Celebrou-se no início deste mês o 80.º aniversário da cantora/guitarrista folk Joan Baez, famosa desde o início dos anos 60 pela singularidade da sua voz e subsequente activismo em prol da não-violência e dos direitos das minorias, nos Estados Unidos e em diversas partes do mundo. Atuou pela última vez em Portugal em fevereiro de 2019, na sua derradeira digressão europeia..Muito se escreveu já sobre a sua voz invulgar, de timbre único e ampla extensão, cujo registo de soprano "dolorosamente puro", nas palavras maravilhadas da imprensa da época, contribuía para uma expressividade pouco habitual no universo da música folk. Com um repertório inicial de canções tradicionais americanas e baladas inglesas e escocesas, Joan Baez rapidamente ganhou notoriedade, sendo louvada por todas estas qualidades e ainda por cantar com uma impecável dicção, afinação justa e utilização controlada de uma palêta dinâmica entre o forte e o pianíssimo. Tal como a maioria dos seus colegas, cantava acompanhando-se à guitarra, utilizando no entanto uma linguagem instrumental mais requintada do que era habitual nesta música, que aliás não se encontrava, de todo, em intérpretes femininas..No início da década 60, uma altura em que era moda os jovens serem anti-moda - anti-convencional, anti-comercial, anti-vedetismo, anti tudo o que fosse institucional ou formal - Joan Baez cultivou uma imagem de simplicidade e beleza que aparentemente correspondia também à sua personalidade, apresentando-se em público sem artifícios nem maquilhagem, com os seus longos cabelos castanhos despenteados, descalça e vestida sem elegância ou glamour, tornando-se de certa forma num modelo que a sua geração adoptaria..O êxito meteórico potenciado pela saída dos primeiros álbuns, sucessivamente três discos de ouro (1960, 1961 e 1962), e um novo estatuto perante o público e a comunicação social, contribuiram para que Joan Baez se sentisse, de corpo e alma, um veículo privilegiado para chamar a atenção para as grandes causas nacionais que perturbavam fortemente o espírito dos jovens, nomeadamente a sangrenta guerra no Vietname - que dizimava hordas de rapazes, minando o futuro das famílias - ou a Guerra Fria, que fazia temer o colapso do mundo num ápice nuclear..As digressões pelos Estados Unidos, onde Baez tomou contacto com a dura realidade da segregação racial vigente em alguns Estados, e posteriormente na América Latina onde vigoravam ferozes ditaduras apoiadas pelos americanos (chegando a ser proibida de atuar no Chile, na Argentina e no Brasil), tornaram-na numa convicta activista dos direitos humanos, cada vez mais interventiva e mais reconhecida internacionalmente como tal. Até hoje..Entre as centenas ou milhares de notícias e entrevistas, escritas e filmadas (muitas disponíveis online), encontra-se um imenso material biográfico que define a notável, invulgar e longa carreira de Joan Baez. A sua autobiografia escrita aos 45 anos de idade, And a Voice to Sing With (1987), revela com uma sinceridade desarmante a mulher por trás dos feitos, desde a infância e juventude até à idade em que escreve - incluindo escola e família, amigos e namorados, colegas músicos e tantas celebridades mundiais com quem se cruzou - bem como o seu meio musical e social quando jovem adulta, a época particularmente relevante das décadas de 60 e 70 do século XX. Quinze anos mais tarde surge uma biografia quádrupla - dos primeiros anos de carreira de Bob Dylan, Joan Baez, Mimi Baez Fariña e Richard Fariña - intitulada Positively 4th Street (David Hajdu, 2002), que apresenta uma elaborada teia de relações entre os membros destes dois casais e o ambiente da música folk em que germinaram. E foram precisas quase mais duas décadas para se publicar uma nova obra sobre a artista, Joan Baez The Last Leaf (Elisabeth Thomson, 2020), baseada em parte na autobiografia dos anos 80, mas acrescentando novos dados, como por exemplo uma extensa discografia, ou a sua linha genealógica materna, escocesa, que ascende aos Duques de Chandos (aludindo vagamente a Händel, o compositor setecentista, que nessa corte trabalhou)..Complemento e ilustração biográfica, destaca-se o fundamental documentário da série American Masters (PBS), Joan Baez How Sweet The Sound (Mary Wharton, 2009), assinalando os cinquenta anos de carreira da cantora (publicado em DVD+CD). Para além de contar com a homenageada como narradora, não faltam depoimentos elogiosos de amigos da sua geração, nomeadamente Bob Dylan e David Crosby, bem como do seu ex-marido e pai do seu filho, o activista anti-guerra do Vietname David Harris..Uma fonte biográfica que tem sido um pouco negligenciada é o seu repertório. Se Joan Baez não é considerada uma grande autora de canções - escreveu umas sete ou oito dezenas, no universo das várias centenas, de outros autores, que interpretou em público e gravou - as da sua autoria referem-se a amigos, ao marido ou ao filho, a momentos particulares da sua vida ou carreira. Outras há que são retratos ainda mais pessoais, íntimos mesmo, sobre as relações amorosas e sentimentais de uma jovem mulher que passava meses fora de casa, em longas digressões por vários continentes, numa época balizada entre a liberdade sexual desencadeada pelo aparecimento da pílula contraceptiva e os primeiros casos de sida, no início dos anos 80..No site oficial da cantora - www.joanbaez.com - encontra-se, naturalmente, muita informação relevante e fidedigna sobre o seu percurso, bem como uma longa lista de prémios e galardões com que tem sido agraciada, o mais recente dos quais, o Kennedy Center Honors 2020, anunciado quatro dias depois do seu 80º aniversário. Destacam-se em particular as condecorações de Estados estrangeiros, em França com o grau de Chevalier, Legion d'Honneur (1983) e em Espanha com a Orden de las Artes y Las Letras de España (2010). Quando em 2016 o prémio Nobel da Literatura foi atribuído, não sem alguma polémica, a Bob Dylan, entre os próximos de Baez houve quem mencionasse que antes disso deveria ela ter recebido o Nobel da Paz..E Portugal, o que fez pela cantora e como manifestou o fascínio dos milhares de admiradores seus, de várias gerações, que compravam os seus discos e cantavam incessantemente as suas canções? Ou dos que esgotaram os seus poucos - mas memoráveis - concertos entre nós?.Apenas um livrinho, também autobiográfico, Daybreak (1968), escrito ao cabo de dez anos de uma carreira alucinante, configura a única bibliografia - de e sobre Baez - que logrou tradução e publicação em Portugal, aliás tardiamente, com o título Amanhecer (Moraes, 1973). Consta que a edição foi apreendida pela PIDE (polícia política), em data não apurada, de acordo com uma testemunha presencial (blogue Rua do Jardim 7). Antes, porém, numa ocasião em que o semanário Expresso propôs a oferta de um exemplar como prémio de um concurso de Palavras Cruzadas (Dez. 1973), a censura não o permitiu, segundo apurou o jornalista José Pedro Castanheira (O que a Censura Cortou, 2009), o que revela um pouco a imagem de perigosa agitadora que as autoridades nacionais teriam da autora. Curiosamente, depois do 25 de Abril, a audição de canções de Baez e Dylan passou a ser recomendada nos programas do Ministério da Educação para a disciplina de História - presentemente no 12º ano - no âmbito do estudo da segunda metade do século XX..Note-se que desde os anos 60 a cantora era conhecida entre nós e a sua música passava na rádio, nomeadamente no excepcional programa Em Órbita, e que na década seguinte alguns jornais e revistas musicais lhe dedicaram artigos mais ou menos relevantes, de maior ou menor profundidade. No entanto, quando Baez veio ao nosso país pela primeira vez, a imprensa assinala que apenas sete dos seus vinte e cinco álbuns se encontravam acessíveis no mercado português..Quando em 1980 Joan Baez atua finalmente em Portugal - ao fim de mais de vinte anos de carreira e de várias digressões na Europa - a imagem que muitos tinham dela era ainda a da cantora de protesto, anti-imperialista, havendo talvez a expectativa de que pudesse entrar em palco de punho erguido e cravo vermelho ao peito, de braço dado com os irmãos recém-libertados de quase cinquenta anos de ditadura. Mas já tinha passado mais de uma década sobre aquela época mítica (ou mitificada) em que ela foi coroada rainha da música folk, género que já estava relegado para um lugar muito secundário na gigantesca indústria discográfica que a tinha lançado. E a artista andava já a gravar e apresentar um repertório bastante diferente das baladas, mais próximo da pop e da country, possivelmente para tentar sobreviver na cena musical onde singrava uma geração mais nova, com outros princípios estéticos e éticos. Apresentava-se de cabelo curto, levemente maquilhada e de unhas pintadas, embora se mantivesse descalça em palco..A imprensa portuguesa reflete bem o contexto de desconfiança em que ocorreu o histórico concerto único no Pavilhão do Dramático de Cascais, a abarrotar nessa noite de 2 de Agosto. Nas notícias e críticas publicadas em datas próximas estão patentes as vicissitudes desta infância da democracia, apenas com seis anos de agitada implementação, na ambiguidade das palavras de alguns cronistas rendidos às canções, voz e profissionalismo da cantora, mas decepcionados face à sua "neutralidade" ideológica, reiteradamente por ela afirmada..O Diário de Lisboa (DL) anuncia previamente o esperado "momento grande da música" em que se estrearia em Portugal a "rainha da 'folk-music' americana" que "continua no topo da escala dos 'singers' norte-americanos" e que "inclusivamente continua na crista da onda", apesar dos seus 39 anos de idade. Mas não deixa de esclarecer as polémicas que se têm criado em torno da cantora que ultimamente vinha a manifestar-se "activamente contra o novo regime do Cambodja e [a] atacar o Vietname independente [agora uma república pró-soviética, de onde milhares de boat people partiam em busca de refúgio noutros países], cuja luta outrora apoiou [...] em guerra aberta contra a intervenção americana". Isto ajuda a perceber por que, à chegada ao aeroporto de Lisboa, Baez terá afirmado ao DL que responde aos seus critícos dizendo que vê o mundo com ambos os olhos e não apenas com um, como fazem alguns ao "lerem os acontecimentos políticos internacionais"..A crítica musical no mesmo jornal, poucos dias depois do concerto, é um rosário de lamentos decepcionados pela expectativa frustrada do autor, que conclui afirmando: "Nós que fomos a Cascais ouvir Joan Baez, porque acreditámos na sua luta, hoje, sentimo-nos tristemente traídos". Sobre música, praticamente nada. Mas nas páginas finais do mesmo jornal (5 Ago.), inesperadamente no Roteiro Cultural, é mencionada uma "incomensurável multidão [que] vibrava no Pavilhão dos Desportos de Cascais com Joan Baez em pessoa" no passado sábado, enquanto o Festival da Costa do Estoril, dedicado à música clássica, tinha apresentado um concerto para duas escassas centenas de pessoas. É ainda acrescentado, no meio da notícia sobre o Festival, que "Joan Baez mereceu honras de primeira página nos jornais, e com razão"..Efectivamente, o semanário Se7e - uma referência na imprensa portuguesa dedicada às artes e cultura - publica uma foto de Baez na primeira página anunciando a entrevista das páginas centrais, a qual intitula com palavras da própria artista: "Sou a mesma activista e cantora de sempre!". De facto as perguntas com que é bombardeada centram-se mais em torno de questões políticas do que musicais, e a pequena foto que ilustra o texto tem a seguinte legenda, uma vez mais citando a entrevistada: "Não sou uma traidora". No entanto, num destaque nas mesmas páginas em que refere "o concerto-comício de Cascais", o autor não esconde o agrado e admiração pelas "extraordinárias qualidades vocais" de Baez, destacando também a sua "técnica pouco vulgar de guitarrista, para acompanhar uma voz de ouro"..O Som 80, suplemento de fim-de-semana do diário Portugal Hoje, no dia do concerto dedica uma página a Joan Baez, tendo publicado na semana anterior uma crítica muito favorável a um recente álbum "de uma cantora de eleição: Joan Baez". Apesar de incluir uma breve biografia comicamente imprecisa, apresenta de forma bastante séria a polémica questão já mencionada, concluindo: "Partilhe-se, ou não, das suas posições sobre o regime cambojano e a situação dos refugiados vietnamitas - largamente noticiada na Imprensa mundial - o certo é que a lenda de Joan Baez está viva." O anónimo autor não esconde o entusiasmo e a expectativa sobre o concerto da "maior cantora de «folk» dos Estados Unidos" entre nós, dando por certo que será "um acontecimento de grande importância - um dos maiores concertos do ano - a sua atuação no nosso país." E foi..A revista Música & Som (M&S), que não refere Baez no seu número de Julho/Agosto, no mês seguinte dedica-lhe uma página inteira com uma foto e um pequeno texto, errático e pouco claro, caricaturando o espectáculo e em particular a relação da artista com o público. Possivelmente desconfortável e até surpreendido com a magia de Baez no palco, o autor chama-lhe "dominadora... atraente... irradiando simpatia e savoir-faire por todos os póros" (reticências no original), ao mesmo tempo que adjetiva a rendida audiência como "embasbacados" e se espanta com as "aparvalhadas exclamações de sagrado júbilo". Mais de metade do texto decorrido, o inspirado crítico (quase oitocentista) faz o ponto da situação: "Aquilo foi giro, lá isso foi [...] que teve qualidade, lá isso teve". E acaba por revelar a sua admiração, pelo menos em alguns parâmetros:.Percorrendo com mestria e segurança inegáveis todos os Grandes dos sixties e arredores, [...] ou comunicando com o público com uma facilidade e naturalidade que nunca são demais salientar, Joan Baez mais (muito, muito mais...) que uma cantora de intervenção (que um dia foi...), revelou-se, isso sim, uma performer de méritos indiscutíveis, uma cantora de alto nível..O artigo não termina sem voltar à recorrente questão da ideologia, desdenhando da ativista por seguir a moda vigente "do (aparente) descomprometimento político tanto à esquerda como à direita" que supostamente Baez disfarçaria com a capa do "bom senso"..É possível que os críticos musicais não tenham deixado na artista uma impressão muito favorável do nosso país. O certo é que ela acaba por ler uma curta declaração, em português, na conferência de imprensa (possivelmente improvisada no próprio Pavilhão, vendo-se em fundo uma barra de ballet) que passaria no noticiário da RTP na noite após o concerto, em que declara:."Sou a mesma que tenho sido ao longo dos anos, cantando e lutando contra a violência e opressão da esquerda e da direita. Para mim eles não são diferentes. Vamos todos juntos descobrir alternativas para [atenuar?] a violência no mundo de hoje. A vida pode ser tão bela." (arquivos.rtp.pt).No dia do concerto o Expresso assinala em especial alguns álbuns recentes da artista, lembrando "a fidelidade mantida por Joan Baez, ao longo de duas décadas, a uma certa maneira de estar no mundo" e salientando "a qualidade interpretativa que nada perdeu em expressividade e frescura desde os anos em que a voz de tons cristalinos lançava o seu canto de liberdade, emocionado, sincero e entusiástico". Na semana seguinte é a vez do respeitado e temido crítico deste semanário - mais conhecido na época pelos escritos sobre música clássica - escrever sobre o concerto, o que faz assumindo sem grandes rodeios o que muitos da sua geração sentiriam naquele momento de celebração: uma certa nostalgia, um enorme prazer em recordar o ambiente de "contestação e recusa" dos "anos 68/74", possivelmente tempos de ideais e de esperança estudantis que se partilhavam ao som das inspiradoras canções de Baez. Todo o artigo, meticulosamente concebido, configura efetivamente uma análise sociológica da situação, refletindo também os comentários que corriam de boca em boca no final do espectáculo..Cabe aqui uma elogiosa referência à cobertura dada pelo vespertino A Capital que, publicando uma entrevista de Baez com um jornalista americano no final de Maio, passaria a inserir todos os meses uma notícia sobre ela, a sua música ou o concerto em Portugal. No próprio dia apresentava uma nova entrevista, realizada no aeroporto de Lisboa, onde as questões políticas são obviamente abordadas, mas de forma mais isenta e esclarecedora do que na maioria dos restantes periódicos, musicais ou noticiosos, deixando no ar a enorme expectativa de que nessa noite se esperava "febre em Cascais". Na segunda-feira seguinte, a crítica inequivocamente positiva desde a primeira à última palavra, refere a presença de um "público juvenil", "milhares de jovens" num "Espectáculo Soberbo da Mulher-Mensagem", onde "Joan Baez conduziu todo o espectáculo com uma graciosidade e uma harmonia soberbas"..Semanas depois encontramos ainda o "Rescaldo de um concerto... em tom maior", noticiado em página inteira no jornal quinzenal Musicalíssimo, expectavelmente uma crítica favorável. Mas é mais do que isso. O autor manifesta a sua incondicional rendição ao charme com que Baez cativa o público, começando por avaliá-la como mulher, antes de passar à cantora ou à activista, interrogando-se:.Que força tem esta mulher para levar ao rubro o entusiasmo das dez mil (10.000) pessoas [o Se7e referia "oito mil ou mais"] que, em boa hora, foram a Cascais para a ouvir? Que poder tem esta voz para ser ouvida em religioso silêncio por uma multidão normalmente barulhenta e «habituada» a outro tipo de shows? Como definir a personalidade e o talento desta artista que desde o primeiro momento "agarrou" a assistência e se tornou repeitada... e desejada?.E, talvez com a ajuda de algum distanciamento proporcionado pelo tempo decorrido desde o concerto e as polémicas, o deslumbramento prossegue referindo "a verdade de uma dádiva total ao público; o magnetismo que irradia da sua simples presença; o talento que transborda em cada canção! E isto para além da pureza da sua voz." Prestes a terminar, continuam ainda os rasgados elogios, imbuidos da sinceridade do admirador, afirmando que o público sente "que está perante uma grande profissional. Joan Baez fez questão [de] cantar em português e explicar, em português, algumas das canções que cantou em Cascais." Para rematar, "foi só pena que a RTP não filmasse o show para depois o transmitir", o que inegavelmente teria obtido a aprovação de muitos dos que estiveram presentes..Baez voltou com enorme sucesso ao Dramático de Cascais poucos anos depois, a 13 de Maio (coincidência) de 1983, para um concerto (esgotado) que o Diário de Lisboa anunciava como "uma grande artista" que proporcionaria "sem dúvida, uma grande festa a não perder." A 11 de Maio uma nova notícia, sucinta, não deixa de recordar que "Joan mudou, e muito, mas continua a ter muitos fãs que não mudaram com o passar dos anos". No dia 14, imagem na primeira página, uma fotomontagem da cantora em espelho consigo própria, cuja legenda refere "uma geração tragada pela voragem da era tecnocrática", salientando "a nostalgia que inundou os «velhos» dos anos sessenta." E na última página, um pequeno texto finalmente sobre o concerto, criticando negativamente o ambiente de saudosismo, de utopias do passado, indicia um autor em crise identitária ou depressiva, que alude ao "desencanto de gerações cilindradas por uma hidra de mil cabeças". Os tempos não estavam fáceis..O Se7e volta ao tema de 1980 - "Não sou de esquerda nem de direita", titula - dando importância negativa ao peso da idade da cantora, achando-a desfasada dos anos 80 em curso, mas não deixando de notar que "Joan Baez é uma das vozes mais imitadas em todo o mundo por jovens adolescentes". A Capital afina as críticas por idêntico diapasão e caracteriza o público como tendo-se "instalado para vir ali em busca dos sonhos perdidos", especificamente "uma série de 'teenagers' que parecem apóstolos retardados do 'flower-power', novos 'freaks' à boa maneira de Woodstcock"..Mas há outros pontos de vista. No seu número de Junho, a Música & Som publica uma divertida crónica de página inteira, duas colunas ladeando uma foto de Baez de corpo inteiro em concerto, desta vez escrito por uma mulher, o que não era frequente neste tipo de publicação. (Mais à frente há também uma breve entrevista, no mesmo tom juvenil e quase irreverente). Começa por comparar o ambiente de Cascais a Fátima, ambos locais de peregrinação de uma multidão em romagem, assinalando a presença de "gente de todas as idades, com grande predominância dos mais jovens", ao contrário da imagem transmitida anteriormente pelo DL. Descreve de forma viva e colorida o "chavascal" que obrigou a artista a retirar-se, afirmando que só voltaria ao palco quando as pessoas da frente, que impediam a vista dos demais, se sentassem e todos pudessem ver e ouvir. Como habitualmente nos seus concertos, não faltaram também as "alocuções de carácter político e social, antimilitaristas, antinuclear e algum humor oportuno à mistura." Para além da referência ao repertório, é notado com admiração que houve músicas cantadas em várias línguas, entre as quais três em português. Descrevendo o efeito da "voz divina que enchia de uma maneira indescritível os interiores dos fiéis", a autora acha "admirável a coragem de Baez em enfrentar um público a princípio incontrolável, só com uma guitarra." E parece-lhe "sobretudo extraordinário que uma mulher de 42 anos, que não canta rock, consiga levar a Cascais uma multidão de jovens". Última frase: "Amazing Joan.".E foram precisos quase mais trinta anos para que Joan Baez voltasse a pisar um palco em Portugal, o que certamente contribuiu para que o concerto de 1983 fosse reiteradamente ignorado e omitido por alguma Comunicação Social ao noticiar os seguintes, em 2010, 2015 e 2019..Em 2010, pela primeira vez a artista vem acompanhada por uma banda, sendo um dos músicos o seu filho, Gabriel Harris (percussão). Também pela primeira vez dá dois concertos, ambos esgotados, um na Casa da Música, no Porto, a 8 de Março, e o outro dois dias mais tarde no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Já na era digital, ambos se encontram amplamente documentados na imprensa online e nas redes sociais, revelando unanimemente uma artista consagrada, com uma notável carreira e adorada pelo público. Segundo reiteradas opiniões, o ponto alto terá sido a interpretação, com a ajuda do público, de Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso..No regresso seguinte, em 2015, Baez apresenta-se já com 74 anos de idade, a 31 de Março no Coliseu do Porto e a 1 de Abril no de Lisboa, com o mesmo agrado e sucesso dos anteriores, Grândola incluída. Uma jovem redactora do Jornal Universitário do Porto afirma: "ouviram-se diamantes, não houve sinal de ferrugem", aludindo à imortal canção autobiográfica Diamonds and Rust e significando certamente que, apesar de se estar em presença de uma voz necessariamente diferente, as restantes qualidades interpretativas da cantora brilharam, superarando as limitações vocais..O sétimo e último concerto português, em 2019, uma apresentação única no Coliseu de Lisboa, uma vez mais esgota. As palavras elogiosas na imprensa portuguesa são unânimes, um misto de admiração por toda a singularíssima carreira musical e de intervenção social, indissociáveis uma da outra, mas sobretudo o espanto pela coragem com que Baez enfrenta o envelhecimento com um espírito tão jovial..Aos 78 anos a artista encerrava assim a sua curta relação presencial com Portugal, iniciando ao mesmo tempo uma vasta digressão de despedida dos palcos, com dezoito concertos em treze diferentes cidades europeias ao longo de um mês. No mês seguinte, dezassete concertos nos Estados Unidos, seguidos, em Julho, de mais quinze na Europa, com términus em Madrid. Aí, segundo a sua biógrafa, tendo tido como convidado no palco o cantor galego Amancio Prada (n.1949), com quem cantou um duo, no final do concerto e já nos bastidores, Baez ofereceu-lhe uma das suas célebres guitarras Martin (com grande insistência dela e escusa dele), simbolizando realmente o encerrar do longo capítulo da sua carreira musical..No termo desta Fare Thee Well Tour (2019) Joan Baez dedicou-se mais regularmente à pintura, atividade que vinha exercendo já há anos. Pintando retratos de algumas das personalidades que considera relevantes no plano nacional americano ou na cena internacional, a artista viu-se impelida a recorrer a este meio de expressão, durante o turbilhão da covid-19, para manifestar a sua solidariedade e intervenção (em confinamento) através das redes sociais, agindo para angariar fundos para organizações dedicadas ao apoio social e à investigação sobre a doença. Mais tarde também para incentivar os cidadãos a votar nas eleições presidenciais de 2020. Como sempre, não conseguiu presenciar os acontecimentos de forma passiva. Enfim, pode dizer-se que Baez, aos 80 anos, não é uma velhinha, antes uma preciosidade. E se no início dos anos 60 a imprensa lhe deu o cognome de Queen of Folk, hoje considera-a National Treasure..Parabéns Joan Baez, pelos incríveis 80 anos de vida e mais de 60 de canções e acções!.[i] Muito do pouco que se escreveu em Portugal sobre Joan Baez, particularmente das suas gloriosas décadas iniciais, foi publicado pelos diversos jornais e revistas dedicados à música que existiram na década de 70, sendo hoje difícil de localizar. Este texto surgiu com a intensão de identificar e divulgar algum desse material, procurando também homenagear esta figura absolutamente excepcional que marcou o século XX e a contracultura, influenciou a sua geração e as seguintes, e inspirou inúmeros movimentos de resistência e de luta não violenta pelos direitos humanos..Agradecimentos: J. P. Castanheira. Madalena M. Santos. Blogues https://queimador-recortesretalhos.blogspot.com/ e https://mundodacancao.pt/ de Avelino Tavares. Outra informação fidedigna livremente acessível online..Flautista