Durante dois dias dezenas de antigos chefes de Estado e de governo de todo o mundo estiveram na Fundação Calouste Gulbenkian a discutir o tema educação para sociedades partilhadas, numa organização do Club de Madrid. Membro desta organização criada por Mikhail Gorbachov, a ex-governante eslovaca Iveta Radicová, de 61 anos, falou sobre o tema da conferência, mas também da atualidade política do seu país e da questão da igualdade de género..O assassínio do jornalista Jan Kuciak e da namorada, Martina Kusnirova, em fevereiro, levou a uma enorme crise política na Eslováquia, que culminou com a demissão do primeiro-ministro e do ministro do Interior. A crise política passou?.Estamos numa situação relativamente estável, mas não posso dizer que estamos estáveis. Houve um aumento no apoio ao partido neonazi, que já chegou ao Parlamento. A sociedade está muito polarizada. Antes, quem perdia as eleições regressava à sua vida. Agora temos vencedores e inimigos. E inimigos sem hipóteses reais de participar na sociedade, o que aumenta a pressão para mudar quem está no poder. Há uma tensão e luta permanentes. Ninguém ficaria surpreendido se tivéssemos eleições antecipadas..E quanto à questão de fundo relacionada com o crime: a máfia tomou a Eslováquia de assalto?.Era sobre isso que Jan Kuciak estava a escrever: a máfia em ligação ao gabinete do primeiro-ministro [Robert Fico]. Foi por isso que decidiu sair e manter a coligação. Manteve o governo e só ele e o ministro do Interior saíram. Mantém o poder nas suas mãos, nada mudou. Mas houve uma verdadeira ligação entre o gabinete do primeiro-ministro, a área da segurança do governo e a máfia. Isto é muito forte e foi por isso que as pessoas foram para as ruas. Alguns [dos mafiosos] permanecem na Eslováquia, outros voltaram para Itália e para a Albânia. A luta tem de ser feita em cooperação com os outros países, de outra forma não podemos vencer esta guerra..Enquanto primeira-ministra sentiu pressões de grupos criminosos?.Oh-oh-oh! Todos os dias!.Todos os dias?.Sem dúvida. Lutei durante um ano pela mudança do procurador-geral. Um ano! Quiseram matar-me. Foi uma parte interessante da minha vida. E senti pressão de oligarcas, pressão dos chamados empreendedores, que só o são porque usam dinheiros públicos. Ser empreendedor não é uma grande arte quando se depende de dinheiros públicos..O que é isto de educação para sociedades partilhadas? O que podemos tirar deste encontro?.Compreendo a sua pergunta. Muitas pessoas questionam porque é que estamos a organizar conferências, que impacto têm, se não seria melhor usar este dinheiro para ajudar alguém. As conferências são importantes porque a única forma de chegarmos à verdade é através do diálogo. Em segundo, para definir quem ajudar e como, porque se pode canalizar grandes quantidades de dinheiro em erros terríveis. A Europa continua sob a pressão dos refugiados. Continuamos a falar e a falar para encontrar uma forma de lidar com o assunto. Tanto dinheiro enviado para África e para muitos outros países e o problema só se agravou. Portanto, algo está profundamente errado. É altura de identificar o que está errado e como mudar. Num campo de refugiados da Jordânia há uma geração que nasceu ali. Para aquelas pessoas a vida delas é um campo. A única atividade que conhecem é estarem numa fila de manhã para o pão e à tarde para a manteiga. Estamos a criar uma geração totalmente dependente de ajuda humanitária, sem saber o que significa a vida. Se compreendermos quais são as boas práticas e pararmos com os erros é o passo para estabelecermos uma base de conhecimento, tal como a existente no Club de Madrid, pela política de diálogo. Pode funcionar esta ligação de antigos governantes e chefes de Estado com académicos e políticos em funções..Nasceu num país comunista, no qual estudou Sociologia, e já em democracia prosseguiu estudos no estrangeiro. Havia aspetos positivos do sistema educativo? Como vê a evolução da educação de um regime para o outro?.Ah! Depende do ponto de vista. Se uma pessoa estiver disposta para uma forma única de interpretação no seu quotidiano, sem olhar para os custos pagos pelas vidas dos outros, então pode encontrar aspetos positivos. Mas só se fecharmos os nossos olhos, e com limitações tremendas. Vocês sabem alguma coisa de ditaduras. Bastava alguém dizer que em agosto de 1968 houve uma ocupação e não uma ajuda de irmãos para as pessoas perderem o emprego, perderem tudo, bem como os filhos perdiam. Era um regime que matava e prendia os seus opositores, era um regime que não fazia qualquer esforço para dar uma educação justa ou completa. Havia uma ideologia transversal a todas as ciências: o marxismo-leninismo. Uma série de pessoas que trabalhavam nas áreas das artes e das ciências foram proscritas de todo o sistema de educação. Como se pode avaliar um sistema fechado de forma positiva? Também se pode dizer que a Alemanha nazi foi boa? É que, sem dúvida, houve um aumento na qualidade de vida das pessoas em comparação com os anos anteriores. Na Eslováquia houve um aumento na qualidade de vida porque houve uma industrialização do tipo soviético, fomos um satélite da indústria militar da URSS. Mas, em comparação com a Europa livre, a separação é tão grande, que 30 anos depois da transição ainda há grandes diferenças..E quanto à educação de hoje na Eslováquia?.Oh, é uma questão complicada. Acho que não é só na Eslováquia. As sociedades contemporâneas têm um novo desafio porque há um novo poder: big data, internet. Se no século passado a ética e a educação eram transmitidas na escola e na família, isso hoje já não é verdade. O papel essencial é desempenhado pela internet e pelas redes sociais. O que sabemos sobre a educação, na verdade? Eu sei alguma coisa sobre a educação formal, mas sabemos que não há correlação entre o padrão da educação e as atitudes das pessoas. Já não há. Porque há essas novas variáveis, as redes sociais e a internet. O que as crianças aprendiam quando tinham 7 anos aprendem hoje aos 11. Isso é errado? Não sei, é diferente. Quando as televisões começaram a influenciar a opinião pública e o modo de vida houve uma regulação, têm de respeitar as leis e os direitos humanos. Hoje existe uma coisa que influencia milhares de milhões de pessoas sem qualquer regulação e os seus donos pedem ajuda, "por favor, ajudem-nos, precisamos de um guia moral". Está totalmente fora de controlo. Porque para sermos educados temos de ser corteses. Estamos rodeados de discursos de ódio, conspirações, ataques pessoais, manipulações, e pergunto, quem é que está a fazer estes jogos, quem são os verdadeiros responsáveis? Há uma polarização das sociedades, entre quem está no meu grupo e todos os outros, que são meus inimigos. Há uma verdadeira mudança na nossa sociedade que cria espaço para o extremismo. Vemo-lo na cena política. A educação está mal? Claro que está, com estes tristes resultados, porque no mínimo já não somos educados para sermos cordiais..Foi a primeira mulher professora catedrática de Sociologia no seu país e a primeira governante. A igualdade de género ainda está longe? E quanto aos países vizinhos?.Falando como primeira e única mulher nesses dois cargos até aos dias de hoje: a minha avó não tinha direitos humanos. A minha mãe teve direito a votar e eu fui eleita primeira-ministra. Penso que foi rápido! Foi uma mudança rápida, em cem anos, em comparação com os milhares de anos em que era um lugar normalmente ocupado por um homem. A Checoslováquia, em 1918, foi um dos primeiros países no mundo a dar o direito constitucional de voto às mulheres. Ainda assim, as professoras tinham de ser celibatárias. É assim, passo a passo. A mudança feita em cem anos esteve ligada às duas guerras mundiais, no meu país, com dois regimes totalitários, fascismo e comunismo. A nossa democracia ainda é um bebé, ainda temos de arranjar soluções para problemas de fundo. E, quanto a isso, não estamos sós na Europa. A corrupção é o maior falhanço dos regimes democráticos liberais e as pessoas veem isso como um falhanço da própria democracia. E, por isso, nalguns países estamos numa encruzilhada, como na Hungria ou na Polónia: resolvemos ou pelo menos estancamos a corrupção e com isso a desconfiança em relação à política e às instituições, ou as pessoas preferem regimes iliberais..E nesses regimes as mulheres tendem a ser menorizadas..Sim. Daí que tenha mencionado as democracias liberais como o lugar em que de facto há mais abertura para a participação das mulheres..A Polónia e a Hungria fazem parte, como a República Checa e a Eslováquia, do grupo de Visegrado. Crê que uma mudança nas políticas de educação desses países traria uma abertura nas sociedades?.Sem dúvida. Sem conhecimento estamos perdidos. É a nossa base. E de momento estamos a viver num ataque à informação. Quanto mais informação uma pessoa tem menos informada está. Porque tem de haver uma forma subjetiva de fazer a seleção, temos de encontrar a chave para esta montanha de informação. E o grande apoio é o conhecimento, para termos capacidade de análise para distinguir entre factos e informação errada..Considera-se feminista?.Algumas palavras não são usadas de forma correta e eu tenho muito cuidado em usá-las. Sufragista era quem lutava pelo direito ao voto. Mas se levarmos a palavra à definição extrema não sou sufragista. Não faço parte do movimento feminista no sentido de ir contra a lei. Sou uma política que funda a sua ação nas negociações. Não estou de acordo com as quotas. Primeiro tem de haver um clima favorável na sociedade para que a participação das mulheres seja maior, tal como os grupos minoritários e marginalizados. Se uma mulher está no Parlamento graças às quotas, de cada vez que abre a boca as reações são que só está lá graças às quotas e não porque tem valor. Isso não é bom, além de não haver uma verdadeira competição. Não sei que etiqueta podem atribuir-me. Sou uma liberal típica, prefiro a tolerância, os direitos individuais e os direitos humanos, que incluem os direitos das mulheres..Não é uma luta contra o homem?.Não, nunca, não. O comunismo atirava os problemas para a família. Homem e mulher deviam estar empregados e tinham de resolver a organização doméstica, incluindo a dos filhos. A divisão de trabalho fez que mais liberdade para as mulheres fosse paga com menos liberdade para os homens. Isto não é solução.