Por mais maravilhosa que seja a música de Béla Bartók é difícil entrar n'O Castelo do Barba-Azul sem nos lembrarmos das dez mulheres e uma criança que neste ano já morreram vítimas de violência doméstica..Olga Roriz e Joana Carneiro, que assinam, respetivamente, a encenação e direção musical, sabiam isso acerca da ópera que entre esta quarta-feira e domingo sobe ao palco do CCB, logo seguida de A Voz Humana, de Francis Poulenc, ambas numa coprodução com o Teatro Nacional de São Carlos.."A mim o que me interessa é perceber a relação de dependência, de grande amor, que estas mulheres têm com os seus parceiros. São mulheres muito fortes, até certo ponto muito independentes, mas ao mesmo tempo muito dependentes e submissas de alguma forma", diz ao DN a maestrina no intervalo de um ensaio com a Orquestra Sinfónica Portuguesa, que interpreta as duas óperas..Falamos de Judith e falamos de Elle. Na primeira ópera, de Béla Bartók, com libreto de Bela Balazs, Judith ordena a Barba-Azul, com quem acabara de se casar, que abra porta atrás de porta. Quer saber cada vez mais acerca daquele homem que ama. Por detrás de cada uma delas há todo um passado manchado de sangue que culminará na visão das suas outras mulheres, que ele ali mantém aprisionadas.."O grande problema da Judith é que, por muito apaixonada e por muito desejo que tenha por este homem, por quem ela deixou o seu noivo, a família, tudo, ela entra já para esta casa um bocadinho de pé atras, já ouviu muitas coisas sobre ele. Mas é aquele tipo de relação em que eles têm um ascendente enorme sobre nós, mulheres. Assim como às vezes pode acontecer ao contrário. Ela deseja-o mesmo, quer estar com ele, apesar de dizerem muito mal dele. Já me aconteceu. Disseram-me mal de um homem que eu adorei e depois percebi que realmente era um Barba-Azul. Isto acontece na vida real." Olga Roriz, mostrando como pensou aquela personagem feminina, afirma que quis fazer daquele "um casal possível. São os dois de 40 e poucos anos, lindos, altos e espadaúdos"..A coreógrafa, e aqui encenadora, pôs em cima do palco um casal "que se ama profundamente, beijam-se, agarram-se, assim como lutam frente a frente, e ela deita-o para o chão. Ele é um bocado pinga-amor, passa um terço da ópera a dizer: 'Beija-me, beija-me!' E ela: 'Abre aquela porta!' Como mandona. Mesmo como cantora a Allison [Cook] tem uma personalidade de que o próprio Marcell [Bakonyi] diz: 'Eu não posso olhar para ti, tenho medo.' Depois há o momento em que ela [Judith] não aguenta mais e é completamente comida por toda a força que o Barba-Azul possa ter.".E é aí, na sétima e última das portas, que chegamos a um ponto sem retorno. O tema da violência doméstica não é novo para Olga Roriz. Aliás, era desta que tratava a sua primeira obra, Lágrima, em 1983. Nessa altura, recorda, teve mulheres a perguntarem-lhe na rua como era capaz de mostrar em palco, e daquela maneira, a violência praticada por três homens sobre uma mulher. Ela respondia que se tratava disso mesmo: de mostrar, alertar, fazer ver.."Eu passei por um caso de violência doméstica, portanto sei perfeitamente do que estou a falar e é uma coisa que me preocupa muito. É desastroso o que se está a passar. Eu tinha um homem à minha frente que não me deixava sair. Ele punha-se à frente da porta, era enorme e não me deixava sair. Por acaso saí uma vez porque ele foi à casa de banho e fugi para a polícia", conta a coreógrafa, pondo a tónica no facto de tal poder acontecer a qualquer pessoa. "Eu sei o que se passa no mundo, sou uma pessoa culta, e ele também era. Basta uma gota de álcool, um problema qualquer. Há uma componente física que faz uma desigualdade muito grande entre um homem e uma mulher. Os homens não podem ter isso como prioritário.".Relações de dependência na era #MeToo.A maestrina Joana Carneiro prepara quem vier assistir às três récitas para o facto de ser "constrangedor" assistir à "relação de dependência e quase humilhação perante um homem" presente n'A Voz Humana, tragédia de Jean Cocteau. Trata-se de Elle (Alexandra Deshorties), que ali não está ao telefone, como no texto original, e que estabelece com alguém que não vemos um diálogo a que apenas assistimos como monólogo e que, no limite, pode não acontecer senão na sua cabeça. Elle foi abandonada por esse homem por quem ainda está apaixonada, e ficou sozinha naquela relação de onde não sai.."Todos nós conhecemos muitas relações assim, mulheres que sabem o que querem mas que ao mesmo tempo dizem: 'Tu é que tens razão, eu é que sou estúpida, tu és tão simpático, eu quero dormir agarrada ao telefone à espera que me telefones.' Acho que é muito interessante hoje, com todos os movimentos, com o #MeToo, em que estamos a tentar enaltecer e apoiar as mulheres, ver que ainda existem muitas relações assim. Para mim é muito interessante ver isso na música e é isso que estou a tentar traduzir: esta tensão constante entre o amor incondicional e o que isso as pode levar a fazer", explica Carneiro, que por coincidência está neste momento a dirigir a Carmen, de Georges Bizet, em Estocolmo, numa "encenação muito ao encontro deste movimento #MeToo, é uma mulher muito independente mas que acaba refém de um homem que a mata"..O Castelo de Barba-Azul e A Voz Humana surgem no palco do CCB numa encenação despida em termos de cenografia e adereços, que vive da força da música e seus cantores, bem como do cenário feito pelos vídeos de João Pedro Fonseca, tendo Olga Roriz interligado as duas óperas de várias formas. Além de procurar as suas afinidades temáticas e de intensidade, levou uma das mulheres do Barba-Azul e tornar-se a Elle de Cocteau. A pairar como uma interrogação ao público fica, ainda, a possibilidade de o interlocutor de Elle ser o próprio Barba-Azul..A encenadora evoca "outro tipo de violência" na segunda ópera. "Por exemplo, há uma altura em que ele lhe diz que vai passar umas férias com outra pessoa ao mesmo hotel, à mesma cidade, onde costumavam ir. Isto é de uma violência muito grande", explica Olga Roriz.