A canção Sodade, tornada famosa pela cantora cabo-verdiana Cesária Évora, foi o tema de uma das sessões públicas das Correntes d"Escritas. Nada melhor do que que pegar em canções para subordinar os debates entre escritores no Cine-Teatro Garrett e Sodade evocava também as mais de vinte edições anteriores em que se reuniram na Póvoa gente vinda de todas as escritas de expressão portuguesa e espanhola e que no ano passado estiveram impedidos de celebrar a literatura. Um ano depois, a saudade matou-se com uma semana inteiramente dedicada à cultura e essa canção serviu de pretexto a referências, como a ausência de Luis Sepúlveda, vítima da pandemia e que todos os anos marcava presença na Póvoa de Varzim..Também a invasão da Ucrânia esteve de início bastante presente nas conversas fora das sessões, no entanto a partir da mesa Sodade essa situação mudou radicalmente. Tanto assim que um dia depois, na última mesa e na sessão de encerramento, a guerra esteve sempre na boca de quem subiu ao palco. Na sua intervenção, João Gobern disse "não contem comigo para cenários de guerra", Onésimo Teotónio Almeida referiu o "tempo depressivo da invasão da Ucrânia" e Ondjaki assinalou um duplo "equívoco": a ausência de Sepúlveda e a guerra, lembrando as palavras de um seu tio sobre esta ser "um grande erro". A fechar a edição, foi a vez da ministra da Cultura, Graça Fonseca, insistir no drama dos acontecimentos a leste, criticar o que aí se passa e contrapor que as 23 edições ininterruptas das Correntes mostravam como existe "lugar para ouvir os outros"..Se a partir da mesa Sodade, a invasão da Ucrânia subiu ao palco, mesmo que as intervenções tentassem não se focar demasiado nessa realidade, nem as máscaras anti-covid deixassem ver as expressões facilmente, as palavras dos participantes dessa sessão ganharam um significado mais atual. Foi o caso do escritor galego Xosé Ramón Pena que lembrou anteriores conflitos em que os seus conterrâneos participaram, destacando nessa diáspora os que combateram em Cuba e foram enterrados nos cemitérios de Havana..Afonso Cruz fez questão de reafirmar "as saudades destes encontros presenciais" e revelar que andou à procura de significados para este sentimento desde quando tinha 16 anos e procurava em Teixeira de Pascoaes uma resposta literária. Contudo, disse, é na Bíblia que se encontra a referência mais antiga e logo à primeira letra daquele texto, um "c" que significa casa e que lhe permitiu dizer que somos "todos saudosos e desejamos voltar a um sítio qualquer onde fomos felizes", que o problema da saudade está em achar-se "que o passado é melhor do que o futuro e de muitas vezes a saudade impedir-nos de ver o local onde estamos e de tudo o que de bom aí existe". Para o autor, o que resulta no regresso dessa viagem é uma "melancolia". Daí até à questão da guerra foi um passo curto, ao considerar os maus resultados da "miopia histórica", designadamente os recentes..CitaçãocitacaoA guerra foi, gradualmente, tomando conta das intervenções dos escritores nas Correntes d'Escritas e no encerramento de forma bastante crítica na voz da ministra da Cultura.José Luís Peixoto também não esqueceu os acontecimentos atuais e lembrou a canção Russians de Sting em que um dos versos diz que "Espero que os russos também amam os seus filhos", nem a pandemia ao contar a história de um amigo, Joaquim Ramos, que ao regressar a Macau ficou em quarentena mais de vinte dias. Como ainda faltavam quatro para desconfinar, Peixoto convidou o auditório a enviar-lhe duas palavras de apoio, que gravou num vídeo no seu telemóvel, ditas por toda a audiência. Uma espécie de atitude própria de festivais de música, considerou, que teve o apoio entusiástico do público, que disse num coro o que o escritor pedira: "Força Joaquim". Mas o tema era Sodade e recordou o tempo em que viveu em Cabo Verde e conheceu Cesária, após o que fez questão de desmistificar o "cliché de a palavra saudade só existir em português" com o próprio título crioulo da canção, e também com uma expressão checa. Na língua, não há territórios exclusivos", concluiu..Se para o autor galego saudade não é coisa ignorada no seu lugar, já para o escritor espanhol Manuel Vilas é o oposto: "Saudade é um mistério porque não existe um significado igual em espanhol", acrescentando que é "um sentimento nacional intransferível e também a realização de uma utopia coletiva". Vilas garante que andou à procura de todos os vocábulos semelhantes que pudesse encontrar para a palavra saudade e o que achou só está perto, dando como exemplos as criações de autores espanhóis como Antonio Machado, Lorca e Unamuno, extrapolando para alguns filmes de Almodôvar e indo até aos Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez..A fechar a sessão Sodade esteve a autora angolana Yara Monteiro que recordou como o passado do seu avô, repartido entre as histórias de Angola colonial e de Portugal, lhe provocava uma divisão só possível caracterizar como saudade. Contou que "quis o destino que o passado viajasse connosco, que a saudade viajasse connosco. O avô guardava um arquivo de saudade com relevância histórica. Parte da minha infância foi passada a brincar no escritório da saudade, rodeada de saudades velhas. Enquanto escrevo estas palavras dá-me saudade. Guardemos porque poderão fazer jeito. Algumas destas saudades inspiraram-me para escrever, quem sabe quiçá, para desconstruir a saudade". Tendo o avô os pés em Portugal e a cabeça em Angola, a saudade materializava-se em objetos, daí que, disse, "morreu a olhar o grande mapa de Angola". Tal como antes José Luís Peixoto surpreendera a audiência com a gravação de um vídeo durante a sua intervenção, não faltou um momento de espanto quando a poeta engoliu dois pedaços de papel. Justificou esse devorar de um inventário de saudades do avô assim: "Se houvesse saudades e se as pudesse comer..." Não terminou a intervenção sem evocar indiretamente a invasão da Ucrânia ao referir-se à guerra em Angola e às tentativas de se assinarem acordos de paz..Silenciados os autores com o fim da sessão, uma espetadora não resistiu a tentar dar também uma definição para saudade ao valorizar a sensação de voltar às Correntes de forma presencial e de querer "partilhar essa saudade"..Foram mais de 30 os livros lançados nesta edição do Correntes d"Escritas: Um Dia Lusíada de António Carlos Cortez, Onde Morrem os Barcos de José Pedro Leite, o Labirinto da Inteligência de João Nuno Teixeira, Grande Turismo de João Pedro Vala, Escama, Rímel, Carapaça com texto de Manuel Halpern e ilustrações de Alexandra Ramires, Os Beijos de Manuel Vilas, A Night at the Hopper de Pedro Teixeira Neves, A Última Curva do Caminho de Manuel Jorge Marmelo, O Crespos de Adolfo Luxúria Canibal, A Batalha do Paraíso Triste de Xosé Ramón Pena, Diário de Link de Francisco Duarte Mangas, entre outros..Também Álvaro Laborinho Lúcio apresentou o seu mais recente livro, As Sombras de Um Azinheira, o quarto romance após uma vida na Justiça e na política. O ex-juiz e ex-ministro tem-se dedicado à ficção e neste romance pretende questionar os tempos efémeros que vivemos e registar o que mudou na história do país devido ao 25 de Abril..O livro sustenta-se em dois partos: o de uma criança e o da liberdade em 1974. É intencional?.Completamente, são dois partos que acontecem no mesmo dia, o da Revolução e o da Catarina. Queria dizer que esses partos matam, de alguma maneira, o que está para trás. Um, mata o Estado Novo, o outro mata a mãe. A tentativa ficcional que faço é simbólica, pretendendo levar os leitores a chegarem às suas conclusões..Existe muita história dos tempos de antes da Revolução. Os leitores mais novos vão lê-lo?.Tenho esperança de que agarrem o livro a partir da protagonista e ao identificarem as suas inquietações com as dela acabem por ir atrás no tempo para ver como as coisas aconteciam. Espero ter definido um contraste claro, sem o fazer do ponto de vista político apenas, e de mostrar como é possível existir ainda uma realidade em construção e outra já do passado. Pode dizer-se que a personagem principal é Portugal, que é representada no antes do 25 de Abril pelo João Aurélio e no depois pela Catarina. É uma visão que poderia ser redutora se se ficasse só por aí, mas essas duas figuras são intermédias entre o autor e as restantes personagens e obedecem aos critérios da verosimilhança..Neste livro está a história do último século português?.É uma história dos últimos 90 anos: 45 antes do 25 de Abril e outros tantos após a Revolução. Para ser mais correto, é principalmente uma história interrogativa, porque não faz uma crítica do passado e do presente do ponto de vista de um juízo de valor através de cada uma das partes, antes levanta questões que são importantes colocar agora que nos aproximamos dos 50 anos do 25 de Abril, porque é fundamental não perdermos a imensa narrativa do passado e podermos projetar o que foi o tempo posterior. É o pensamento do autor que se reflete no romance, de modo a estabelecer um marco a partir do qual possamos reunir-nos todos e assumir posições, mesmo que divergentes, evitando um conflito e procurando um consenso de forma a revigorar o espírito do 25 de Abril..Agora que celebramos meio século sobre a data inexiste um pensamento uno e coletivo sobre a Revolução?.Não há pensamento coletivo mas partilhado, por isso digo que este livro não é de crítica e muito menos de censura. Precisamos de projetar para as novas questões aquilo que são os valores do 25 de Abril em vez de continuar a reconduzi-las para a época da Revolução. Existem muitas situações novas no presente que têm a ver com a condição humana, do ambiente, da inteligência artificial, das biotecnologias, entre outras, que são matérias que se prendem diretamente com o cerne da democracia e devem ser debatidas. Primeiro, penso, devemos situar-nos nas perguntas e em seguida e em conjunto procurar soluções..O romance confronta-nos com a memória que vai desde a Primavera Marcelista, a Cunhal, Soares e Cavaco. Esses nomes continuam presentes na memória ou já foram praticamente apagados?.Apagados não, pois quem tem alguma relação com esses nomes não os deixa e esquecer, nem precisa de militância para que tal não aconteça. Fazem parte de um repositório de memória de todos nós e o que questiono é a sua repercussão em quem não teve convivência com eles e até que ponto irão desaparecendo progressivamente. Não vale a pena confundir a memória com a história e é preciso ver que não estamos a falar de um ensaio e sim de um romance puro e duro; com as questões típicas dos livros, com a emoção de ler uma história que tem como pano de fundo a projeção para o futuro do 25 de Abril, designadamente agora que nos aproximamos do cinquentenário e ser esta também uma forma de o celebrar..Ao longo do livro vai referindo muito a ausência de consciência crítica e a constante do efémero. Preocupa-o?.Sim, um dos grandes problemas que devemos discutir é o valor do tempo. Substituímos ponderação, equilíbrio e o bom senso, sendo que este último muitas vezes não é senão o espaço onde se legitima um conservadorismo repetitivo. É a partir da reflexão que fazemos germinar valores e os tornamos razoavelmente comunitários. Se tudo é instantâneo, o que desaparece primeiro são os valores. Este poder sobre o tempo como valor permite a elaboração de pensamento e de desenvolvimento da opinião crítica..Este romance parece ter tido outro tempo de preparação devido ao seu objetivo além de contar a história dos últimos 90 anos. foi mais difícil construí-lo?.Curiosamente não, porque na perspetiva de autor já há mais maturidade na escrita e não como nas primeiras vezes de algum atrevimento, mais formatado, às vezes até mais vulgar na maneira de abordar certos temas. Neste já estou mais solto e também pude conceber o livro durante mais tempo, arquitetando-o como queria e como sabia, e como desejava ser capaz de libertar as personagens. Isso reflete-se, pois enquanto os três romances anteriores eram mais intimistas, este é mais virado para o exterior e em contacto com a realidade..Usa a homossexualidade para definir os novos tempos?.Não é um romance com qualquer tipo de proselitismo a favor disto ou daquilo, a homossexualidade surgiu e a única dificuldade está na própria dificuldade da personagem em lidar com a situação. No entanto, a partir do momento em que ela própria se identifica, passa pelo livro com a maior das naturalidades. Essa é a visão que entendo que marca a distinção entre ser livre ou não o ser, bem como é a marca de um tempo de antes e de pós 25 de Abril. Antes, nunca aconteceria assim..Álvaro Laborinho Lúcio.Editora Quetzal.264 páginas