Ilustrar com guache, alma, aguarela, lápis de cor. E muito tempo
Há qualquer coisa de irreal naquela mulher (menina) que não sabemos se anda se flutua, que fala com uma voz ao mesmo tempo funda e baixa, que sorri com olhos pequeninos. Talvez se pareça com aquela mulher/menina do livro Sonho com Asas que ilustrou. Um livro que estará nas prateleiras de literatura infantojuvenil apenas porque tem de ter um rótulo. Na realidade, é um livro para todas as idades, como reconhece o júri do Prémio Nacional de Ilustração, atribuído pela Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, que acaba de conquistar: "Fátima Afonso recorre a um conjunto de estratégias de composição gráfica que leva o leitor a tirar os sapatos e a ganhar asas para se elevar no universo dos sonhos."
Eis Fátima Afonso, 55 anos, numa manhã chuviscada de Setúbal, a cidade onde mora e é professora há quase três décadas. Talvez viesse já descalça e com asas. Pousa numa cadeira na Galeria Municipal da cidade sadina, em frente a alguns desenhos do seu livro que estavam então numa exposição (integrada na Festa da Ilustração).
"Fiz o curso de pintura em Belas-Artes. No meu último ano comecei a dar aulas e a pintura ficou assim um bocadinho adiada. De qualquer modo, tentei manter as duas atividades mas era muito complicado e precisava de tempo, muito tempo, mesmo cem por cento, para dedicar à pintura e achava que não estava a evoluir como era desejável. Também começou a ser difícil deixar as aulas e chegou a uma altura em que eu tive mesmo de deixar de pintar. Mas desenhar mantive sempre e continuei a desenhar e fui fazendo algumas exposições", conta-nos. Começou a realizar ilustrações para livros infantojuvenis em 2000, o primeiro livro é publicado um ano depois.
A ilustração começara na realidade anos antes, quando foi mãe - tem dois filhos, com 28 e 24 anos. "Ilustrei várias histórias daquelas tradicionais e foram esses trabalhos que eu levei às editoras... Capuchinho Vermelho, Pinóquio. Depois apareceu a oportunidade. Deram-me um trabalho e a partir daí vi-me neste mundo. Os trabalhos foram aparecendo uns atrás dos outros e fui-me interessando cada vez mais por esta área", conta pausadamente.
A voz condiz com a forma de estar. Parece precisar de tanto tempo para estar como precisa para criar. Aqui e ali vai falando da demora com que os seus desenhos são feitos. "Por vezes as editoras pedem dois meses para realizar um trabalho de cerca de 20 ilustrações e eu nunca consigo fazer. Eu demoro realmente muito tempo e as editoras parece que precisam das coisas para ontem. Eu percebo, é um negócio e eles têm prazos e um livro não é só um ilustrador, é o autor do texto, é o designer..."
O livro agora premiado teve tempo, muito tempo. Fátima sorri e conta como tudo aconteceu. "A autora [do texto] é uma colega [professora] aqui em Azeitão, de matemática e ciências, no segundo ciclo. E também escreve. Uma nossa colega da escola onde eu estava anteriormente, aqui na Aranguez, que conhecia a Teresa [Marques], juntou-nos. Perguntou se eu não gostaria de realizar um desenho para a Teresa que gosta de escrever a partir de imagens. Foi assim. Eu realizei este desenho, foi aqui que o livro nasceu, e a partir daqui ela de um dia para o outro escreveu este texto."
O Sonho com Asas nasce de uma ilustração, que está agora a meio do livro. É uma "mulher menina, não sei, que está num espaço exterior, não sei explicar... às vezes não temos explicação para tudo. Aconteceu, não sei muito bem". Esta menina que saiu da imaginação de Fátima Afonso para o meio de um livro, fez nascer uma história escrita por Teresa Marques. A história de uma viagem, que pode ser a viagem de uma pessoa qualquer a um sítio qualquer. Com ou sem sapatos.
Voltemos a escutar a ilustradora: "O texto sofreu algumas alterações com os meus desenhos e os meus desenhos com o texto que ela me ia enviando, e o livro apareceu assim com naturalidade. Teve tempo. Nós decidimos concorrer ao prémio Compostela para álbuns ilustrados, o trabalho estava todo em maquete e tinha já três originais em produto final e enviei no último minuto e tivemos a sorte de ficarmos em segundo lugar e depois a Kalandraka publicou. O prémio foi em 2014, entretanto demorei cerca de um ano até o livro ser publicado". Uma ilustração que faz nascer uma história que faz nascer outras ilustrações que ganham um prémio que dão origem a um livro. Foi assim com Sonho com Asas.
Os desenhos de Fátima Afonso transportam muitas referências do mundo da pintura. Talvez aqui Hieronymus Bosch, ali [O Meu Primeiro Eça de Queirós, de Luísa Ducla Soares, 2011] Klimt. "Sim" - admite. "Porque nós vamos buscar a inspiração a muitos lados. Eu vou muito à história da pintura, é evidente, acho que não posso fugir a isso. O nosso imaginário vai sendo construído ao longo do tempo que vamos vivendo e vamos recebendo estas influências e é natural que isso passe para o nosso trabalho", considera.
Gosta de utilizar "técnica mista" - "Dou sempre uma base de aguarela para definir a mancha de cor, depois vou sobrepondo outros materiais: guache, acrílico, lápis de cor, novamente aguarela, pontualmente colagem. Programas de desenho não utilizo, a não ser para ampliar um esboço ou outro."
No estirador do quartinho de sua casa onde abre a porta ao seu mundo estão vários projetos. Todos feitos de tempo. E outros materiais.