Jesus não é só um mister. Ele é 'o' cara que todos admiram ou invejam

O sucesso do português no Flamengo não deixa ninguém indiferente no Brasil. Jesus é hoje o treinador que todos os rivais querem derrotar e que, ao mesmo tempo, todos deviam começar a imitar.
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Se há seis meses alguém me dissesse que ia estar colado à televisão, numa madrugada de quinta-feira, a festejar um golo no último minuto do Flamengo, provavelmente iria dizer-lhe que estava a delirar. Gosto de futebol. Gosto de muitos clubes, de vários países. No Brasil, à cabeça, porque sempre tive um fraquinho pelos underdogs, estão Botafogo e Fluminense, dois velhos rivais cariocas que sempre tentaram fugir da sombra do gigante Flamengo. Depois, Vasco da Gama e Portuguesa dos Desportos (clube que luta desesperadamente pela sobrevivência) devido às suas ligações históricas a Portugal. Seguem-se outros que me habituei a admirar, como o Corinthians e o Cruzeiro. Há ainda aqueles clubes com que simpatizo apenas por uma questão fonética como Guarani, Coritiba ou Avaí. Só depois, bem lá no fundo, vinha o Flamengo e apenas porque foi principalmente por lá que Zico, um dos mais talentosos futebolistas de sempre, espalhou a sua magia.

Só que, entretanto, tudo mudou desde que Jorge Jesus chegou à cidade maravilhosa. O simples facto de um português ir treinar um dos maiores clubes do Mundo (senão o maior) no que diz respeito à quantidade de adeptos já seria suficiente para prender a minha atenção. Mas este não era um treinador qualquer e a sua personalidade só apimentava esta história: falamos de Jesus, o chamado 'mestre da tática', campeão dos pontapés na gramática, um técnico que muitas vezes se deixou dominar pela emoção do momento, como quando andou a empurrar polícias em Guimarães ou quando, em pleno Dragão, se ajoelhou após o histórico golo de Kelvin sem pensar na carga simbólica que esse gesto, captado em imagem, teria na sua carreira e no ânimo do Benfica de então.

A torcida do Flamengo é gigante no apoio, mas também na cobrança. Jorge Jesus, que com a exceção de alguns meses na Arábia Saudita só trabalhara em Portugal, teria estofo para aguentar esta pressão?

O arranque não foi o melhor - foi no primeiro mês no Rio que sofreu as únicas duas derrotas até ao momento, com o Emelec para a Libertadores e o Bahia no Brasileirão - mas depois veio ao de cima algo inquestionável sobre Jesus: ele sabe de futebol. Começou por fortalecer a defesa com reforços experientes como Rafinha, Filipe Luís e Pablo Marí (este vindo diretamente da II divisão espanhola); recuperou jogadores que corriam o risco de ficar esquecidos como Arão ou Arrascaeta e deu ainda mais estatuto a atletas que viveram más experiências na Europa e que podiam ficar desacreditados como Gabigol, Bruno Henrique e, principalmente, o reforço Gerson, que se transformou num jogador tremendo sob o seu comando técnico.

Depois de alguma desconfiança inicial, até com críticas insultuosas por alguns que hoje mordem a própria língua, o português não demorou a fazer a diferença. O que se segue é tudo trabalho de treinador. O aproveitamento nos lances de bola parada tem sido decisivo, a intensidade com que toda a equipa participa na recuperação de bola é reconhecida por todos e a insistência num onze base para todas as competições, que só muda em função de lesões ou castigos, quebrou um tabu dos técnicos brasileiros que insistiam que essa gestão era impossível e que uma equipa deveria concentrar esforços em apenas uma competição.

É verdade que Jesus chegou focado na conquista do campeonato, mas rapidamente percebeu que o maior desejo dos adeptos era a Libertadores (a Liga dos Campeões da América do Sul). O português fez aquilo que é normal nos principais clubes da Europa, apontando baterias aos dois títulos. Ainda não ganhou nenhum, é certo, mas depois da vitória de domingo frente ao Grémio só um desastre histórico impediria a conquista do campeonato, enquanto que na Libertadores 'só' falta ganhar a final frente ao River Plate (o que, como se sabe pela Liga Europa, não tem sido fácil para Jesus). Contas feitas, no próximo fim-de-semana Jesus pode festejar dois títulos em dois dias: o primeiro sábado, em campo, na final da Libertadores; e depois o campeonato no domingo sem sequer precisar de jogar (basta que o Palmeiras não vença o Grémio).

Os excelentes resultados desta estratégia, os recordes que já bateu e os que ainda pode fazer cair e também a chapada de luva branca que foi a goleada por 5-0 ao Grémio de Renato Gaúcho (principal rosto dos ataques dos treinadores brasileiros a Jesus), abalaram os alicerces do país do futebol e lançaram um importante debate do Brasil: o veterano JJ, aos 65 anos, veio provar que o treinador brasileiro está ultrapassado? Essa discussão tem sido a mais interessante de seguir: ver o futebol canarinho a olhar para si próprio, a discutir o estatuto até aqui intocável dos técnicos da casa, tudo graças a um português da Amadora, que no seu próprio país foi muitas vezes alvo de chacota e desconfiança apesar dos bons trabalhos que foi somando no Belenenses, V. Guimarães, Sp. Braga, Sporting e, especialmente, no Benfica.

Jorge Jesus experimenta hoje, com justiça e mérito, um reconhecimento internacional que ainda não tinha tido. É bom para ele. E é bom para Portugal. Ver o Maracanã esgotado a cantar "Mister, Mister" é também uma alegria para um português que, como eu, fica acordado pela madrugada dentro, do outro lado do Atlântico, à espera de festejar o golo de Lincoln, aos 89 minutos, que derrotava precisamente o meu querido Botafogo. A alegria explica-se porque esta é uma história de superação e de trabalho bem feito. Jorge Jesus não é só o 'mister' do Flamengo, ele é também 'o' cara. Aquele que todos os rivais querem derrotar e que, ao mesmo tempo, todos deviam começar a imitar.

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