Gonçalo foi uma criança feliz a jogar à bola no bairro de Miratejo (Seixal), onde ainda vive com os pais e o irmão Rodrigo, o tagarela da família. Chateava toda a gente para jogar futebol e partiu molduras e jarras para desespero da mãe. Tímido, não gosta da exposição das redes sociais e tem os mesmos amigos desde os 5 anos... com quem passa horas a jogar PlayStation. Eis o retrato do mais jovem central a ser campeão nacional pelo Sporting..Foi campeão nacional aos 19 anos. Qual é e sensação?.Há momentos em que ainda não acredito. É um sonho de criança. Estes dias têm sido incríveis. Eu não esperava nada disto quando comecei a época... pelo menos não tão rápido e no meu primeiro ano de sénior. É uma sensação incrível. Quando entrei dentro do campo e me estreei parecia mesmo um sonho, não acreditava que estava a jogar pelo Sporting. Agora sou campeão e continuo com a mesma sensação..Quando se é campeão tão novo, que objetivos se colocam para a carreira que ainda está a começar?.Continuar a melhorar e a conquistar troféus. Ganhei dois (campeonato e Taça da Liga) na minha época de estreia e vou fazer os possíveis para ajudar a equipa a repetir. É uma sensação incrível. Festejar com os adeptos, com a equipa... não consigo explicar o que senti, apenas vivi o momento. Nasci em agosto de 2001. Tinha menos de um ano quando o Sporting foi campeão há 19 anos (2001-02) e não tinha noção de como ia ser quando fosse outra vez. Agora sou eu o campeão. É tudo inacreditável. Nunca tinha visto tanta gente junta como no cortejo até ao Marquês de Pombal. Os adeptos foram espetaculares..Qual é o próximo sonho/objetivo?.Ainda tenho vários. Um deles é chegar à seleção principal, acho que esse é o sonho de todas as crianças que jogam à bola. Jogar pela seleção do nosso país deve ser incrível e um orgulho sem igual. Todos os dias trabalho para isso..Ainda fez alguns jogos nos sub-23. Como foi quando foi chamado por Rúben Amorim à equipa principal?.Como sou um bocado tímido... foi complicado. No início demorei a habituar-me. Não tinha confiança com quase ninguém tirando o Nuno Mendes, o Tiago Tomás e o Eduardo Quaresma, mas encontrei um grupo incrível que me ajudou imenso. Estavam sempre a puxar por mim. O nível era outro, a exigência também, mas fui-me adaptando e as coisas foram melhorando..Essa timidez é algo que vem de criança?.Sim, sempre fui um miúdo que ficava no meu canto, nunca gostei de muita confusão. A bola era mesmo a única coisa que me fazia mexer. Quando ia a algum lado com os meus pais chateava toda a gente para jogar comigo, e quando chegava a casa ia logo atrás da bola para jogar. Parti muitas molduras, quadros, jarras... a minha mãe estava sempre a dar-me na cabeça para parar de jogar e eu parava uns minutos, depois pedia-lhe para voltar a jogar e ela deixava [risos]. E olha onde eu cheguei....Como foi a infância no bairro Miratejo, no Seixal?.Fui uma criança muito feliz. Sempre na rua a jogar à bola com os amigos. Tenho o mesmo grupo de amigos desde os cinco anos e ainda hoje convivemos. Damo-nos muito bem. Conheço toda a gente do bairro. Tem má fama, mas quem entra aqui percebe logo o bom ambiente e a boa gente que cá mora..Agora é a celebridade do bairro e o exemplo perfeito de quem cumpre os sonhos apesar da origem humilde....Sim. E não é só para as pessoas do meu bairro, julgo que para toda a gente. Ainda sou um miúdo, alguém que veio da formação do Sporting e chegou à equipa principal e foi campeão nacional..Tem um irmão com necessidades especiais....Sim, o Rodrigo, mas para mim ele é normal. É a alegria da família, estamos sempre a rir, ele é muito engraçado e de vez em quando sai-se com cada piada... É um tagarela, quando estamos à mesa ele é o único que fala, não deixa ninguém falar. É uma pessoa incrível, temos uma ligação muito boa. Quando eu estou chateado ele vem ter comigo e faz-me rir. Quando jogo ele vai para a rua, fala e pergunta a toda a gente -"viste o meu irmão, aquele passe...".E o Gonçalo, ainda consegue andar incógnito na rua?.Não, já não consigo ir passear o cão à rua sem se juntar uma multidão. Vou a qualquer lado pedem-me autógrafos, selfies, camisolas. Lido bem com isso até certo ponto. Não dá para dar camisolas a toda a gente e dizer não é o mais difícil. Já estive no papel de adepto e sei como é. Eles viram-me crescer a agora sou jogador do Sporting e campeão nacional. À medida que vou crescendo como jogador preciso de mais tranquilidade e sei que um dia vou ter de sair do bairro....O que lhe rouba tempo para além do futebol?.Jogar PlayStation. Vou treinar, venho para casa e sou capaz de ficar a jogar até ir dormir. Tenho um grupo de 11 amigos - um deles é o capitão Coates - e jogamos todos os dias. É um escape. Não sou pessoa de redes sociais, se fosse possível nem tinha Instagram, não gosto nada da exposição pública ou de me exibir em fotografias..É um produto da chamada formação do Sporting. Quando chegou à Academia com 11 anos conseguia vislumbrar um futuro no futebol?.Tinha quatro anos quando fui para a escolinha do Chalana. Depois fui para o Almada, um clube onde aprendi muita coisa. Estou no Sporting graças a eles também. Eu sempre fui sportinguista. Acho que já nasci sportinguista. O meu pai levava-me ao estádio, íamos sempre mais cedo, tínhamos o ritual de ir comer à rulotes e conviver com outros adeptos. Adorava aquele ambiente de festa, os adeptos a cantar, toda a gente equipada. Lá dentro vibrava com tudo, gritava todos os golos, um corte ou uma defesa do guarda-redes. Eram momentos muito bons e por isso quando apareceu a oportunidade de ir para o Sporting foi fácil vestir a camisola. A cada ano que passava só pensava que queria ficar mais um ano no clube do meu coração. Nunca quis sair do Sporting nem jogar noutro clube....E durante esse processo teve dúvidas sobre se ia ser jogador profissional?.Houve alguns momentos de dúvida, quando não jogava e metia coisas na cabeça, mas foi assim que percebi que mentalmente era forte e estava preparado para ser jogador. Tinha um sonho na cabeça e nada me iria impedir de o concretizar. E quando me estreei pela equipa principal... entrei dentro de campo e parecia mesmo um sonho, não acreditava que estava a jogar pelo Sporting. Assim que consegui liguei aos meus pais e aos amigos. Nos maus momentos tento automotivar-me com boas lembranças. Não sou muito de desabafar, guardo tudo para mim... essa é a minha fórmula. Sou feliz a jogar futebol. Eu não sei o que era de mim se não fosse o futebol. Se me perguntassem o que eu faria se não fosse jogador, não saberia o que responder..Sempre jogou a defesa central? Tinha algum ídolo?.Comecei a central, mas também joguei a médio defensivo e ainda fiz duas épocas a lateral esquerdo até voltar a ser central. Nunca tive um ídolo, mas tenho algumas referências. Gosto de alguns centrais esquerdinos que gostam de sair a jogar, como o Mathieu. Cheguei a treinar com ele, ajudou-me muito. Ser um central esquerdino e sair a jogar pode ajudar-me a fazer carreira porque não há muitos com essas características. O futebol europeu procura muito esse tipo de centrais e se eu for bom....Pelo menos para o Bruno Fernandes é. Em 2019, quando ainda ninguém conhecia o Gonçalo Inácio, ele elogiou-o e chamou a atenção para si....[Risos] Foi muito bom receber um elogio de um jogador como o Bruno Fernandes. Eu não o conhecia, mas via-o a ver os nossos treinos e jogos muitas vezes, acho que foi assim que ele me descobriu..Twittertwitter1392424969951399937.O treinador Rúben Amorim também o elogiou várias vezes....É bom para um jovem jogador receber elogios de um treinador e de forma tão descontraída. Dá-me confiança e isso é muito bom. Os elogios são sempre bons, mas só acontecem quando são merecidos e estamos bem, por isso prefiro concentrar-me mais no meu trabalho. Ele é que me pode ajudar nos maus momentos como quando fui expulso no jogo com o Sp. Braga..O que sentiu quando viu o cartão vermelho?.Raiva, frustração... nem sem explicar. Eu não estava em mim, fiquei mesmo muito chateado..O golo em Guimarães, que valeu três pontos, compensou isso de alguma forma?.Sim. Foi um golo muito importante porque valeu três pontos. Ainda houve aquele momento de espera porque o árbitro marcou fora de jogo, mas fiquei muito feliz quando foi validado. De vez em quando marco golos nos treinos. O jogo de cabeça é um dos aspetos a melhorar. Temos de estar sempre a evoluir. Evoluí muito em termos técnicos, táticos e físicos quando subi ao plantel principal. O Sporting está bem servido de centrais e ajudam-me muito..Tem contrato até 2025. Emigrar é um objetivo?.Não para já. Por enquanto só penso no Sporting, é onde estou e onde quero ficar. Para mim é um clube diferente, o clube do meu coração..Existe alguma pressão para a conquista do bicampeonato?.O nosso foco é jogo a jogo. Agora é descansar, ir de férias e depois é pensar em ganhar a Supertaça..A época do Sporting foi quase perfeita e com alguns recordes. Aquela derrota com o Benfica é a espinha encravada na garganta?.Sim, é uma espinha encravada....O Sporting foi campeão, o Pedro Gonçalves o melhor marcador ... e o melhor jogador?.Para mim o Coates. Também podia dizer o Pedro Gonçalves, mas o Coates fez uma época fantástica. Esteve imperial em muitos jogos. O Coates sempre foi o mesmo, sempre o admirei e foi um dos que me ajudaram imenso..isaura.almeida@dn.pt