Imperadores, índios e trans - cabe tudo na rentrée

O verão ainda está a capitalizar o sucesso avassalador de <em>Barbie </em>e <em>Oppenheimer </em>mas já é tempo de se antecipar a rentrée. Uma temporada com blockbusters e parte do melhor de Cannes.
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Entre a revolução lucrativa do fenómeno Barbenheimer e as ameaças da greve dos argumentistas e dos atores, olhamos para a próxima temporada com otimismo moderado. Vamos ter bom cinema e uma possibilidade de uma continuação de retoma do grande público. Uma rentrée onde há nomes de luxo como Scorsese, Kaurismaki, Moretti, Ridley Scott e estrelas como DiCaprio, De Niro, Phoenix ou Chalamet.

Uma visita à memória do grande pensador Umberto Eco. Será uma das surpresas deste regresso ao cinema pós-férias. Um documentário que estabelece a forma como Eco se relacionava com os seus mais de 30 mil livros numa biblioteca que é uma fonte de prazer.

Ferrario faz um filme tão lúdico como estimulante, capaz de nos atirar para o turbilhão do pensamento do filósofo.

Sai-se deste filme a pensar que podemos ter ficado um pouco, apenas um pouco, menos ignorantes.

O cinema de Miguel Gomes deixou lastro? Há quem diga que sim. Índia, o filme de estreia de Telmo Churro, está a ser apontado como uma comédia com o humor enfant terrible de Gomes, mas talvez seja apenas sugestão pelos nomes envolvidos: Churro é o habitual montador dos seus filmes e Mariana Ricardo, a argumentista, foi cúmplice de escrita em Tabu e As Mil e Uma Noites. Estamos na presença de uma comédia sobre uma Lisboa turistificada que une pai, filho e neto numa sucessão de desventuras com pendor satírico. O cinema português à procura de um sorriso inteligente e a resistir à barbárie pimba.

Passou despercebido na Berlinale de 2022, aquela que apenas foi virtual, o percurso do Unabomber, homem que se tornou um célebre terrorista interno americano.

Sharlto Copley dá corpo ao "monstro" e, longe de o humanizar, consegue conferir-lhe uma credibilidade que arrepia. Afinal, os monstros de hoje podem ser homens normais, sem tiques de psicopata. Um filme com escusa de sujeitos narrativos, sem complacências comerciais. Uma experiência extrema.

Passou na última Berlinale e não granjeou elogios, nem tão pouco aplausos para a grande dama Helen Mirren, aqui cheia de prostéticos no rosto para dar vida a Golda Meir, a primeira-ministra dura de Israel durante a guerra do Yom Kippur, uma das épocas mais desafiantes da História de Isreal. O filme lida sobretudo com a pressão sobre esta Dama de Ferro durante um conflito no qual se debatia com uma doença fatal. Biopic hagiográfico, Golda deverá ser trucidado pela crítica. Será que em 2023 ainda haverá lugar para filmes históricos meramente ilustrativos?

A cultura woke não poderá passar sem este objeto tão provocador como didático sobre identidade, sobre a conexão que a cultura queer pode ter com estas ordens políticas. E se alguém se insinuasse como a personagem Orlando, de Virginia Woolf? Mas Preciado convoca muitos Orlandos. Todos têm tempo de antena para contar a sua experiência numa mistura entre o experimental e a ficção. Será trendy demais? Sim, mas quem quer saber disso?

Candidato sério a melhor do ano, o novo Moretti é um baralhar de cartas sobre aquilo que se pensava que seria o seu cinema após os últimos filmes. Desta vez, temos Moretti a ser uma versão de Moretti como cineasta numa Roma onde o cinema atual quer uma violência estilizada e aquilo que as plataformas designam como momentos "wtf". Uma obra talvez demasiado sábia sobre o cinema de hoje, a ética de ser artista e a verdadeira identidade de Moretti. Tudo isto com um humor transbordante que dá vontade de ir às lágrimas...

Antes de chegar ao streaming, Portugal é um dos países que vai poder ver o novo Scorsese nos grandes ecrãs, adaptação do livro de David Graan que conta a história verdadeira de um massacre da comunidade dos índios Osage em 1920. Estamos na presença de um dos títulos mais mediáticos da temporada dos prémios, sobretudo após um notório consenso crítico na edição do Festival de Cannes 2023.

Trata-se de uma lição de História americana que mais do que um rebate de consciência assume-se como objeto político. Leonardo DiCaprio seguro para ser nomeado para melhor ator na corrida aos Óscares.

Não está no circuito dos festivais desta temporada por duas razões: supostamente a Warner quer ainda sonhar com a promoção dos atores se a greve terminar e porque os efeitos visuais ainda estão no forno. Uma aposta complexa que só teve a luz verde porque o primeiro filme acabou por ter resultados de bilheteira acima do razoável. Espera-se o mesmo cirandar de ambiências e atmosferas à estética Villeneuve e um aparato de produção com escala grande, mas era bom haver mais nervo e um sentido épico mais forte do que no primeiro.

No elenco, saúda-se a inclusão de Florence Pugh, Austin Butler e Léa Seydoux neste conto de um rapaz a ficar homem e a vingar a morte dos pais.

Um filme do cineasta veterano mais respeitado dos EUA é sempre um acontecimento. Este último foi exibido fora-de-competição em Veneza 2022 e tem tido reações de ódio e amor. Mas nem tanto à terra nem tanto ao mar. Master Gardener é o terceiro tomo na sua trilogia de homens solitários confrontados com a redenção, depois de No Coração da Escuridão e de The Card Counter. Agora o seu "taxi driver" é um chefe-jardineiro a contas com um segredo tenebroso. Não está ao nível dos outros dois contos mas há aquela mistura à Schrader que resulta sempre: elegância e brutalidade. O cineasta falou com o DN em Marraquexe e na altura da estreia a conversa será publicada...

Um blockbuster de respeito para este outono. Aposta forte do estúdio Lion"s Gate para regressar aos jogos de fome, neste caso para conhecermos a juventude de Snow, o presidente malévolo. Uma prequela em tom vintage mas com uma escala de ação como mandam os grandes espetáculos visuais. Sente-se que Francis Lawrence não vai querer mudar muito as coisas desta franquia. Com Rachel Zegler, a revelação de West Side Story, e Tom Blyth, ator inglês que se destacou em Benediction, o último Terence Davies...

Para muitos é o filme mais esperado do ano: a história de conquista do poder de Napoleão, o imperador francês. O ângulo é a relação com o seu grande amor, Josephine. Consta que Scott quis tudo em grande: as emoções, as cenas de batalha e os confrontos morais. Seria muito estranho se ficasse de fora dos favoritos à temporada dos prémios mas a ausência no Festival de Veneza leva muitos a especular se este não será um passo em falso do cineasta que já está a terminar a rodagem de Gladiator 2...

Finalmente há data para o último de Leonel Vieira, cineasta que aqui assina de caras o seu melhor filme, uma história sobre os bastidores do jogo do bicho no Rio de Janeiro e em que Joaquim de Almeida é um bicheiro português a querer lucrar com um golpe.

Sem inventar a pólvora da narração a começar por um dos momentos de clímax da história, O Último Animal é um bom filme de género, capaz de relevantes surpresas narrativas sem serem "twists" da moda e de um suspense fresco e duro.

Eis um belo exemplo de uma coprodução com o Brasil. Para esquecermos em definitivo esse tiro em falso que era A Selva...

Foi sem réstia de dúvidas um dos títulos maiores da competição do Festival de Cannes. Uma história de amor na Helsínquia da classe trabalhadora entre uma mulher solitária e um alcoólico de bom coração. Tudo filmado de alma escancarada, com a tal "poção" capaz de nos transporta para o efeito de uma paixão à primeira vista. Um Kaurismaki no ponto a inventar mais uma vez um humanismo muito rock n' roll, muito só dele...

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