De Miyazaki a Fellini, há muito boas influências na nova animação da Pixar. Lembramo-nos da menina peixinho-dourado que quer ser humana em Ponyo à Beira-Mar, do realizador japonês, mas também de um dos primeiros filmes do mestre italiano, Os Inúteis, em que um grupo de amigos a viver numa província costeira passa os dias a sonhar com a grande cidade. Luca, de outro italiano, Enrico Casarosa, é uma mistura de fábula e retrato íntimo de uma amizade de verão que habita a nostalgia da vida no litoral. "Um litoral muito específico, tipo montanhas e mar, com imensos penhascos. Fez-me pensar na metáfora de alguém que nos empurra de um penhasco", diz Casarosa, espirituoso. É só uma metáfora. Quer dizer, mais ou menos (calma, vai fazer sentido)..YouTubeyoutubemYfJxlgR2jw.Esta é a história de dois amigos com personalidades diferentes mas o mesmo espírito de curiosidade. Um deles, Luca, com muito do próprio realizador: "Eu nasci em Génova, que é uma cidade pobre na Riviera. Era uma criança tímida, algo protegido pela minha família. E quando conheci o meu melhor amigo aos 11 anos, o mundo abriu-se. Ele era meio desordeiro...". No filme, o amigo chama-se Alberto e será uma lufada de ar fresco para o acanhado Luca. De resto, uma dupla que, através da sua aventura de verão, mostra "o quanto nos descobrimos nas amizades, ou o quanto as amizades nos ajudam a encontrar um pouco quem queremos ser." Não há dúvida de que foi um projeto muito pessoal para Casarosa, que assina aqui a primeira longa-metragem, depois de uma maravilhosa curta chamada La Luna (2011)..Mas não podemos seguir em frente sem esclarecer um detalhe: tal como a pequena Ponyo, Luca e Alberto não são apenas de carne e osso. Debaixo de água transformam-se em adoráveis monstros aquáticos que representam uma ameaça para a população de Portorosso (qualquer semelhança sonora da palavra com Porco Rosso, de Miyazaki, não é coincidência), uma pequena cidade fictícia da Riviera italiana que os faz sonhar com a emoção de andar de Vespa pelas ruelas com declive..Enquanto o momento não chega, vão treinando com uma peça de sucata e toda a utopia na cabeça. É aí que surge uma das expressões mágicas desta animação: silencio Bruno. Basicamente, um truque para Luca se livrar do medo na hora de tomar o risco. "Acho que é das coisas mais importantes que poderíamos aprender na vida. É a eliminação da dúvida. Eu livrei-me do meu Bruno há anos!", vangloria-se o jovem ator Jack Dylan Grazer, que dá voz a Alberto. No fundo, Bruno é aquela voz interior que quer demover-nos nos momentos em que devemos ser corajosos..Como reconhece Jacob Tremblay (puto revelação do filme Quarto, de Lenny Abrahanson), a voz por trás do rosto de Luca, é esse "grande amigo Alberto que o ajuda a sair de sua zona de conforto, e a ser capaz de explorar o mundo humano", mesmo que a mãe fique numa apoquentação. "Ela é uma mãe muito séria, não está para brincadeiras. E isso para mim é apenas amor. É uma protetora feroz", defende Maya Rudolph (rosto do Saturday Night Live), que a interpreta. "Deixar os nossos bebés correr para o mundo e explorá-lo é a coisa mais assustadora. E ainda assim sabemos que eles precisam." Tudo isto é muito genuíno e realista em Luca, dentro da fantasia calibrada..Uma das particularidades na conceção do filme é o facto de, em tempo de pandemia, a equipa ter trabalhado a partir de casa, com os atores a serem técnicos de si próprios e à procura dos melhores espaços para o isolamento do som. O caso mais divertido foi o de Jack Dylan Grazer, que para dar vida a Alberto teve de gravar dentro do guarda-roupa da mãe, com os braços a bater nos cabides: "Estar dentro do roupeiro da minha mãe durante um ano foi definitivamente um desafio para mim como ator, e como ser humano... Estava um forno lá dentro. E aposto que os meus vizinhos ficaram assustados com a quantidade de gritos que vinham da minha casa! (risos). Não sei o que é que eles pensavam. Mas foi um verão quente da covid..."..Por falar no bicho, Jacob Tremblay relembrou que, também por causa desta pandemia, "podemos todos identificarmo-nos com Luca no seu desejo de sair e andar de Vespa por Itália" (não seria estranho se, a qualquer momento, aparecesse Nanni Moretti na sua). Parte do que fascina na animação de Casarosa está nesse mergulho na cultura italiana, como se pudéssemos saborear, literalmente, uma forma de estar. Que o diga Jim Gaffigan, a voz do pai bonacheirão de Luca, que animou a conversa com a sua confissão gastronómica: "As cenas da pasta são muito emocionantes para mim. Isso e, claro, o gelato. Não sei como, mas é bastante melhor do que os gelados normais. Há como que a melhor versão de tudo!".Em Portorosso, essa província onde abunda a pasta e o gelato, Luca e Alberto travam amizade com Giulia, uma rapariga filha de pescador que vai abrir ainda mais o mundo do protagonista. "Ela é uma personagem muito forte. É determinada, trabalhadora, genuína, intensa, mas também estranha, peculiar, pateta", diz Emma Berman, outra atriz a estrear-se na Pixar e com uma energia em óbvia sintonia com o seu papel vocal. A alma italiana é visível na genica dela, no modo como leva adiante os seus objetivos e transmite a essência comunitária, a sensação do lugar..Estamos sempre a falar de um certo estado puro das coisas. "Acho que este filme capta aquela noção verdadeiramente romântica de o verão ser sobre a liberdade", reforça Gaffigan. Mesmo que isso corresponda à fase pré-romântica dos quase adolescentes do filme: "Aquele momento em que não pensamos ainda em namorados e namoradas, apenas nas amizades", palavras do realizador. Aliás, pelos desenhos, Luca pode parecer uma animação destinada às crianças, mas aquilo que se descobre nas formas doces e arredondadas é a justeza da diversão e de uma sensibilidade emocional que não deixa os adultos indiferentes..É como a música que vem do rádio e que Casarosa quis respeitar: "Quando se faz um filme de verão, acho que queremos ouvir o que toca no rádio. É algo sobre os anos 1950 em Itália... Queríamos levar o espectador para esse tempo. Por exemplo, com ópera. A minha mãe é uma grande apreciadora de ópera e música clássica, então cresci com isso em casa." Sem esquecer os cartazes de filmes que espreitam aqui e acolá nas paredes, de Férias em Roma, com Audrey Hepburn, a La Strada, com Giulietta Masina, passando pelo Monstro da Lagoa Negra. Uma sinceridade nostálgica com o cinema a dialogar em pano de fundo.