Uma escocesa em Lisboa."Os escoceses estão conscientes dos benefícios da União Europeia, não só em termos económicos, mas sociais e culturais. E estão muito menos preocupados do que os ingleses com a imigração, o que explica a grande diferença de resultado no referendo de 2016", diz-me Kirstyn Inglis. Conversamos em Lisboa, na Faculdade de Direito, onde esta escocesa veio dar uma aula aberta a convite do professor Nuno Cunha Rodrigues, que me alertou. Tema? "O Brexit visto da Escócia", pois claro. Conto que no dia seguinte, pura coincidência, vou de férias à Escócia e pergunto se, tendo em conta que 62% dos escoceses votaram para o Reino Unido permanecer na UE, vou encontrar um país de gente revoltada com o Brexit. "Há de tudo. Os escoceses são pragmáticos. Há quem se sinta escocês, outros dizem-se escoceses e britânicos, eu por exemplo sou escocesa, britânica e europeia. E há quem não queira fazer parte do Reino Unido nem da UE", responde a atual professora da Universidade de São Paulo. Nem a propósito, tento perceber se o Brexit significa que os escoceses poderão em breve procurar um segundo referendo sobre a independência, como o de 2014, que acabou por resultar na manutenção do país no Reino Unido. "O Partido Nacionalista Escocês em 2014 conseguiu o primeiro referendo sobre a independência e tinha um claro mandato. Mas depois das eleições de 2017 o SNP perdeu 21 dos 54 assentos que tinha no Parlamento britânico e foi um sinal de que precisa de reconsiderar a insistência no programa independentista. Muita gente não quer hoje a independência, sobretudo por razões económicas", explica Kirstyn Inglis. "Boa viagem!", deseja-me. "E não perca as Highlands.".Saudades da rainha Maria.Percorrer a Royal Mille, rua que sobe de Holyroodhouse, antigo palácio dos reis da Escócia, até ao Castelo de Edimburgo, é tanto uma lição de história como uma exposição do imaginário local. Não faltam as estátuas a exibir os vultos que a pequena nação hoje com cinco milhões de habitantes deu. David Hume, o filósofo do século XVIII que inspirou a Constituição dos Estados Unidos, é um deles. Também não falta o calmeirão de kilt, a saia tradicional de xadrez, a tocar gaita-de-foles..Emblemáticas mesmo para uma Escócia que nos últimos cinco anos passou por dois referendos que vão definir o seu futuro são as Joias da Coroa. Guardadas hoje no castelo, chegaram a estar desaparecidas, mas Sir Walter Scott reencontrou-as no século XIX. Entre elas está a coroa usada por Maria, Rainha dos Escoceses, que acabou decapitada. O seu filho, Jaime VI da Escócia e I de Inglaterra, tornou-se em 1603 o primeiro monarca dos dois países, se bem que a formalização da união só tenha acontecido um século depois (1707), pode ler-se em Scotland, de Fitzroy Maclean, bom livro de introdução à história de um país tão resistente que os romanos há dois mil anos desistiram de conquistar, erguendo a Muralha de Adriano como fronteira norte do Império. Primeira piada sobre o Brexit, ouvida num daqueles pubs onde se come peixe frito com batatas fritas: "No tempo dos romanos, a Inglaterra não teve hipótese nenhuma de fazer o Brexit. Só a Escócia.".Um "cu" em Portobello.Grátis como é regra nos museus do Reino Unido, o Museu Nacional da Escócia tem de tudo, desde fósseis até múmias egípcias, só com a pintura a ficar de fora, pois existe perto uma Galeria Nacional de Arte onde até um Velásquez há. Impressionante é o Lewis Chessmen, peças de xadrez descobertas numa ilha escocesa mas feitas por escandinavos, lembrando que os vikings andaram por estas bandas. Salto até ao litoral, para uma visita ao Brittania, o antigo iate de Isabel II, que trouxe a rainha a Lisboa em 1957. É a atração turística mais visitada da Escócia. À minha frente um cortejo de fãs da monarca, fascinados pelo quarto onde dormia a rainha (em cama separada da do príncipe Filipe) ou pela sala onde a família real passava os serões a bordo, entretida com jogos de tabuleiro e apreciando bons whiskies escoceses. A questão da independência não significa uma república, já me tinham alertado. "A rainha vem de uma linhagem escocesa", disse-me a professora Inglis. Isabel II é tão rainha de Inglaterra como rainha da Escócia e quando veio em 1999 à inauguração do Parlamento escocês a coroa junto a si era a mesma da de Maria do século XVI. Com um vasto areal, Portobello é no verão o mais popular subúrbio de Edimburgo. Agora vale só pelo passeio à beira-mar e um chá com brioches. E é quando vou apanhar o autocarro de regresso ao hotel que vejo a primeira manifestação pública de hostilidade ao Brexit, com uma frase em inglês que pode ser traduzida com alguma liberdade por "o Brexit é um cu e conservadores e trabalhistas são as duas nádegas". Tem mais piada em inglês, veja a fotografia..Tragam o kilt e as armas.Colin, motorista e guia, é um escocês de barba ruiva. De kilt, promete mostrar-nos as Highlands e no caminho até ao Loch Ness contar alguns dos episódios da história escocesa. Brilha quando, com imensa piada, conta como estava a ver Braveheart e no momento da batalha entre escoceses e ingleses começa aos gritos para a mulher, uma espanhola, lhe trazer o kilt. Depois, quando o herói escocês Wallace é executado, pede a Luzia para lhe arranjar armas porque tem de ir dar cabo de algum sacana. Ri-se, pois tem muitos amigos ingleses e o filme de Mel Gibson conta uma guerra com 700 anos. E a seguir vem a piada sobre o Brexit: aqueles gritos irritaram tanto Luzia que o ameaçou com um Brexit ao contrário. Passamos pelo Ben Nevis, a mais alta montanha do Reino Unido, ainda com neve abundante no pico, e chegamos a Fort Augustus, no extremo sul do Loch Ness. Passeio de barco e duas explicações: a costa norte e a sul são diferentes porque chegaram a fazer parte de continentes diferentes até haver uma espécie de Brexit ao contrário (nova piada seca) naquela parte da Escócia e quem quiser ver o famoso monstro que aponte a câmara ao vidro onde está um boneco desenhado. Em vídeo funciona mesmo, pois o ondular do barco faz parecer Nessie em movimento. A paisagem é inóspita e a pureza da água dos rios escoceses é um dos segredos do whisky. Isso pelo menos não mudará depois de 31 de outubro..Segunda cidade do Império.Glasgow, riquíssima pelo seu papel no comércio marítimo, reivindicava no século XIX ser a segunda cidade do Império Britânico. E a sua burguesia desenvolveu um espírito filantrópico que tem como grande testemunha o Museu Kelvingrove. Um cristo pintado por Salvador Dali é hoje a estrela, a recordar que a religiosidade aqui é forte, com uma maioria protestante mas uma minoria católica muito mais significativa do que em Inglaterra. Forte também é a tradição de emigração dos escoceses. Um dia, o historiador Niall Ferguson desafiou-me a ver quantos escoceses deram nas vistas nos tempos coloniais. Talvez os 38% de escoceses que votaram pelo Brexit também sofram dessa nostalgia imperial que explica a saída da UE..Finalmente as 12 estrelas.Foi graças a Tony Blair, trabalhista escocês que chegou a primeiro-ministro britânico, que desde 1999 a Escócia voltou a ter Parlamento em Edimburgo e a decidir muitas políticas, tirando áreas como a Diplomacia ou a Defesa, reservadas a Westminster. À venda ali está um livro de outro escocês, Gordon Brown, que sucedeu a Blair. Defende que o Reino Unido deve liderar a Europa, não abandoná-la. Recordo-me da conversa com Kirtsyn Inglis e de como tudo poderia ter sido diferente se em 2010 Brown tivesse derrotado o conservador David Cameron. Fiz para o DN a cobertura dessas eleições e era óbvio que Brown, há dois anos no poder, sofria o desgaste de dez anos de governação Blair. Foi o inglês Cameron, nem sequer eurocético, a convocar o referendo de 2016. Já se demitiu, mas será muito por sua culpa que um dia destes à frente do Parlamento (Pàrlamaid na h-Alba, em gaélico) deixará de ondular ao lado da Cruz de Santo André e da Union Jack a bandeira estrelada da UE. Aliás, foi uma das poucas que vi.