Italianos esgotam suplemento de leite infantil, convencidos que protege do vírus

Nas redes sociais e por alguns médicos, a lactoferrina tem sido promovida como uma proteína que protege contra a covid-19, apesar de não existirem evidências científicas. Em Itália, as farmácias deparam-se com uma enorme procura por este produto.
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Os farmacêuticos italianos estão a enfrentar um grande aumento na procura de um produto de nicho geralmente comercializado como um estimulador do sistema imunológico para bebés, semanas depois de um vídeo viral ter sugerido que poderia proteger contra o coronavírus.

A lactoferrina, uma proteína encontrada em altas concentrações no leite materno, foi submetida a um pequeno ensaio clínico em Roma e os especialistas divulgaram resultados positivos, mas disseram que são necessárias mais investigações.

Não houve confirmação de que a droga é eficaz contra o novo coronavírus, mas farmácias no centro de Roma disseram à AFP que estão a lidar com um aumento dramático na procura, num país com uma das maiores taxas de mortalidade da Europa.

"Não sabemos nada sobre este produto, Também estamos às escuras nisto", disse um farmacêutico à AFP sob condição de anonimato, confirmando que a procura estava a aumentar. "Quando as pessoas estão com medo, acreditam em qualquer coisa."

A compra de lactoferrina seguiu uma reportagem local, em julho, em que Elena Campione, professora de dermatologia da Universidade Tor Vergata em Roma, fez afirmações contundentes sobre a sua investigação.

"Decidimos tratar pacientes com covid-19, no estágio inicial da doença. Foi incrível, mas 10 dias após o início da terapia, os sintomas desapareceram e o teste de PCR (para coronavírus) deu negativo", disse.

O relatório tornou-se viral nas redes sociais, com banners adicionados por um utilizador em que dizia coisas do género: "como nos vão convencer agora de que todos precisamos ser vacinados?"

O vídeo "morreu" após uma popularidade inicial, mas ressurgiu agora quando os casos de covid-19 começaram a aumentar, ultrapassando 25.000 por dia no final de outubro.

Embora a substância seja vendida na maioria das vezes como suplemento para bebés, também é comercializada por uma empresa como "CovAlt" e vendida numa linha de produtos que inclui gel para as mãos e outros itens associados ao vírus.

O impacto nas redes sociais ajuda as vendas deste tipo de produtos, mas alguns especialistas não ficam impressionados.

"Estou a receber muitos pedidos sobre isso, e respondo coletivamente a todos", escreveu no Twitter Roberto Burioni, professor de virologia em Milão que dirige um site chamado Medical Facts: "Não há evidência clínica que indique a utilidade da lactoferrina na prevenção ou tratamento de covid-19."

As autoridades de saúde espanholas concordam com esta avaliação. Recentemente, pediram a um médico que parasse de fazer afirmações semelhantes sobre produtos de lactoferrina e agiram disciplinarmente por realizar estudos não autorizados.

O médico Gabriel Serrano está agora a enfrentar sanções da autoridade regional de saúde de Valência pelas suas atividades.

No entanto, a cobertura positiva da lactoferrina continuou em grande parte na Itália, com um artigo acrítico no jornal Repubblica, na quinta-feira, proclamando na sua manchete: "A lactoferrina protege contra o vírus".

O jornal publicou na sexta-feira outro artigo com a notícia de que a investigação científica era inconclusiva.

Enquanto isso, uma grande farmácia no centro de Roma disse à AFP que agora estão a vender até 100 caixas do suplemento por semana, em comparação com apenas duas ou três em um mês em tempos normais.

"Não pergunto se as pessoas estão a comprar para a covid. Está a chegar a temporada de gripe, talvez algumas pessoas estejam a comprar por isso", disse um funcionário da farmácia Igea San Gallicano em Roma. "Mas se alguém vier e comprar a granel, você sabe que está a comprar por causa da covid,", acrescentou.

Outro farmacêutico, diante de caixas de "CovAlt" e outras pílulas, disse à AFP que o seu pequeno ponto de venda de família viu um aumento na procura. Houve mesmo algumas pessoas que possuíam receitas dos seus médicos.

"Costumavam vir e pedir conselhos sobre o que poderiam fazer para talvez impulsionar seu sistema imunológico contra covid. Agora vêm e pedem esses produtos de lactoferrina pelo nome", contou.

A farmacêutica disse que viu o produto voar das prateleiras de farmácias, descrevendo a procura por produtos não comprovados como "como uma psicose".

A AFP contactou o Laboratorio della Farmacia, que fabrica a linha CovAlt, e o ministério da saúde, mas não obteve resposta.

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