Hugo Marçal diz que processo já lhe levou 175 mil euros
Até 31 de janeiro de 2003 considerou-se sempre um advogado "respeitadíssimo" em Elvas, a cidade que considera sua desde os 13 anos. Nasceu ali perto, em 1960, em Campo Maior, no meio de nove irmãos. Um deles, a Graça, de 37 anos, não resistiu ao desgosto de o ver, a ele, Hugo Marçal, um doutorado em Direito Penal Fiscal, envolvido num processo de pedofilia. O filho dela encontrou-a morta em casa, na mesma posição em que de manhã a vira antes de sair para as aulas.
"Sou uma das vítimas deste processo", disse ao DN Hugo Marçal, que nos recebera no seu escritório de advogado em Oliveira do Bairro, distrito de Aveiro, a cidade onde passou a advogar nesta segunda fase da vida: falido, longe de casa e ainda sem saber se vai ou não ser condenado. "Este processo levou-me mais de 175 mil euros", lamenta.
Na manhã da nossa conversa tinha o aspeto negligenciado: não tinha feito a barba e também havia dois ou três dias que não tomava banho. "A conselho do médico" para não correr riscos de gripe de que recuperava, explicou de olhar fixado no horizonte através da janela do escritório que dividiu a meio com uma parede falsa de pladur. Foi o modo de poder usufruir de duas salas, uma delas com casa de banho, sofá, frigorífico, micro-ondas e uma mesa a pensar nas pausas a meio do trabalho para descansar e comer qualquer coisa. A passagem do escritório para a sala faz-se através de uma estante de livros que, fechada, dificilmente se percebe que é a porta. Para trabalhar tem uma secretária com o computador e duas cadeiras para os potenciais clientes que por agora são poucos. Uns quadros nas paredes, ao lado dos diplomas emoldurados, e umas quantas estatuetas adornam o ambiente de trabalho de um típico advogado de província que entre o pouco labor se vai distraindo a mover peças do xadrez no computador com adversários virtuais.
Antes de 2003? "Os clientes eram mais." Em Elvas, onde toda a gente se conhece, só há 39 advogados. Havia trabalho para todos. E a advocacia nem sequer era a sua única atividade. A formação iniciara-a no Magistério Primário tornando-se professor dos mais pequenos antes de abraçar o ensino noturno de adultos. "Ensinei homens e mulheres de 80 anos a ler e a escrever", sorri.
O tempo livre foi desde sempre dedicado ao estudo. Obteve depois uma licenciatura em Ciências da Educação (com especialização em supervisão pedagógica), que lhe permitiu avançar para a formação de professores, e outra em Ciências Sociais. Entretanto tirou o curso de Direito e entre as atividades ligadas ao Ministério da Educação, como técnico superior, passou a advogar. "Tinha uma vida desafogada." Casara aos 28 anos, nascera um filho, adquirira uma boa casa e criara um bom escritório de advocacia partilhado com um colega. Até que um dia recebeu um telefonema a desafiarem-no para defender o indivíduo que abria telejornais e a quem chamavam de "Bibi", detido por indícios de crimes de abuso sexual.
"Quem lhe ligou?" - a pergunta impôs-se. "Ainda hoje não sei ", garantiu. Mas surgiu ali de repente a oportunidade de agarrar um processo mediático. Viajou para Lisboa até à prisão onde se encontrava o seu novo cliente, que não pôde visitar, mas deixou um bilhete: "Caro amigo Carlos Silvino", acompanhado do número de telemóvel para que lhe ligasse. Chamou-o de "caro amigo"?
Só se chama amigo a quem se conhece. "Não é verdade. Os meus clientes trato sempre por caro amigo, bom amigo. É assim no Alentejo." Hugo Marçal garante ao DN que nunca antes ouvira falar de "Bibi". Nem nunca conhecera pessoalmente os coarguidos. E continua a perguntar porquê.... Mas alguém lhe telefonou (quem?) a pedir que defendesse um confessado abusador sexual. "Como não aceitar? Seria o desafio da minha vida profissional", sublinha.
Mas, depois, é detido, e depois preso, julgado durante cinco anos, e teve de abandonar Elvas. Divorciou-se da mulher em 2007, mas, entretanto, voltou a pedi-la em casamento. (re) Casaram-se em 2009. A vida vai-se fazendo entre o Tribunal de Aveiro e o fim de semana com a família no Alentejo. A reforma por invalidez do Ministério de Educação, de 1800 euros, não chega para os gastos. No entanto, as razões da advocacia em Oliveira do Bairro são mais terapêuticas do que económicas. Mas diz "estar completamente falido", lembrando de novo os 175 mil euros gastos com o processo.
Saímos do escritório para almoçar. Na rua o condutor de um Mercedes saúda com a mão Hugo Marçal, a que corresponde com um largo sorriso, admitindo que, sim, perdeu amigos, porém outros foram sendo conquistados e, entre o deve e o haver, não se pode queixar.
No restaurante de um hotel próximo, com paisagem deslumbrante sobre a ruralidade do Baixo Vouga, sentiu a cordialidade dos que ali já almoçavam. A nossa conversa de toda a manhã, porém, ainda lhe embrulhava o estômago. "Sinto-me revoltado, pá!"