"Lembro-me de olhar para os números e pensar: vai ser uma catástrofe. Não foi"

Meses depois da grande prova de fogo, o presidente da Sociedade Portuguesa dos Cuidados Intensivos, João Gouveia, conta ao DN como foi lidar com a pandemia e não ter camas, como foi o pressing para aumentar a capacidade do SNS e a deceção, que marca, quanto aos que partiram. Hoje, diz, tudo deixou novos desafios à medicina intensiva.
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Neste ano de pandemia demorou a passar, e marcou. Foi o ano em que os profissionais da medicina intensiva viram a catástrofe a aproximar-se sem muitos meios para a combater. "Quando olhei para os números, deitei as mãos à cabeça e só pensei: vai ser uma catástrofe." Mas ou ficavam a olhar os números ou ajudavam a combatê-los. Foi o que fizeram, conseguindo que se passasse de 629 camas para 1400 nas unidades de cuidados intensivos (UCI), para dar resposta a doentes covid e não covid. A 5 de fevereiro atingiram o maior número de internados com covid - 904. Uns resistiram, outros não. No final, fica a compensação do que se consegue fazer em tempos de catástrofe. O importante, sublinha João Gouveia, e parafraseando Winston Churchill, é não desperdiçar uma crise para mudar. Como presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos acredita que o conseguiram fazer.

Portugal está com menos de cem doentes nas UCI [98] com covid. Já podem respirar de alívio?

Esperemos que sim, costuma dizer-se que o futuro a Deus pertence, mas, neste momento, respiramos de alívio em termos de covid. Agora, esperamos que não haja uma nova vaga, porque temos de aproveitar tudo o que foi feito para o colocar ao serviço da população.

E o que vem a seguir?

No futuro, vamos ter de nos habituar a conviver com esta e outras doenças. De tempos a tempos vamos ter situações semelhantes à da covid-19 e vamos ter de estar preparados para isso. Em Portugal, acho que a medicina intensiva não vai ter muito tempo de descanso, com o aumento de capacidade que tivemos e o que se perdeu em termos de tratamento de doentes não covid, acho que vamos ter muito trabalho com estes doentes, que agora necessitam de tratamento. Mas esperamos ter férias neste ano.

Pelo menos, há uma perspetiva mais otimista para o futuro...

É mais otimista, sem dúvida. Nesta semana tive várias reuniões para perspetivar o que será o futuro da medicina intensiva e fui buscar apresentações que tinha feito durante este ano. A última foi antes da terceira vaga e lembro-me de olhar para os números, deitar as mãos à cabeça e pensar: "Isto vai ser uma catástrofe." Felizmente não foi.

Os números eram muito maus. Isso assustou a classe médica?

Os números eram maus, mas ou conseguíamos combatê-los ou era mesmo a catástrofe. Nesta altura, foi o pressing total e a tentar tudo por tudo para que se libertassem as camas necessárias para não deixarmos de tratar ninguém. Veja, em janeiro tínhamos 629 camas no país para toda a medicina intensiva, doentes covid e não covid, e de repente conseguimos chegar às 1400. Tivemos 904 doentes internados com covid, fora os outros. Conseguimos aguentar, o que se deve muito ao trabalho de todas as pessoas e diz muito do que somos capazes de fazer em situações de catástrofe. Mas é este paradigma que temos de mudar, para conseguirmos fazer de forma mais planeada, sustentada e com pensamento a longo prazo.

Portugal é agora dos países da UE com menos casos de covid. Está a desconfinar. Amanhã a situação será avaliada na reunião dos especialistas com os políticos. O que está a ser feito é o mais indicado para salvaguardar hospitais e medicina intensiva?

Acredito que sim. Todo o processo de desconfinamento está assente num documento de linhas vermelhas feito por um grupo de peritos. A resposta hospitalar é sempre dos últimos patamares a sentir qualquer ressurgimento de casos. A medicina intensiva é o último baluarte a ser atacado, portanto a doença tem de ser muito bem monitorizada antes, em termos de população, de saúde pública, para se poder atuar antes que haja um excesso de procura de cuidados nos hospitais e da medicina intensiva. Mas, em relação à nossa especialidade, penso que foi feita uma capacitação para além daquela que achávamos que era possível manter a longo prazo e na fase mais aguda. Como disse, chegámos às 1400 camas, quando tínhamos partido de 629. Agora, já se está a fazer a redução das camas para se tentar atingir o objetivo inicial de ficarmos com 9,4 camas por 100 mil habitantes. Portanto, em relação a isto, acho que estamos no bom caminho. Ainda faltam alguns pontos para se poder atingir este objetivo na totalidade, mas já é uma melhoria significativa para a medicina intensiva. Passámos da fasquia de 6,2 camas por 100 mil habitantes, em 2016, para 9,4, aumentámos quase mais de 50%.

Quais são as preocupações agora?

A grande preocupação é a incerteza em relação ao possível aumento de casos. Se este vai ou não acontecer. Temos agora novas variantes e não sabemos o impacto que podem vir a ter em Portugal e as respostas que existem para algumas delas. Depois, temos outra preocupação, que é conseguir que a capacitação que foi dada à medicina intensiva seja sustentável, que haja recursos humanos para a manter e que esta seja aproveitada na recuperação do que ficou para trás em termos de prestação de cuidados de saúde no Serviço Nacional de Saúde [SNS].

O que foi conseguido pode alargar as funções da medicina intensiva?

Exatamente. O pensamento do futuro tem de ser esse. Aliás, toda a estratégia de capacitação da medicina intensiva foi a pensar não apenas na covid, mas num pensamento planeado para o futuro. Se em 2012 tínhamos 4,2 camas por 100 mil habitantes e, nesta altura, a Alemanha, já tinha 29,5 camas por 100 mil habitantes, acho que não era a Alemanha que estava errada. É evidente que tem um tecido social e um sistema de saúde muito diferente do nosso, mas do ponto de vista técnico-científico tinha de haver alguma razão para eles estarem naquele nível. Não quer dizer que tivéssemos de estar ao mesmo nível, mas isto significava que, nitidamente, tínhamos de subir o nosso.

Destaquedestaque"Temos de aumentar a carteira de serviços que a medicina intensiva pode prestar e de maneira que seja rentável e que as populações possam tirar benefício".

Foi a pandemia que conseguiu isso...

Sim. Tentámos que este aumento pudesse ser sustentado, que se aumentasse para os números que lhe disse agora, e que nos coloca também outros desafios: se temos mais camas temos de colocar mais doentes nessas camas. Portanto, temos de aumentar a carteira de serviços que a medicina intensiva pode prestar e de maneira que seja rentável e que as populações possam tirar benefício. O que quero dizer é que temos de desenvolver outras linhas de atuação, nomeadamente junto da emergência intra-hospitalar, no apoio à sala de emergência e ao dador de órgãos, no apoio à transplantação e pós-transplantação, no apoio à cirurgia mais diferenciada, com acompanhamento no pré e pós-operatório. Há todo um conjunto de possibilidades que vai permitir melhorar a medicina intensiva e os doentes que necessitam dela.

Isso vai ser possível?

Há muito tempo que se fala disto, no alargamento de funções, mas até agora não o podíamos fazer porque não tínhamos capacidade instalada, em camas e em recursos humanos. Havia hospitais que já conseguiam desenvolver algumas atividades, mas há muitas mais que podemos desenvolver. Por exemplo, uma das missões da medicina intensiva é conseguir devolver o doente o mais habilitado possível à sua vida, família, trabalho e sociedade, e nem sempre o conseguíamos. Agora, temos de o fazer. Nalgumas unidades, já temos consultas de follow up do doente, há sequelas físicas e psicológicas muito importantes que derivam dos internamentos em medicina intensiva que têm de ser os serviços a acompanhar, mas há que reforçar este acompanhamento. Se for a medicina intensiva a fazer este seguimento dos doentes e das suas famílias, melhora francamente o prognóstico daqueles.

O futuro será dedicado ao que ainda há a fazer na medicina intensiva?

Há uma frase do Churchill que repetimos muitas vezes entre nós, desde o início da pandemia: "Que nunca se desperdice uma boa crise." Foi o que tentámos fazer, aproveitar a crise para reforçar a medicina intensiva. E acho que se conseguiu, mas este esforço também coloca agora uma obrigação na medicina intensiva que é a de ter outro desempenho.

Portugal ocupava os últimos lugares em capacidade em medicina intensiva na UE. O poder político já percebe agora a sua importância?

As situações de crise expõem os pontos fracos que já existiam previamente. Portugal tinha um investimento muito fraco na área da saúde e isso viu-se com a pandemia na falta de capacidade instalada na medicina intensiva e em outros setores também, como no da saúde pública e dos sistemas de informação. Neste momento, espero que tenhamos aprendido a lição, e que a saúde seja uma das áreas em que se faça o investimento essencial.

Quando pensa que o que se fez na medicina intensiva se deveu à pandemia não o entristece?

Entristece. Infelizmente, precisamos sempre de uma crise ou de uma desgraça para se fazer coisas. Era melhor que não fosse assim. Por outro lado, neste momento, já tento ver as coisas de outra maneira. A população já sabe o que é a medicina intensiva, já tem uma noção da sua missão, e já sabe que não se limita apenas a tratar doentes com covid-19. A população já sabe que temos muito mais para dar. O facto de termos tido o Presidente da República e o primeiro-ministro a falarem da medicina intensiva funcionou como um reconhecimento, e isso também foi muito importante, sobretudo se pensarmos que em Portugal, como especialidade médica independente, a medicina intensiva é relativamente recente (criada em 2015). Portanto, agora é muito importante arcar com as responsabilidades e cumprir.

Destaquedestaque "Se voltássemos atrás haveria coisas que todos nós faríamos de forma diferente. Mas infelizmente há coisas que só se conseguem aprender quando passamos por elas".

Olhando para trás, e apesar do total de casos e de mortes, Portugal conseguiu dar a resposta necessária?

Acho que conseguimos dar uma resposta e que foi uma boa resposta. Poderia ter sido melhor? Pode ser sempre melhor. Se voltássemos atrás haveria coisas que todos nós faríamos de forma diferente. Por exemplo, poderíamos ter sido mais proativos em determinadas alturas para não ficarmos tão aflitos noutras, mas infelizmente há coisas que só se conseguem aprender quando passamos por elas. O importante é aprendermos com a história para não voltarmos a repetir os erros.

O que se aprendeu em concreto?

Aprendeu-se muito na medicina e na organização hospitalar em geral. A grande lição é que é necessária uma flexibilidade muito grande dentro do próprio SNS, quer em termos de instalações quer em recursos, para se trabalhar melhor. Isto é muito importante para o futuro. É verdade que para funcionarmos temos de ter determinada capacidade que não pode ser inesgotável, mas não podemos ter uma que depois não é usada e não é rentável. Portanto, no caso da medicina intensiva, que depende muito da tecnologia, já temos áreas com calhas técnicas, com pontos de oxigénio, com redes com pressão suficiente e sistemas informatizados. Esta capacidade deve ser usada, até pode de alguma maneira estar adormecida, mas deve estar preparada para ser ativada quando for necessário. E quando falo em capacidade adormecida não falo só em tecnologia, mas em recursos humanos também. Tivemos profissionais que passaram pela medicina intensiva, mas que são precisos noutras especialidades a longo prazo. É preciso que estes mantenham algum treino para poderem ser recrutados nos momentos de catástrofe.

A medicina intensiva é um exemplo de como organizar o SNS?

Não é justo que se fale só na medina intensiva. Todo o SNS funcionou e se esforçou na resposta à covid-19. Nós só conseguimos aumentar o número de camas porque tivemos a ajuda de colegas de outras áreas que vieram trabalhar connosco e cujo mérito tem de ser reconhecido. Isto é uma coisa, a outra é que a capacidade de trabalhar em rede já existia na medicina intensiva antes da pandemia. É assim que funcionamos. A questão agora é que essa capacidade foi reforçada com outras áreas e isso pode ser aproveitado como modelo de trabalho para o SNS. Por isso digo que tem de haver flexibilidade dos recursos.

Depois de tudo, como é que classificaria este ano?

É um ano que valeu por muitos. Foi extraordinariamente intenso. Tivemos grandes momentos de stress, de deceção, mas também muitos momentos de realização. Foi um ano que demorou a passar, foi pesado, mas se calhar daqui a uns anos já ninguém se recorda dele.

Houve situações que marcaram?

Várias. No início, devo confessar que havia em nós, intensivistas, uma espécie de curiosidade mórbida. Lembro-me de me autoescalar para tratar os primeiros casos, porque tínhamos de saber que doença era esta e como podíamos lidar com ela. No dia seguinte a estar de serviço, fazia webinars com colegas italianos para aprender com eles e lembro-me de ficar todo contente, porque o que tinha verificado era o que eles estavam a relatar. Portanto, não estava a inventar, aquilo que tinha observado era mesmo assim. Depois, tivemos situações de pessoas que tivemos de tratar e que conhecíamos pessoalmente, que trabalhavam connosco, e que não conseguimos que tivessem uma evolução favorável. Isto marca. Mas também tivemos doentes que fomos resgatar a outras unidades, quando já ninguém acreditava que conseguissem resistir, e que resistiram. E isto compensa. São os casos bons.

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