Cultura é a capacidade de descrever Jane Russell sem usar as mãos", disse-o Bob Hope, o comediante que com ela contracenou um par de vezes. O mesmo que, usando do à-vontade de amigo, um dia a apresentou assim diante de uma plateia: "The two and only Jane Russell." A piada ficou famosa. E eis a questão: por mais voltas que se dê, não é possível começar um texto sobre uma das atrizes mais desejadas dos anos 1940/50 sem referir os atributos que, assumidamente, lhe deram entrada direta na indústria americana. Hope referia-se, claro, ao destacado busto dela, numa silhueta curvilínea, que de resto dispensava apresentações. Não há outra maneira de pôr as coisas: foi essa generosidade das formas que prendeu a atenção do magnata Howard Hughes, responsável pelo seu lançamento em Hollywood com o filme A Terra dos Homens Perdidos (1943), promovido através de uma série de fotos publicitárias que mostravam Russell deitada no feno em poses sugestivas..Este western, cuja reputação se deve sobretudo ao escândalo de que foi alvo, marca o arranque do ciclo que a Cinemateca dedica agora à atriz, poucos dias depois da data do seu centenário (21 de junho). Nascida Ernestine Jane Geraldine Russell, em Bemidji, Minnesota, acabaria então por despertar o interesse (algo obsessivo) de Hughes ainda antes de completar 20 anos. O produtor, que andava ansiosamente à procura de uma jovem vistosa para protagonista de um triângulo amoroso envolvendo as lendas do velho oeste Billy the Kid e Doc Holliday, viu nela a sensualidade crua que o papel pedia. Chegou a desenhar-lhe um soutien especial para acentuar o peito, que ela mais tarde revelou não ter usado, e a expressão do decote valeu-lhe o ataque da censura, de que Hughes - já na qualidade dupla de produtor e realizador, após dispensar Howard Hawks - só se libertou ao fim de três anos. No tribunal, um juiz não se coibiu de dizer que os seios de Russell "pairavam sobre o filme como uma tempestade sobre a paisagem. Estavam por toda a parte.".Durante o tempo em que permaneceu à espera da estreia definitiva, a curiosidade trabalhada à volta de The Outlaw (título original) foi aguçando o apetite dos espectadores que em 1946 puderam, finalmente, trincar com os olhos o fruto proibido. É vê-la a surgir assanhada, de arma na mão, em combate corpo a corpo com Billy the Kid, deitada nas palhinhas... No cartaz, com esses seios pouco cobertos e bem realçados, Jane Russell tornou-se, na altura, a pinup por quem os soldados americanos da Segunda Guerra Mundial suspiravam, mesmo sem a terem visto em ação. E nem o repúdio da Igreja a fez pestanejar - a ela que era uma católica devota, e sempre o foi ao longo da vida..A verdade é que Russell esteve acima da manifesta categoria de atriz-objeto em que alguns a quiseram arrumar. Ela percebeu desde o primeiro momento a vulgaridade no cerne da indústria cinematográfica e, como raras vezes aconteceu, soube jogar o jogo de Hollywood sem se deixar afundar nele. De onde veio esse privilégio? De uma combinação de inteligência e talento, da justa ironia com que abordava a sua condição de sex symbol, e de um pragmatismo que saltava do ecrã: veja-se, por exemplo, a desenvoltura com que troca de meias de nylon sob o olhar disfarçado de um caixeiro-viajante, a bordo de um navio, em Macau. Fazia o que queria de qualquer situação..Depois do caso The Outlaw, foi a sua vez de brincar aos pistoleiros e refrescar os ambientes masculinos. Encarnou Calamity Jane, mito do velho oeste, em O Valentão das Dúzias (1948), ao lado do citado Bob Hop (ainda se juntaram em O Filho do Valentão); foi Belle Starr, personagem titular fora-da-lei de Montana Belle/Flor Bravia (1952), western muito apreciado da última fase da obra de Allan Dawn, que vai ter a sua primeira exibição na Cinemateca; antes deste cruzou-se com Groucho Marx e Frank Sinatra na comédia musical Casar Não Custa (1951), de Irving Cummings; andou de biquíni debaixo de água na aventura O Tesouro Submarino (1955), de John Sturges, outro inédito na sala da Barata Salgueiro; voltou ao triângulo amoroso em Duelo de Ambições (1955), de Raoul Walsh, desta feita acompanhada por Clark Gable e Robert Ryan; deu alma caliente a um raro Nicholas Ray, Sangue Cigano (1956), cujo título original, Hot Blood, nomeia o presente ciclo; e se só pudéssemos apontar uma obra-prima, a escolha seria Mulher Rebelde (1956), dirigida pela segunda vez por Walsh, que captou a plenitude da sua presença na grande tela através da personagem de Mamie Stover, uma prostituta a começar uma nova vida no contexto da Segunda Guerra. Toda ela é altivez, determinação e volúpia... Não admira que esta joia da coroa tenha sido mostrada em maio na Cinemateca, a abrir o apetite para o ciclo..Pelo meio desta variedade de títulos - apesar de a carreira da atriz não ter ido muito para além da década de 1950 - vamos encontrar dois film noir que provam o brilho do par Robert Mitchum/Jane Russell: Redenção (1951), de John Farrow, e Macau (1952), de Josef von Sternberg e Nicholas Ray (não creditado). O primeiro filme a fazer o timbre musical dela desencadear nele a sensação de estar perante "his kind of woman" (foi assim que se chamou no original), e o segundo a arrancar com uma jogada de sedução no navio que vai para Macau, incluindo a mencionada cena das meias de nylon. Atrás das câmaras, Mitchum e Russell tratavam-se como irmãos. No obituário que assinou para o The Guardian, o realizador Mark Cousins, ao relatar o momento em que a conheceu, dá conta da perceção dessa cumplicidade: "Ela era exatamente como Mitchum a descreveu: objetiva e com os pés assentes na terra.".Daí que ao lado Marilyn Monroe, na comédia que acabou por lhe dar a eternidade - Os Homens Preferem as Loiras (1953), de Howard Hawks -, o contraste entre estas showgirls funcione na perfeição. Ela é a morena ajuizada e prática que não perde dois minutos a pensar em diamantes, mas que adora pôr os olhos em bíceps: o seu número musical Ain"t There Anyone Here for Love?, em que se passeia pelo ginásio com uma equipa olímpica em treinos, é da ordem do primor simbólico. Como se ali se desse a autêntica demonstração da mulher no controlo da sua conotação sexual, a dominar um "erotismo divertido, raro em Hollywood", como escreveu o crítico David Thomson..Quando, no princípio dos anos 1990, veio a Portugal a convite do Festroia, passou também pela Cinemateca, e rezam as crónicas que a sua generosidade não era só uma interpretação física. Morreu em 2011, quase nonagenária..dnot@dn.pt