Um especial de comédia de Jerry Seinfeld é sempre um acontecimento, mas este é-o ainda mais: desde 1998 que não o víamos na televisão neste formato, a fazer stand-up comedy perante uma plateia, durante uma hora. E eis que, 22 anos depois do último "especial", o humorista norte-americano está de volta para nos provar, mais uma vez, que o melhor material para fazer humor é a vida tal como ela é. "É o que é", diria ele, gozando com uma das expressões mais comuns nos nossos dias..Não deve ter sido fácil continuar a fazer humor depois do sucesso da série Seinfeld (1989-1998), mas o humorista encontrou o seu lugar entre participações em programas de televisão, atuações em clubes, alguns espetáculos maiores e, nos últimos anos, a série Comedians in Cars Getting Coffee. O seu último especial para a televisão tinha sido I'm Telling You For the Last Time (1998). O programa Jerry Before Seinfeld, que a Netflix disponibilizou em 2017, era feito com material anterior à série de televisão..23 Hours to Kill ("23 horas para matar") é o nome do programa gravado há poucos meses, no Beacon Theatre, em Nova Iorque, e que se estreou na terça-feira na Netflix. Jerry Seinfeld tem agora 66 anos (feitos há pouco mais de uma semana) e muito menos cabelo do que nos tempos em que se sentava no Monk's Café com George, Elaine e Kramer. Está casado há 19 anos e tem três filhos. Mas nem por isso está enferrujado..O programa começa com Jerry Seinfeld a bordo de um helicóptero. O piloto avisa que o trânsito está congestionado. "Pode deixar-me aqui", responde o humorista, como se estivesse num táxi. E se assim o diz, melhor o faz: atira-se do helicóptero e cai no rio Hudson. Aparentemente o salto foi real - mais tarde, durante os créditos finais, vemo-lo a treinar. Numa entrevista ao The New York Times, Seinfeld explicou que todo o programa é um desafio à ideia que temos das pessoas mais velhas que aparecem na televisão: "Não queria ser uma dessas pessoas. Quem faz isso aos 65 anos? Ter 65 anos e ainda fazer uma coisa daquelas é um absurdo - mas essa é a minha assinatura. Quero continuar a fazer coisas ridículas até ao fim."."A ideia do helicóptero veio do título do programa, 23 Hours do Kill, que parece o título de um filme de James Bond, então decidi fazer uma abertura ao estilo James Bond", explicou. O salto foi gravado em agosto do ano passado, quando a água estava mais quente e apesar de ter sido um pouco assustador, Seinfeld admite que foi uma boa experiência..O estilo James Bond foi também adotado no vídeo de promoção, que foi gravado no início de março. Nessa altura ainda não tinha sido decretada a obrigatoriedade de manter o distanciamento social, mas os efeitos do vírus já se faziam sentir: "Ainda não estávamos a manter os dois metros de distância mas foi a primeira vez em que estive com um grupo de pessoas e ninguém trocou um aperto de mão. Ninguém tocou em ninguém e no final do dia o ambiente era de grande frieza. Eu nem gosto muito de apertos de mão. Mas no final fui-me embora com a sensação de que faltava alguma coisa.".Ninguém vai ficar com dores de barriga de tanto rir, no entanto algumas gargalhadas estão garantidas e é provável que o sorriso se mantenha no rosto durante uma hora inteira. O estilo de humor de Seinfeld mantém-se intacto: a mesma maneira de falar, os irresistíveis esgares, o humor físico e um olhar atento às pequenas coisas da vidinha de todos os dias..Sem querer estragar o prazer de quem ainda não viu o programa, podemos dizer que, numa primeira parte, dedicada ao "mundo exterior", ele passa por temas tão diversos como as saídas com os amigos, a comida dos restaurantes (os chiques e os de buffet), o vício dos telemóveis e ainda mais das mensagens escritas, ou os correios. E, numa segunda parte, centra-se no seu "pequeno mundo", como ele diz, no casamento, nos filhos, na vida de alguém que está na casa dos 60 e que por isso já não se preocupa em agradar aos outros e pode, finalmente, ser sincero..E, sem o poder antecipar, Seinfeld toca em alguns assuntos que têm tudo a ver com o confinamento em que todos vivemos atualmente. Afinal, o que faz as pessoas saírem de casa para irem ver um espetáculo de stand-up? E o que faz um humorista insistir nesta coisa, "tão fora do tempo", que é apresentar-se ao vivo, perante uma plateia? "Eu podia mandar-vos o texto todo por SMS", conclui. Poderia. Mas não seria bem a mesma coisa.