A reputação da maior lenda do western americano voltou à ordem do dia depois da notícia de que os democratas do Condado de Orange, na Califórnia, queriam (e querem) mudar o nome do Aeroporto John Wayne. Periodicamente, ao longo dos anos, alguém se lembra de repente que o ator de O Homem Que Matou Liberty Valance não era flor que se cheirasse fora da grande tela. Desta vez, a reivindicação aproveita a atmosfera criada pelo caso George Floyd e mune-se com uma entrevista de quase meio século: foram ao baú buscar as suas declarações de tom racista e homofóbico recolhidas pela Playboy em 1971; este é Wayne, o republicano..E o John Wayne ator? Talvez valha a pena lembrar que há uma obra admirável por detrás deste homem cujo nome se confunde com um género cinematográfico (americano, por excelência): o western. Foi ele o modelo de uma certa masculinidade de honra, com uma pose e voz inconfundíveis, entre o passo lento e as frases curtas - ainda há poucos dias passava na Fox Movies Léon, o Profissional (1994), de Luc Besson, em que a dada altura se vê Jean Reno a tentar imitá-lo perante uma jovem Natalie Portman incapaz de adivinhar o jeito da figura pelas pistas de um lenço ao pescoço e o modo de se encostar à ombreira da porta..Também conhecido por "Duke", e nascido Marion Morrison, Wayne foi descoberto pelo realizador John Ford entre papéis de figurante e duplo. Este começou por recomendá-lo a Raoul Walsh, que lhe deu o primeiro papel a sério, em A Pista dos Gigantes (1930), e depois veio a aventura propriamente dita da glória do cowboy, que arrancou com Cavalgada Heróica (1939), de Ford, a fazer nascer um mito aos 32 anos, seguindo-se obras excelsas do género como Forte Apache (1948), Os Dominadores (1949), Rio Grande (1950), A Desaparecida (1956) ou o referido O Homem que Matou Liberty Valance (1962); só para mencionar alguns títulos de uma dupla que deu origem à famosíssima tirada do realizador: "My name is John Ford and I make westerns". Ainda sob a alçada dele protagonizou o fabuloso drama romântico O Homem Tranquilo (1952), com Maureen O"Hara, e com Howard Hawks fez O Rio Vermelho (1948), Rio Bravo (1959), e o remake deste, El Dorado (1967). Ganhou um Óscar com A Velha Raposa (1969), de Henry Hathaway, e O Atirador (1976), de Don Siegel, foi o seu derradeiro filme, onde se pode ler nas entrelinhas o adeus do homem vencido por um cancro. Em 1979, o governo dos Estados Unidos atribuiu-lhe a Medalha de Ouro do Congresso, pouco antes da morte aos 72 anos. .Como escreveu o realizador Peter Bogdanovich, em 1972: "Podemos estar contra as posições de direita de Wayne, mas isso não tem a mínima importância quando analisamos o seu trabalho." Um pouco como o debate que, volta e meia, surge a propósito de Clint Eastwood - é uma coisa de cowboys. E perante os títulos enumerados, restam poucas dúvidas sobre o valor de um ator com uma carreira de mais de uma centena e meia de títulos..Isto não significa que se deva ignorar ou ofuscar uma personalidade complexa, por vezes, tóxica. Há um episódio que resume bem o seu perfil. Foi depois de um visionamento privado de A Vida Apaixonada de Van Gogh (1956), de Vincente Minnelli, protagonizado por Kirk Douglas. Na festa que houve nessa noite na casa da atriz Merle Oberon, John Wayne chamou o seu colega ator para o terraço e libertou a angústia que o estava a corroer desde que saíram da projeção do filme: "Cristo, Kirk! Como é que pudeste interpretar um papel daqueles? Restam tão poucos como nós. Temos de vestir a pele de personagens fortes e firmes, não destes mariquinhas.".Douglas guardou com tristeza esta reação de Wayne a um dos papéis da vida dele, inclusive evocando-a na autobiografia The Ragman's Son. Mas quando confrontado pelo apresentador Dick Cavett com as, na altura, recentes declarações polémicas de Wayne na tal entrevista da Playboy agora recuperada, Kirk Douglas optou elegantemente por não comentar: "Eu não quero envolver-me numa conversa sobre John Wayne." Isto é, sobre as questões políticas de John Wayne. Preferiu usar a ocasião para sublinhar o facto de ele ter sido um dos atores mais profissionais com quem trabalhou. Fizeram juntos A Primeira Vitória (1965), de Otto Preminger, A Sombra de Um Gigante (1966) e Assalto ao Carro Blindado (1967). Segundo Douglas, o segredo da irrepreensível convivência entre os dois era não falar de política..E esta seria, no fundo, a atitude comum de qualquer colega. Era mais ou menos consensual que o John Wayne dos filmes não se devia misturar com o John Wayne da vida real, ainda que um tivesse várias vezes pontos de contacto com o outro, para lá da compleição e do porte carismático. O seu inegável profissionalismo era definitivamente um mundo à parte do homem de convicções enviesadas. Nesse aspeto, e apenas a título de pequena curiosidade, Marlene Dietrich, que trabalhou como ele ainda antes do ponto alto da fama do cowboy fordiano - contracenaram em Sete Pecadores (1940), Ouro (1942) e Sangue Negro (1942) - conta nas suas memórias, com um leve esgar na prosa, como o ator lhe confessou que nunca lera um livro. "Mas isso não o impediu de acumular uma bela pilha de dinheiro ao longo dos anos", conclui. Poderá ter tido consequência noutras coisas....A verdade é que estamos no domínio de uma nova problematização, cada vez mais presente no discurso mediático: deverá o legado artístico de um homem ser pura e simplesmente apagado, neste caso, devido a declarações infelizes?.O avanço do filho de John Wayne, Ethan, que veio agora em defesa do pai, negando que este fosse racista e referindo que, já na época da publicação da entrevista, o próprio Wayne tinha ficado incomodado com a forma errada como os seus "verdadeiros sentimentos foram transmitidos", não é mais do que um gesto necessário de proteção de um ícone. Porque, dê por onde der, é isso que "o ator dos filmes de John Ford" é: um ícone. E a sua imagem simbólica deverá continuar a chegar às novas gerações, através da história do cinema e do grande ecrã, convivendo com os desaires do ser humano. No fim de contas, Dietrich até pegou no que importa: talvez lhe fizesse falta ter lido uns livros.