João Gonzalez: "Depois disto, vou precisar de um mês no meio do nada"

Fez ontem 27 anos e hoje parte para Los Angeles, onde vai comparecer nos Annie, os Óscares de animação, e participar na campanha dos Óscares. É o primeiro realizador português nomeado, com um filme - Ice Merchants - que estreia nos cinemas portugueses quinta-feira. É o cineasta do momento e confessa estar a dar tudo para não entrar em parafuso com tudo isto.
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Como é que o cinema entra na vida de um jovem pianista?
De forma um pouco abrupta! Venho da música e das artes visuais. Em miúdo estudei piano clássico e o meu pai era pianista. Nunca quis seguir cinema, mas vou ser honesto: o que aconteceu é que fui parar a um curso multimédia depois de falhar o exame de matemática que me ia colocar em engenharia informática.

Perdemos um engenheiro informático?
Um péssimo engenheiro informático, ainda bem. Na altura estava completamente perdido, não sabia muito bem o que fazer e o curso pôs-me em contacto com vídeo, programação, ilustração, design, animação e fotografia e foi aí que percebi que gostava muito de animação. Ao mesmo tempo, recomecei a tocar piano.

Mas a animação vem de onde? Era bom a desenho?
Sim, sempre tive uma aptidão maior para desenho do que para outras áreas. O problema é que fui sempre muito preguiçoso, lembro-me que tinha pouca predisposição para desenhar em casa sozinho. Sabia que o desenho tinha de ficar perfeito e sofria por ansiedade. Quando era obrigado a desenhar por obrigação, saía bem... Na semana passada até me lembrei de que venci um prémio de desenho do lobo-ibérico. O prémio era umas férias com a família numa reserva de lobos-ibéricos...Foi o meu primeiro prémio, estava no 5.º ano. Lá está, fui parar ao cinema devido à animação e à música.

Há um traço no desenho nos seus três filmes, que já são uma marca João Gonzalez.
Esteticamente têm sempre a ver com o meu interesse de como quero desenhar. Tenho também um gosto grande por arquitetura. Aliás, quando fui para ciências no secundário, escolhi geometria descritiva porque ainda punha em opção ir para arquitetura. Os meus filmes têm sempre muito de arquitetura e de perspetiva, assim como têm de sombras, algo de que gosto bastante. O meu percurso é atípico, mas, quando começo a analisar, há coisas que parecem fazer sentido a longo prazo.

Como está a gerir toda esta enorme atenção em relação à nomeação para o Óscar? É uma espécie de herói nacional.
Enfim, há dias mais complicados. Tento não aceitar todas as entrevistas. Sou um tipo que precisa de estar na sua, preciso do meu espaço. Nesta primeira fase tenho de fazer um esforço para o filme ser falado. O meu dia a dia é receber parabéns, e nunca sei bem como lidar com isso. Mas isto de ser o realizador do primeiro filme português a ser nomeado para o Óscar é bastante surreal para mim. Estou a tentar não pensar demasiado, para não entrar em parafuso. Depois disto vou precisar de um mês no meio do nada, até porque estou mortinho para começar o meu próximo filme.

Filme esse que não será uma longa-metragem.
Será uma curta.

Foi decisão sua Ice Merchants chegar às nossas salas sem título em português?
Simplesmente acho que soa melhor assim. Mercadores de Gelo não me pareceu um nome sonante, embora no IndieJúnior tenha aparecido dessa maneira.

Sei que teve uma infância normal e feliz. Por que razão lhe toca tanto o tema de Ice Merchants: a paternidade e a perda/reconciliação?
Sim, tive uma infância incrível não é um filme autobiográfico. A perda é um tema que me preocupa e me toca. Os meus filmes são uma forma de terapia, de estar em paz com coisas que me preocupam. Nestor era sobre uma personagem obsessiva-compulsiva e de certa forma era mais autobiográfico. Ali estava a expor-me. Tenho bastantes sintomas de obsessão compulsiva, mas é engraçado, porque depois do filme melhorei um bocado.

E qual foi realmente o ponto de partida para Ice Merchants?
Uma casa no precipício. Começo sempre com uma imagem. Às vezes, quando estou quase a adormecer, fico com a sensação de que estou num local incrível, e depois começo a pensar e a imagem desaparece completamente.

Nas entrevistas tem falado muito do subconsciente. Essa é uma matéria que lhe apetece ainda explorar mais?
Sou fascinado por sonhos. Vou-lhe dizer algo parolo: nunca estive nem nunca vou estar em locais na minha vida tão interessantes como nos sonhos.

E a animação permite-lhe isso.
A animação permite-me isso, sobretudo no período da pré-produção, em que estou a navegar nesses lugares.

Não seria interessante encontrar um psicanalista para lhe falar do seu imaginário onírico?
[Risos] Não quero ser analisado, ainda descubro que tenho mais problemas!

Mas o seu subconsciente artisticamente vai passar sempre por um certo surrealismo, não é?
Sim. É o que me fascina mais, mas não sei se um dia posso tentar algo com realismo. Nem sei se um dia não vou querer fazer cinema em imagem real. Se algum dia tiver uma ideia que pede imagem real, não vou ser teimoso com a animação.

Outro facto é que o seu filme faz chorar muito boa gente. Porque raio esta curta de 14 minutos consegue roubar lágrimas? Há aqui qualquer coisa que toca no íntimo. Esse é o segredo de Ice Merchants... Acredito que nem o João percebe bem a razão disso.
Uma das melhores capacidades que um realizador pode ter é tentar colocar-se fora da sua bolha, e quando acabei o filme senti realmente que havia ali algo que podia comover as pessoas - eu próprio ficava comovido. É a tal coisa da parte terapêutica.

Agora ainda se comove, depois de o ter acabado há quase um ano?
Já estou farto [risos]. Se parar de o ver durante dois meses, haverá coisas que ainda me comovem.

Esse efeito de comoção é também proporcionado pela música que compôs.
A música vem do início do projeto e tentei articulá-la milimetricamente com a história. Por ser músico, acredito que a música é o género de arte capaz de provocar um impacto maior nas pessoas, enfim, aquela coisa da pele de galinha... Ligar bem isso às imagens é uma ferramenta muito forte.

Há quem chame manipulação.
Exatamente, sou um manipulador.

E está a correr bem o lançamento da sua partitura musical no Spotify?
Tenho dados de que as pessoas estão realmente a ouvir.

O lançamento na quinta-feira do filme nas salas não deixa de ser pioneiro neste sistema em que algumas salas praticam o preço de desconto que entendem ser o correto e num sistema de sessões de meia em meia hora...
Sim, mas gostaria também de termos mantido aquela dinâmica de sessões com os outros dois filmes portugueses que estiveram na shortlist dos Óscares, O Homem do Lixo e O Lobo Solitário. Não ocorrendo isso, prefiro este formato ao de abertura de uma outra longa.

É desta que o grande público vai ver uma curta de animação aos cinemas?
Imprevisível, isto é algo de novo, mas penso que há um interesse nas pessoas.

Está a desfrutar o momento? A estreia em Portugal, a ida aos Óscares...
Sinceramente, ainda não sei bem o que se está a passar. Para já, não tive tempo de desfrutar, talvez quando agora chegar a Los Angeles. Quero chegar lá para acreditar que isto está a acontecer!

Esta semana já tem o almoço dos nomeados e vem aí um período de promoção em Hollywood que será tudo menos férias...
Sim, vai ser duro. Gosto de pensar que é o sprint final para uma oportunidade única na vida. Tenho de dar tudo, vai ser difícil: são muitas entrevistas.

E não haverá que fazer charme, ser simpático para com os membros da Academia?
Há essa vertente - vou tentar ser o mais simpático possível. No almoço com os nomeados vou ter de usar uma gravata pela primeira vez na vida.

Um almoço onde há sorteio dos lugares onde se sentam. Com quem gostaria de se cruzar?
Talvez com a Cate Blanchett. Vi recentemente o Tár e, como músico, interessou-me bastante.

Tem o discurso de vitória preparado?
Não, não tenho.

E se ganhar!?
O meu estratega de campanha vai ajudar-me... Mas se começar a pensar na noite de 12 de março entro em parafuso e fico ainda mais nervoso. Se não vencer não fico triste, estou já mais do que feliz por ser para sempre referido como "nomeado para o Óscar".

E, se ganhar, a sua vida pessoal e profissional muda?
Não. Espero que não, gosto da minha vida calma no Porto, viajando sempre que necessário a partir daqui. Da forma como tenho feito cinema acho que consigo continuar a viver em Portugal, dependendo, obviamente, da escala e da estruturação de cada projeto. Seja como for, o favorito é O Menino, A Toupeira, A Raposo e o Cavalo, da Apple. Eles têm uma campanha milionária e o J. J. Abrams é o produtor.

Um pai, um filho e uma casa no precipício. O negócio deles é o transporte de gelo para uma aldeia em baixo. Lançam-se pelos ares, de paraquedas, de forma tão vertiginosa como esteticamente singular. Uma singularidade que é arrojada por dispensar diálogos e fazer das emoções um veículo de comunicação e de imersão. Ice Merchants, de João Gonzalez, é isso mesmo: cinema imersivo, uma viagem de 14 minutos ao furacão da vertigem. A música guia-nos perante um universo de perda. É uma curta-metragem de animação de uma beleza única, capaz de confirmar um momento de exceção do cinema nacional de animação.

Um filme que faz a música dialogar com uma doçura tão triste como poética. Uma música criada por um cineasta com música no coração.

Pode não ser o favorito para vencer a estatueta, mas com a quantidade de prémios que arrecadou em festivais, inclusive Cannes, a sua vitória também não era uma surpresa para deixar de queixo caído o mundo do cinema. Para já, João Gonzalez está já lá nas nuvens que desenhou: é o primeiro realizador português com um filme nomeado para o Óscar e, aconteça o que acontecer, o seu nome será sempre precedido da frase "nomeado para o Óscar". Ou então "vencedor do Óscar". A partir de quinta-feira é dever quase patriótico ir aos cinemas que acolhem esta sessão especial a preço... especial.

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