Os rumores recentes de que Indiana Jones 5 poderá ser o último filme da carreira de Harrison Ford chegaram através do compositor John Williams, que, aos 90 anos, está pela quinta vez a prestar serviço à saga, o mesmo número de vezes que Ford retomou a personagem titular. Não surgiu, entretanto, nenhuma confirmação -- nem Williams o disse com tom definitivo em relação a Ford --, mas é certo que será, pelo menos, o seu último filme na pele do herói que assumiu pela primeira vez em 1981, sob o título Os Salteadores da Arca Perdida. Tinha 39 anos. Os atores que com ele contracenam neste novo e especial momento da série sentem o privilégio. Mads Mikkelsen disse em entrevistas que se pode esperar do veterano uma performance "do outro mundo", invejando a sua boa forma aos 80 anos, já Antonio Banderas emocionou-se quando o viu no set envergando os adereços de Indy, em particular os icónicos casaco surrado, chapéu e chicote..O público ainda tem muito que aguardar pela estreia deste filme de James Mangold (sobre o qual Mikkelsen disse também preservar o cunho de Spielberg), prevista para o verão do próximo ano. Mas, para além do legado de Indiana Jones, as oito décadas que Harrison Ford completa amanhã (13 de julho), fazem-nos olhar para trás com uma admiração semelhante àquela manifestada pelos seus pares..Estamos a falar de alguém que, pelo que se sabe, até há não muito tempo andava de mota, praticava ténis e pilotava helicópteros, inclusive auxiliando missões de salvamento. É provável que ainda preserve algumas destas práticas, e outras, condizentes com a sua boa forma. Isto para dizer que Ford sempre foi um homem de ação, empenhado em garantir uma verdade essencial às cenas de maior exigência física. Atitude que ao longo do tempo se refletiu numas quantas nódoas negras, esfoladelas e lesões, entre as mais aparatosas, uma sofrida logo em Os Salteadores da Arca Perdida. Para o historial do seu corpo ficam também a rutura de dois discos na coluna vertebral durante as filmagens de Indiana Jones e o Templo Perdido (1984), uma perna partida em Star Wars: Episódio VII - O Despertar da Força (2015), e mesmo nos ensaios deste Indiana Jones 5 registou-se uma lesão no ombro. Na altura de Indiana Jones e o Templo Perdido, o ator chegou a jurar para nunca mais: ao infortúnio da coluna juntar-se-iam "disenterias, várias picadas de insetos e toda uma série de coisas que não declarei aos impostos.".Chegado à marca dos 80, Ford parece não ter perdido a abordagem atlética. Desde O Despertar da Força, os filmes que fez nos últimos anos falam por si, com destaque para Blade Runner 2049 (2017), de Denis Villeneuve, onde retomou o papel do ex-polícia ácido e desencantado da obra-prima de 1982, assinada por Ridley Scott. O ator tem este hábito de regressar a personagens e "famílias" que constituiu no cinema, mas também é comovente vê-lo em jornadas solitárias como O Apelo Selvagem (2020), de Chris Sanders, uma pouco virtuosa adaptação do clássico de Jack London, suficientemente elevada pela sua presença nobre e melancólica, ao lado de um cão digital....Estrela reservada, homem comum e prático, que confessa ter como única excentricidade colecionar e pilotar aviões (aos 20 anos pensou em ser piloto), Harrison Ford não olha para a representação como uma arte. Encara-a antes como um "excelente emprego", da mesma forma que o labor manual da carpintaria o foi numa certa fase da sua vida..Com efeito, as dificuldades com que Ford se deparou no início da carreira, acumulando pequenos papéis entre a televisão e o cinema sem passar da cepa torta, levou-o a escolher a carpintaria (que aprendeu de forma autodidata) como ganha-pão durante algum tempo. O ofício correu-lhe bastante bem: construiu um estúdio de gravação para o músico brasileiro Sérgio Mendes, fez uma varanda para Sally Kellerman, instalou portas para Francis Ford Coppola, e pelo meio ainda integrou a equipa de produção de uma tour dos The Doors,... Na verdade, corria tudo tão bem que esteve quase a descartar aquele que viria a ser o seu primeiro papel de substância no cinema, o entusiasta de carros Bob Falfa, no filme American Graffiti: Nova Geração (1973), de George Lucas. Digamos que por essa altura os seus trabalhos por conta própria já estavam a render mais do que o salário que lhe ofereciam os estúdios. Em todo o caso, não foi este filme que meteu prego a fundo na carreira do ator. A sorte assomou-se enquanto uma certa produção, chamada Star Wars, procedia à escolha de atores para dar vida a personagens que marcariam gerações: Luke Skywalker, Leia e Han Solo. Em relação este último, o realizador tinha em mente Christopher Walken, mas o diretor de casting Fred Roos "plantou outra possibilidade para Han Solo mesmo debaixo do nariz de Lucas contratando um carpinteiro para instalar uma porta nos escritórios da [produtora] Zoetrope: Harrison Ford", lê-se na biografia de George Lucas, por Brian Jay Jones. Acontece que, depois de American Graffiti, Ford continuara a sustentar a família essencialmente como carpinteiro, no mesmo regime de arranjar papéis sem importância aqui e acolá, pelo que se afigurava muito bem-vinda uma nova oportunidade a sério. Só não conseguia encaixar a ideia de estar numa sala de audições a trabalhar de joelhos, como quem não quer a coisa, à frente de Lucas... Era demasiado humilhante para o seu gosto. O plano de Roos tornou-se mais refinado quando este sugeriu ao realizador que Ford, já que ali estava, lesse as falas com os atores que tinham audições nesse dia. E assim, apesar da falta de subtileza do esquema, Ford voltou a "intrigar" o realizador de Star Wars, sendo eventualmente escolhido para vestir a pele do charmoso oportunista Han Solo..Era apenas o início de uma aventura que não acanhou Ford nem um bocadinho. De resto, seria o primeiro a manifestar a Lucas o seu desagrado (que outros atores partilhavam) com os diálogos do guião. "Podes escrever esta merda, mas não podes dizê-la", atirou em jeito de pedido de licença para improvisar, que naturalmente lhe foi concedida. Talvez por isso Han Solo se tenha constituído como um teste para o tipo de herói desempoeirado que veio a definir o ator..Não tardou muito que outra personagem que frequentara a imaginação de Lucas durante a escrita de Star Wars se impusesse na figura de Ford: "Um afoito e astuto professor universitário de arqueologia e caçador de tesouros em part-time chamado Indiana Smith." Sim, foi com este nome que o futuro produtor o apresentou ao amigo Steven Spielberg, por sua vez maravilhado com a proposta old school das façanhas da personagem, que lembrava as séries semanais que ambos viam na infância. Antes da escolha do ator, estava até indicado no resumo que seria "alguém como Harrison Ford". Spielberg, o realizador, só não gostou do apelido Smith, e Lucas trocou-o por Jones..Indiana Jones, funcionando como uma evocação dos filmes de aventuras ao estilo de Michael Curtiz, com um protagonista digno do carisma irónico de Humphrey Bogart, tornou-se então (mais do que Han Solo) a segunda pele de Ford. E este rapidamente percebeu que havia o perigo de ficar catalogado - só lhe apresentavam projetos em tudo semelhantes a Indiana Jones, quando o que lhe apetecia eram filmes menos agitados. A quebra do padrão deu-se com A Testemunha (1985), de Peter Weir, onde interpreta, com outras nuances, um polícia detetive escondido numa comunidade Amish. Este valeu-lhe a primeira e, até à data, única nomeação para Óscar. A partir daí alcançou reconhecimento junto dos realizadores e da crítica enquanto ator de corpo inteiro, mais do que alguém conotado exclusivamente a um par de personagens populares (sem desmerecer), entre acrobacias de ação..Sobretudo as décadas de 1980 e 90 comprovam a variedade de realizadores conceituados que quiseram trabalhar com Ford já depois do seu estatuto de estrela. De Roman Polanski (Frenético) a Mike Nichols (Uma Mulher de Sucesso e O Regresso de Henry), de Alan J. Pakula (Presumível Inocente e Perigo Íntimo) a Sydney Pollack (um remake do Sabrina de Billy Wilder e Encontro Acidental), de Robert Zemeckis (A Verdade Escondida) a Kathryn Bigelow (K-19: O Fazedor de Viúvas), estes últimos já no início da década de 2000. Com Weir fez ainda A Costa do Mosquito (1986), e antes de toda esta lista, Coppola deu-lhe pequenos papéis em O Vigilante (1974) e Apocalypse Now (1979). Isto enquanto Ford era o seu moço carpinteiro nas horas vagas..Nascido em Chicago, Illinois, filho de pai irlandês e mãe de ascendência russa, Harrison Ford tem mantido, ao longo do seu percurso nestes e noutros filmes, uma assinatura de herói entre o clássico e o moderno. Um herói com a fibra do comum mortal e o magnetismo de figuras de outro tempo, à imagem de um Gary Cooper. Em suma, um "herói imperfeito" (tal como é designado na biografia escrita por Garry Jenkins) que aos 80 anos ainda enverga o chapéu e o chicote..dnot@dn.pt