Houve ou não mais mortalidade em março?
Março foi o primeiro mês em que a pandemia da COVID-19 se fez sentir em Portugal. Oficialmente, terminou com 8251 casos confirmados, 187 óbitos e 43 recuperados, segundo o Relatório de Situação n.º 30 da DGS. No entanto, é difícil medir com exatidão os efeitos da pandemia da COVID-19. O número de casos confirmados depende da capacidade e da política de testes para a doença, e o número de óbitos depende, para além dos testes, da capacidade de diferenciar os óbitos por COVID-19 e os óbitos por outras causas em pessoas com COVID-19, principalmente quando o critério de atribuição de causa de morte não é consensual entre países diferentes.
Assim, na busca de outros indicadores para medir o impacto da pandemia, podemos olhar para a mortalidade por todas as causas em Portugal. Existem dados sobre a mortalidade disponíveis quase em tempo real (com um atraso de 48h) desde 2009, o que permite ter perspetiva suficiente para nos interrogarmos. Comparando 2020 com os outros anos, é então possível desenhar algumas hipóteses para o impacto da COVID-19 no país, até porque se elimina o ruído das incertezas na atribuição da causa de morte.
Comecemos pelo impacto previsto. Independentemente das tendências de mortalidade dos meses anteriores, seria natural que, numa situação destas, houvesse pelo menos quatro tipos de mortes associadas. O mais óbvio é a morte por COVID-19 que a DGS tem monitorizado.
A COVID-19 pode ter também um impacto direto, mas oculto, em casos onde não houve capacidade de testar o doente. Para além dos impactos diretos, há mortalidade indiretamente ligada à pandemia em doentes que, ao verem o sistema de saúde desviar a sua resposta na direção da COVID-19, não conseguem ou temem procurar os cuidados necessários - exemplo disso é a baixa substancial no recurso às urgências desde as últimas duas semanas, que podem ser consultadas online no site do SNS, e possíveis mortes que resultem do adiamento desses cuidados urgentes.
Finalmente, verificam-se também as mortes que se esperaria viessem a ocorrer em qualquer situação e que, não sendo impacto da pandemia, não deixam de dever ser contabilizadas quando analisamos este indicador.
O nosso grupo analisou a mortalidade por todas as causas em 2020 em Portugal. Os meses de janeiro e fevereiro não têm nenhum aspeto que os torne diferentes dos janeiros e fevereiros de outros anos. Em janeiro, a mortalidade situou-se ligeiramente acima da média dos anos 2009 a 2019. Em fevereiro, pelo contrário, a mortalidade ficou abaixo da média, mas não de forma excecional. Vários fatores, entre eles uma época gripal ligeira e o mês de fevereiro mais quente de sempre em Portugal, podem explicar este fenómeno. O ano de fevereiro tem semelhanças com os anos de 2011 e 2017 na sua tendência decrescente e 2016 no total de mortes.
Março de 2020 é um mês único nas várias análises que fizemos. É o único, desde que há dados disponíveis, que apresenta um crescimento sustentado da mortalidade ao longo do mês: de uma média de 297 mortes por dia nos primeiros sete dias de março, para uma média de 352 mortes por dia nos últimos sete dias. Por comparação, a mesma análise à média dos anos 09-19 devolve uma descida de 339 mortes diárias para 300 mortes diárias dos primeiros para os últimos 7 dias. Traçando uma reta que melhor represente esta tendência, podemos ver que ela se cruza com todas as outras, evoluindo em sentido contrário.
2020 teve, em termos homólogos, os últimos dez dias de março com mais mortes dos últimos 12 anos conhecidos, com 3471 óbitos. A média para esse período é de 3032 com mais ou menos 170 mortes, estando o valor deste ano 269 mortes acima do limite superior desse intervalo.
Uma análise interessante, mas particularmente difícil de fazer, é a estimativa do excesso de mortalidade no mês de março. Usamos aqui dois cenários, sendo que nos parece que o excesso real estará algures entre os dois.
O primeiro cenário parte da seguinte premissa: as mortes em excesso são aquelas que se situam para além de uma variabilidade expectável da média diária dos últimos anos (obtida somando um desvio-padrão). Neste cenário, vamos somar todas as mortes acima dessa variação natural nos vários dias do mês de março. O excesso de mortalidade proposto com esta metodologia é de 268 mortes, ou 81 mortes em excesso para além das mortes atribuídas à COVID-19.
O segundo cenário propõe que março tivesse mantido a mortalidade média da primeira semana do mês. Uma vez que todos os meses de março anteriores apresentavam uma tendência de diminuição de mortalidade diária, seria razoável assumir que, num cenário pior que esses, não se verificasse diminuição, e o valor de mortes diárias se mantivesse constante ao longo do mês. Nesse caso, o mês de março verificaria 9207 mortes. Na verdade, verificaram-se 10.096 mortes, ou seja, 889 além das que esta hipótese preveria, ou 702 mortes para além das atribuídas à COVID-19.
Como já tivemos ocasião de explicar num artigo prévio e mais acima neste artigo, identificamos pelo menos 4 causas para este excesso de mortalidade, sendo para já difícil, talvez até impossível, perceber o peso relativo de cada uma delas.
Explorando, por outro lado, como varia a mortalidade quando analisada por idade ou local, vemos que o excesso de mortalidade que cremos existir (e apresentámos acima) se deve particularmente ao componente da população com mais de 75 anos, e a alguns distritos em particular.
Em termos etários, realça-se a prevalência de óbitos na faixa etária acima dos 75 anos, sendo este o estrato que mais contribui para o aumento da mortalidade total. A faixa >75 anos apresenta, na primeira semana do mês, uma média de 219 mortes diárias, mas no final do mês chega a uma média semanal de 265 mortes diárias, um acréscimo de 46 mortes/dia. No entanto, é de notar também o aumento na faixa entre 65 e 74 anos e, ainda que com um número reduzido de óbitos, entre os 35 e os 44 anos, no mesmo período.
Quando analisamos a distribuição por distritos, verificamos que nem todos os distritos apresentam o comportamento de aumento expresso no total nacional, salientando-se a tendência crescente nos distritos de Aveiro, Braga, Faro, Leiria, Porto e Lisboa, sendo os dois últimos os principais responsáveis pelo aumento da mortalidade total.
Não sendo observações surpreendentes para o senso comum, são importantes para ajudar a caracterizar o possível excesso de mortalidade. O facto de o aumento se dar, sobretudo, no componente acima dos 75 anos coincide com a descrição da mortalidade que vem sendo atribuída à COVID-19.
O mesmo raciocínio se aplica à coincidência do aumento da mortalidade com alguns dos distritos mais afetados. Aumentos noutras faixas etárias, pelo contrário, são mais favoráveis a outras hipóteses - por exemplo, pior acesso a cuidados de saúde para episódios graves e urgentes em indivíduos mais novos, um potencial efeito do desvio da resposta do sistema de saúde para cuidados relacionados com a pandemia.
As hipóteses aqui levantadas sugerem que se tenha verificado um excesso de mortalidade em março, num valor entre 268 e 889 óbitos (entre 2,7 e 8,8% do total de mortes do mês de março). Neste excesso estarão incluídas as 187 mortes atribuídas oficialmente à COVID-19.
Em nota de conclusão, devemos, porém, dar contexto a estes números e imagens. Ao passo que representam, potencialmente, um sinal inicial de disrupção do equilíbrio de óbitos (e, por conseguinte, do sistema de saúde), não temos ferramentas ou dados para apontar uma causa certa dessa disrupção.
E, apesar de olharmos para tendências e de as compararmos, não alimentamos previsões que se apoiem nelas, pois não temos modelos preditivos. Esta análise comparativa é exatamente isso: uma comparação deste ano atípico, que acreditamos que nos pode mostrar um cenário ainda por perceber.
* docentes da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e investigadores do CINTESIS. Membros do grupo COVIDcids.