantido a mais firme das colaborações cinematográficas, superando em longevidade e número de filmes duplas lendárias como Federico Fellini/Nino Rota ou Alfred Hitchcock/Bernard Herrmann..Não se pode dizer que o destino de John Williams como compositor de cinema tenha sido pura obra do acaso. O seu pai, Johnny Williams, percussionista de jazz que em 1947 se mudou de Nova Iorque para Los Angeles, com a família, para se tornar membro da orquestra da Columbia Pictures, trabalhou algumas vezes com o referido gigante Herrmann (compositor de Citizen Kane, Psico, Taxi Driver), e era particularmente apreciado pelo seu talento a tocar timbales. Pelo menos assim o recorda Williams filho, que foi muito encorajado por Herrmann a escrever "a sua própria música", em vez de fazer arranjos para filmes como Um Violino no Telhado (1971) - curiosamente, a adaptação que lhe valeu o seu primeiro Óscar..Percebe-se por aqui que Williams cresceu neste específico contexto musical, confraternizando com os amigos do pai. Estudou na UCLA e na Juilliard School, começou por trabalhar como pianista de estúdio nas partituras de Jerry Goldsmith e Henry Mancini, e o métier propriamente dito desenvolveu-se primeiro com comédias (entre elas, Como Roubar Um Milhão, de William Wyler), devido às suas competências jazzísticas, dando depois lugar a westerns e dramas de época. Foi através das bandas sonoras de dois filmes de Mark Rydell, The Reivers (1969) e The Cowboys (1972), que o seu nome chegou ao então jovem Spielberg. Este estava fascinado sobretudo com a música de The Reivers e queria algo semelhante para Asfalto Quente (1974), que veio a ser a sua primeira longa-metragem para cinema - na altura, Spielberg trabalhava ainda em televisão. O que se seguiu está guardado na arca das memórias mais ternas de Williams: os executivos da Universal marcaram um almoço para os dois num restaurante janota em Beverly Hills, e o compositor, uma década e meia mais velho do que o realizador, viu-se na presença de um "adolescente brilhante" (apesar dos seus 25 anos), sem etiqueta para aquele tipo de ambientes, mas com as suites de Max Steiner e Dimitri Tiomkin na ponta da língua... Perante isto, tendo já acumulados uns bons anos de treino e um Óscar, Williams disse o "sim" ao rapaz com bicho-carpinteiro, e nascia a mais frutuosa parceria de Hollywood..CitaçãocitacaoA completar 90 anos no dia 8 de fevereiro, com cinco Óscares na algibeira e 52 nomeações, John Williams prepara agora a banda sonora do próximo Indiana Jones. .A seguir a Asfalto Quente veio um blockbuster chamado Tubarão (1975), filme que deve parte do seu estrondoso sucesso ao ostinato de duas notas que Williams criou quase por brincadeira. A sua intenção - de resto, plenamente concretizada - era mexer com o lado mais visceral do espectador, anulando-lhe as funções do cérebro. Como se aquela repetição sonora fosse capaz de fazer as vezes, sempre que necessário, do tubarão de borracha de Spielberg. E assim aconteceu. Um tema musical de recursos mínimos, e eficácia tremenda, que representou mais um Óscar para o compositor..Por essa altura, Spielberg fez a ponte entre Williams e George Lucas, que tinha apreciado a partitura de Tubarão e andava à procura de quem lhe pudesse compor algo clássico para um certo filme de aventuras. O que é que se entendia por "clássico"? Uma banda sonora com motivos da Hollywood clássica, qualquer coisa com recursos estilísticos mais expressivos; o que em linguagem musical hollywoodesca se traduz em leitmotivs precisos, orquestração vigorosa e uma textura contínua..Por falar em leitmotivs, técnica de composição que nos leva ao nome de quem a introduziu, Richard Wagner, talvez não seja de somenos importância desmontar um certo mito urbano sobre as influências de John Williams em Star Wars. Ainda na entrevista à The New Yorker, o compositor conta que, há muitos anos, assistiu a O Anel do Nibelungo na Ópera de Hamburgo e a achou "um pouco inacessível, principalmente porque não sabia alemão". Admite que não conhece "realmente" as óperas de Wagner e sorri perante as associações que ao longo do tempo foram feitas em relação à banda sonora da saga de George Lucas. "As pessoas dizem que ouvem Wagner em Star Wars, e eu só penso: não é porque eu o tenha colocado lá. Agora, claro, eu sei que Wagner teve uma grande influência sobre [Erich Wolfgang] Korngold e todos os primeiros compositores de Hollywood. Wagner vive connosco - não é possível escapar a isso.".Mito mais ou menos desfeito, regressemos à colaboração com Steven Spielberg. Saído da experiência Star Wars com o prestígio reforçado, Williams já tinha de facto encontrado neste cineasta a sua alma gémea criativa, com quem, até à data, fez 28 filmes. Uma lista com bandas sonoras muito diversas - porque acompanham a diversidade de géneros da obra de Spielberg -, mas com a mesma capacidade de produzir uma resposta emocional duradoura. Dos filmes de alienígenas, Encontros Imediatos do Terceiro Grau e E.T. - O Extraterrestre, à aventura de Os Salteadores da Arca Perdida e Parque Jurássico, passando por dramas como A Lista de Schindler e o filme de guerra O Resgate do Soldado Ryan, há temas que vivem numa espécie de eternidade incandescente. Há uns anos, Spielberg admitiu mesmo que realiza cenas especificamente "para Johnny", isto é, cenas que dão espaço aos laivos operáticos da sua música. Não é qualquer compositor que tem este privilégio..dnot@dn.pt