Cheira a Óscares aqui. Os Espíritos de Inisherin, estreado no Festival de Veneza, tem vivido um conto de fadas nesta temporada de prémios. Depois da vitória de Colin Farrell em Veneza, por todo o lado onde passou tem arrecadado prémios, tendo a vitória nos Golden Globes reafirmado a sua natural tendência de front runner ao lado de Os Fabelmans e Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, mesmo estando catalogado como comédia, o que nesta coisa de prémios não é propriamente um valor acrescentado. Mas Martin McDonagh, depois de Três Cartazes à Beira da Estrada, vencedor de dois Óscares, tornou-se persona respeitável em Hollywood. O cineasta britânico tem a respeitabilidade de vir do teatro onde é um dramaturgo de sucesso. Um homem do texto que coloca sempre no seu cinema situações de humor ácido..Em The Banshees of Inisherin, todo ele passado numa ilha irlandesa remota há cem anos, aborda uma história de dois amigos de pub que entram em clivagem. Um deles, o mais velho, decide deixar de gostar do outro. Um corte de relações que causa uma mágoa que se propaga por toda a vila. É bem provável que para McDonagh este ponto de partida tenha a apetência de uma anedota irlandesa supostamente com fardo filosófico. Em boa verdade, há depois o misticismo das lendas folclóricas da bagagem celta e nem faltam bruxas e outras espiritualidades..No não menos mítico Excelcior no Lido de Veneza, hotel onde Robert De Niro e Elizabeth McGovern eram filmados por Sergio Leone em Era uma Vez na América, Martin McDonagh não se cansa de tentar convencer a imprensa internacional que quis fazer um filme com os amigos. Os amigos em questão são Colin Farrell e Brendan Gleeson, porventura as duas maiores estrelas de cinema irlandesas. Farrell faltou a este encontro com a imprensa mas Brendan está ao seu lado e garantem que foi um caso de amizade a génese deste filme ou a vontade de se voltarem a reunir após o culto deixado pela comédia de crime Em Bruges, onde Farrell e Gleeson tinham também uma relação, neste caso entre tiros e desenganos na cidade belga. Brendan e Martin parecem realmente um par: completam as frases um do outro, abraçam-se e passam o tempo todo na galhofa.."Sinto que fizemos um filme com valores universais. A comicidade desta história chega a todos. A gentileza e o amor das personagens traduzem-se bem...", começa por dizer o realizador londrino especializado em temas irlandeses, realçando tratar-se, mesmo assim, de um filme triste. Brendan Gleeson discorda: "Acho que é o filme mais cómico de sempre. Claro que é negro e triste também, mas tem sempre um lado divertido e o espectador consegue gerir ambos registos. A primeira vez que o vi não consegui falar durante uns minutos após sair da sala... Tem um lado de catarse. Para mim é um feito artístico! Uma obra de cinema que está para além das palavras. E depois há a escrita única do Martin que é muito rica e em que em cada palavra estão contidas diversas subtilezas e inflexões. Claro que certas coisas serão perdidas com as legendas..."..Em setembro, quando o filme estreava em Veneza, já havia um certo rumor de prémios. Nessa altura, não se sabia se Brendan Gleeson iria ser considerado para ator principal ou secundário. Depois do prémio para Farrell, a Disney decidiu que Gleeson concorreria para secundário, sobretudo para não atrapalhar a campanha de Colin. Decisão acertada: Gleeson está nomeado ao Óscar e Colin Farrell é o grande favorito. Cereja no topo do bolo: Martin pode vencer três estatuetas: melhor filme, argumento e realização, ele que já venceu em 2004 com a curta Six Shooter, precisamente o filme que o fez conhecer Brendan, o mesmo ator que dirigiu na sua primeira longa, o tal Em Bruges. E a conversa resvala para esse filme de 2008, numa altura em que Martin não tinha tanto poder na indústria e terá lutado pelo controlo criativo do filme. Hoje tudo mudou: "Eu preciso mesmo do final cut, de decidir tudo num filme, sobretudo porque faço filmes diferentes. Agora, o pessoal do poder já confia em mim, deixam-me em paz, não tenho que levar com notas no guião para mudar isto ou aquilo. Seja como for, é uma questão de atitude: será que um cineasta deve achar que as opiniões dos executivos do estúdio são interessantes? Os que não acham fazem o mesmo tipo de filmes como este", refere o realizador-argumentista que jura que o mais importante no seu estilo é respeitar as pausas e as vírgulas que estão no argumento.."Fazer um filme sobre um tipo que decide não gostar do seu melhor amigo parece uma ideia absurda para um filme de Hollywood. Porém, mesmo com este ponto de partida, o truque é tratar tudo dentro do maior espaço de lógica e autenticidade possível. Há quem diga que eu jogo com o absurdo, mas não estou nada seguro disso. E, confesso, absurdo é uma palavra que me faz espécie porque estou a lidar com a verdade...", insiste Martin. E quando se volta a falar das probabilidades de uma campanha para a Academia, é ele também que meio a brincar diz: "Estamos muito ansiosos e preparados! Não, a sério: se acontecer, que aconteça! O que me deixou feliz foi a reação da estreia aqui no Festival de Veneza. Deixou-me muito feliz, estamos felizes com o resultado deste filme". Brendan finge estar comovido quando ouve essas palavras e desata a rir convulsivamente, dizendo: "O Martin é muito bom com os atores, até o burro e o cão estão muito bem, não é? Isso é um elogio para mim. Por acaso, tecnicamente não foi assim tão difícil contracenar com os animais..."..A nomeada.Talvez seja o grande trunfo de Os Espíritos de Inisherin - Kerry Condon, a presença feminina de uma história de homens. A atriz irlandesa agora nomeada ao Óscar de melhor atriz secundária já em setembro dizia ao DN que amaria chegar a este ponto. Depois de pequenos papéis em Este é o Meu Lugar e Três Cartazes à Beira da Estrada, tem agora a sua hora..A primeira vez que Martin McDonagh lhe falou do projeto mencionou que Os Espíritos de Inisherin era uma comédia de automutilação? Não, ele até me enviou o argumento há muito tempo. Depois, foi-me enviando diferentes versões... No começo era muito diferente, havia uma outra linha de história. Por fim, ficou apenas a parte dos dois amigos que se zangam, ou seja, ficou mais simples. Mas devo dizer que estou muito feliz por entrar no filme. O Martin antes enviava-me os seus argumentos e não havia papel para mim. Secretamente, ficava furiosa mas feliz por ele: os seus argumentos são sempre sensacionais. Voltar a trabalhar com ele foi muito bom. Em Três Cartazes à Beira da Estrada quis mesmo aproveitar pois poderia ser a última vez. A primeira vez que trabalhei com ele foi numa peça, o Lonesome West, tinha 18 anos! Esta é a quinta vez! E é sempre um grande momento na minha carreira. Mas as peças dele são fabulosas e este filme parece-se muito com a sua ideia de teatro. Contudo, Os Espíritos de Inisherin é a prova de que o Martin é também um cineasta espantoso e é raro os grandes escritores também serem grandes cineastas. A espiritualidade da natureza não estava no guião mas depois de ver o filme fiquei espantada..A sua personagem vive numa solidão profunda... Amei explorar essa lado da solidão... São muitos os que sofrem deste problema da solidão. A cena em que ela chora na cama agrada-me muito. Sinto que é importante em arte mostrar momentos de privacidade, momentos que façam com que as pessoas suspirem e se identifiquem... Cenas que possam servir como processo de cura. Gosto muito dessa personagem porque tem uma inteligência enorme e não sente necessidade de mostrar isso às pessoas. A sua confiança é muito silenciosa... Não precisa de ser aplaudida..E depois há todo esse contexto dos aspetos culturais irlandeses... Sim, o Martin explora muito a questão musical. Há uma cena com o Colin Farrell bêbado no bar e a questão musical ganha um peso incrível, todo aquele ritmo... Além do mais, explora-se ainda esse humor disfuncional que vem da bebida e que é tão irlandês. Esta história tem 100 anos e é óbvio que progredimos mas também é muito irlandês vermos esta mulher a fazer tudo em casa. Típico! As mulheres a governarem a casa e os homens no pub. Todas as mulheres irlandesas são fortes e duras. Por isso, gostei tanto de interpretar esta mulher cuja raiva é toda suprimida. Uma mulher que nunca se queixa mas que também fala de Mozart....A sua carreira parece estar a ganhar uma visibilidade nova. Foi esta a carreira com a qual sonhou há duas décadas quando começou? Sinto que tenho muita sorte, não me tem faltado trabalho, seja nos palcos, na televisão ou no cinema. Tenho também trabalhado com cineastas enormes, como são os casos de Paolo Sorrentino, Michael Mann, David Fincher e tantos outros sem ser famosa! Consegui ter uma boa vida, a ganhar bom dinheiro, sem perder o anonimato. A indústria conhece-me mas o público não e isso é ótimo. Vejo como o Colin Farrell é abordado e olhado e não sei se conseguiria suportar essa atenção. Quero poder continuar a ter os meus erros em privado. É um luxo ter o melhor dos dois mundos..Mas tudo pode mudar depois deste filme, imagine que até é nomeada ao Óscar [como foi mesmo]... Mas isso seria espantoso!! Claro que quero isso... Sei que se for a certos restaurantes haverá quem me vai pedir para tirar uma selfie e nós mulheres temos uma vantagem: não vemos homens aos berros quando reconhecem uma mulher famosa. Os homens atraentes famosos é diferente: têm mesmo de apanhar com os gritos histéricos das raparigas... As atrizes têm dificuldade em ter namorados, para os atores é ao contrário: as mulheres fazem fila. Aqui em Veneza estava a ver as mulheres a gritar quando o Harry Styles apareceu no tapete vermelho. Enfim, é uma coisa hormonal das adolescentes, é a herança da beatlemania? Os homens não gritam assim... Quem vir o Elvis, de Baz Luhrman, vê mulheres a desmaiar e isso diz tudo!.Também era assim na sua adolescência? Amava Leonardo DiCaprio!! Para além de ser lindo de morrer, era também um ator imenso: o que ele consegue em A Vida deste Rapaz!! Logo a seguir vinha Gilbert Grape, enfim, o começo da sua carreira foi incrível. Tenho mais ou menos a sua idade e no começo ele inspirou-me muito. Outras interpretações foram também cruciais para acreditar nisto de ser atriz: a Helen Mirren na série Prime Suspect, a Emily Watson no Ondas de Paixão, o River Phoenix e a Lili Taylor em A Última Aposta, sobretudo por me mostrarem que era importante não ter que estar atraente para ser boa atriz..Uma das séries mais conhecidas que fez foi Rome. O que a televisão lhe trouxe como atriz? Foi através da televisão que consegui comprar duas casas, pagam bem. Rome foi um baptismo de fogo pois na altura em muito nova e havia muitas cenas de sexo. Aprendi a lição que era importante separar as coisas. Sabe, sempre quis ir a todos os formatos. Acho muito snob aqueles atores que dizem que não querem fazer televisão! Quis experimentar tudo! Mas lembro-me nessa altura ter levado com o carimbo de "atriz de televisão"! Agora é ao contrário: estar numa série dá prestígio..dnot@dn.pt