Implodir o padrão dos descobrimentos

Está em consulta pública o primeiro programa nacional de combate ao racismo. Antes tarde que nunca, sem dúvida. Mas ao lê-lo salta à vista o cuidado com não afrontar aqueles que, como o primeiro-ministro, dizem recusar "uma visão flageladora da nossa história". Ora assim fica difícil combater o racismo.
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Não há um português que não tenha sido educado para achar que aquilo a que se chama "a época dos descobrimentos" e o decorrente império "onde o sol nunca se punha" foram o irrepetível momento de glória da história do país, ao qual se vai buscar perpétua validação e inspiração. Desconstruir esta ideia, ou associar-lhe outras perspetivas, é um projeto de psicanálise coletiva que não se faz, nunca se faria, de um dia para o outro.

Aquilo que teria necessariamente de levar tempo, porém, nunca foi iniciado como projeto político. Nunca houve nos decisores da democracia a determinação de enfrentar o mito - pelo contrário. Nem quando a ONU lançou a década dos afrodescendentes, em 2015, Portugal acordou da sua negação - aliás, pelo contrário, nesse mesmo ano o relatório periódico do país ao Comité da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial, apresentado em setembro (no fim do governo Passos), recusava a necessidade de medidas específicas para os afrodescendentes: "Não há medidas especiais ou discriminações positivas relacionadas com os afrodescendentes. As pessoas de ascendência africana beneficiam, como qualquer outra pessoa em Portugal, de medidas e políticas destinadas a combater o racismo e a promover a integração."

Sete anos depois, a reboque do Plano de Ação da UE contra o Racismo 2020-2025, Portugal apresenta enfim o seu primeiro Programa Nacional de Combate ao Racismo. Em consulta pública até maio, o documento prevê várias medidas importantes e que se saúdam.

Mas salta à vista - pelo menos saltou à minha - que na secção "educação e cultura" se evita abordar claramente a questão do ensino da história e da sua narrativa glorificadora e mistificadora. O que ali se lê é: "Diversificar o ensino e os currículos, designadamente, através da inclusão de conteúdos, imagens e recursos sobre diversidade e presença histórica dos grupos discriminados, e processos de discriminação e racismo, nos currículos manuais escolares de disciplinas obrigatórias, como a disciplina de cidadania e desenvolvimento, no âmbito de atividades curriculares e extracurriculares." E a seguir: "Disponibilizar recursos pedagógicos que promovam uma educação para a igualdade e a não discriminação, incluindo o relato de factos históricos e os seus impactos no racismo da contemporaneidade." Uma pessoa lê isto e fica na dúvida sobre se existirá uma disciplina chamada "história", não é?

Mas depois lembra-se que há pouco mais de um mês o PM se disse preocupado com a "visão autoflageladora da nossa história", "as guerras culturais em torno do racismo e da memória histórica" e o risco delas para a "identidade nacional" - para não falar do facto de ainda em 2017 o presidente ter visitado o ex-entreposto esclavagista de Gorée e afirmado que Portugal foi o primeiro país a abolir a escravatura (o comprovativo clássico de que "nós até fomos os bons").

O problema está longe de se ater aos políticos, porém: em 1997 o júri da Fundação para a Ciência e Tecnologia recusou, alegando que o racismo não é um problema em Portugal, financiamento a um projeto da investigadora Marta Araújo, que se propunha analisar o discurso dos manuais escolares de história sobre a questão racial; em 2001 voltaram a dizer-lhe que "olhar tão para trás na história não é uma forma de trazer progresso." Em 2007 lá conseguiu financiamento, para concluir aquilo que qualquer um de nós concluirá se ler os ditos manuais: que, incrivelmente, não fazem, no que diz respeito à relação com os povos dominados no contexto imperial e colonial, grande diferença do que era a narrativa do Estado Novo, elidindo uma parte considerável daquilo que foi a realidade histórica.

Não se trata pois, como tantos têm repetido a propósito da discussão que enfim se iniciou, de "apagar a nossa história" ou de a "reescrever", mas de trazer para o conhecimento geral aquilo que a investigação histórica da academia há muito estabeleceu, e que é sistematicamente elidido no discurso "oficial", incluindo o da educação dos níveis básico e secundário.

O programa de história do básico e secundário não mexe desde 2002 - ou seja há praticamente 20 anos. A responsabilidade pelos programas, como pela aprovação dos manuais, é das associações de professores - neste caso os de história; os governos limitam-se a homologar. É pois importante saber como a associação dos professores de história tenciona pôr em prática o plano de combate ao racismo na sua disciplina; como pensam contribuir para desfazer estereótipos e complexificar a visão romantizada dos "descobrimentos" e daquilo que se lhes seguiu, exorcizando a ideia verdadeiramente insultuosa de que o colonialismo português "não foi racista".

É evidente que muito tempo se perdeu e que estamos muito atrasados, mas não há outro remédio senão o de ter paciência e começar do princípio - porque é aqui, no princípio, que estamos. E no princípio de tudo está implodir o padrão de descobrimentos que na escola se inculca aos alunos. Para que possam, sem mitomanias, construir a sua identidade. Flagelo é termos chegado à terceira década do século XXI com tanto por fazer.

NOTA:

Cometi erros neste texto e fui para tal alertada pela Associação dos Professores de História, por via de um email do seu presidente, Miguel Monteiro de Barros, pelo que me apresso a corrigir, agradecendo a retificação.

Escrevi: O programa de história do básico e secundário não mexe desde 2002 - ou seja há praticamente 20 anos. A responsabilidade pelos programas, como pela aprovação dos manuais, é das associações de professores - neste caso os de história; os governos limitam-se a homologar. É pois importante saber como a Associação dos Professores de História tenciona pôr em prática o plano de combate ao racismo na sua disciplina; como pensam contribuir para desfazer estereótipos e complexificar a visão romantizada dos "descobrimentos" e daquilo que se lhes seguiu, exorcizando a ideia verdadeiramente insultuosa de que o colonialismo português "não foi racista".

A APH retifica: "O documento curricular de referência já não são os programas, mas as Aprendizagens Essenciais (AE), elaboradas pela Associação de Professores de História, após consulta pública, e homologadas pela DGE (Direção Geral da Educação). O processo de elaboração das AE iniciou-se em 2016, tendo estas sido homologadas em 2018. Esta foi a primeira vez que a Associação de Professores de História foi parceira no processo de elaboração de um documento curricular basilar, nunca antes participou na elaboração de qualquer programa disciplinar, apenas foi consultora."

Parte do erro deveu-se ao facto de me ter baseado na informação que tinha recolhido em 2017 para um artigo sobre os programas e manuais, não me tendo dado conta de que entretanto (em 2018) tinha havido alterações.

Mais uma vez baseando-me nessas informações recolhidas em 2017, afirmei também no artigo de opinião que os manuais escolares eram aprovados (querendo dizer certificados) pela APH. Esta nega: "A Associação de Professores de História, tal como acontece com os programas, não possui quaisquer competências para "aprovar manuais". As editoras editam os manuais, sendo estes certificados, atualmente, por centros de certificação existentes em diversas universidades e institutos politécnicos, designados pela tutela. A Associação de Professores de História não tem nada a dizer sobre o assunto."

Peço desculpa à APH e aos leitores pelas incorreções.

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